Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0176/22.6BALSB
Data do Acordão:11/23/2023
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:LILIANA VIEGAS CALÇADA
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
EXTINÇÃO
FUNDAÇÃO
PERICULUM IN MORA
Sumário:I - Não se mostra preenchido o requisito do “periculum in mora” quando os requerentes não demonstram que, no caso de ser recusada a providência, se tornará depois impossível, em caso de procedência do processo principal, efectuar a restauração natural da situação conforme à legalidade, pelo que não estamos perante uma circunstância que possa considerar-se irreversível, típica da definição de facto consumado – o qual apenas ocorre “se a realidade a que tende o acto suspendendo se consolidar irreversivelmente com o início da sua execução” (Ac. do STA de 22/4/2015, revª nº 0245/15).
II - Não se mostra igualmente preenchido o requisito do “periculum in mora” quando os danos alegados não decorrem directamente do acto suspendendo, não se verificando a existência de um nexo de causalidade entre a execução do acto e os prejuízos invocados, pelo que estes não constituem uma consequência adequada do indeferimento da suspensão de eficácia.
III - Mesmo que pudesse entender-se vir a ocorrer a alegada desvalorização, por diluição, da Colecção, tal desvantagem patrimonial não poderia configurar um prejuízo “de difícil reparação”, com o grau de dificuldade necessário para o deferimento da providência, uma vez que, em sede de acção principal, se obtiverem vencimento, sempre os requerentes poderão ver tal prejuízo ressarcido – como decorre, aliás, do pedido indemnizatório que formularam na referida acção.
Nº Convencional:JSTA000P31623
Nº do Documento:SAP202311230176/22
Recorrente:ASSOCIAÇÃO ... E OUTROS
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I - RELATÓRIO

1 – ASSOCIAÇÃO ... e AA, identificados nos autos, vêm interpor recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artº 25.º nº 1 al. a) do ETAF, do acórdão proferido em 30/03/2023 pela respectiva secção, o qual indeferiu, por falta do requisito legal de periculum in mora, a adopção da providência cautelar de suspensão de eficácia do acto de extinção da Fundação … – ..., contido no Decreto-Lei n.º 90-D/2022, de 30 de Dezembro.

2 - Os Recorrentes formulam, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

“1. A decisão recorrida enferma de nulidade, por falta de fundamentação quanto à questão da extinção do comodato, questão amplamente tratada no requerimento inicial e cuja decisão incidental é essencial à decisão do pleito, carecendo a afirmação da extinção do comodato de ser sustentada em termos de facto e de Direito.
2. A decisão recorrida enferma de nulidade, por omissão de pronúncia acerca de questões suscitadas no requerimento inicial, como a extinção do comodato e a subsistência do objecto da F… ainda que o comodato se houvesse extinguido, pelo menos enquanto se mantiver o arresto. Estas questões são de conhecimento incidental prévio, imprescindível à solução do pleito, pois constituem parte relevante da causa de pedir.
3. A carta de 26 de Maio de 2022 não teve por efeito a extinção do comodato, pelo que a decisão recorrida enferma também de ilegalidade por erro neste seu pressuposto essencial.
4. Na decisão recorrida diz-se que da procedência do procedimento cautelar resultaria apenas a manutenção da existência jurídica da F… e a titularidade do usufruto do Módulo 3 do CCB. Ora, se o usufruto se manteria em caso de procedência da acção, tal significa que o protocolo se mantém em vigor, pois este é a fonte do usufruto. Ou seja, a carta de 26 de Maio de 2022 apenas teve por objecto o comodato, e não a totalidade do protocolo.
5. Sendo que as partes do contrato de comodato são apenas a A... – comodante – e a F… – comodatária – o Estado, enquanto terceiro, não pode denunciar um contrato de que não é parte.
6. Pelo que a Carta de 26 de Maio de 2022, em que se pretende fazer a denúncia do comodato, não é apta a produzir qualquer efeito, por falta de legitimidade do declarante.
7. Independentemente da manutenção do comodato, a F... pode continuar a existir e a prosseguir os seus fins, garantindo a fruição pública da ... na pendência da providência cautelar e da respectiva acção principal, tal como defendido pelo Conselho Consultivo das Fundações.
8. O arresto das obras que compõem a ... não impediu, nem impedirá, a F... de “utilizar” a Colecção, antes pressupõe tal utilização.
9. Enquanto se mantiver o arresto, a existência da F... é, não só possível, como necessária.
10. A não concessão da providência causa danos absolutamente irreparáveis, tornando a decisão contida no acto administrativo impugnado num facto consumado, pois a eventual anulação do acto de extinção da F..., num futuro que se antevê longínquo, já nenhum efeito prático poderá produzir.
11. A extinção da F... causa danos na esfera jurídica dos seus instituidores, que perdem essa qualidade, em especial na esfera jurídica dos Requerentes, pois estes deixam de ter acesso à única qualidade que lhes permite acompanhar o património que lhes pertence (pelo menos enquanto se mantiver o arresto).
12. A extinção da F... (com, na prática, o consequente controlo exclusivo da Colecção pelo Estado) possibilita a anunciada diluição da ..., sendo as obras que a integram misturadas com obras provenientes de outras colecções e integradas um futuro Museu ….
13. Já teve início a desvalorização da colecção e a produção de danos, tendo sido alterada a denominação do Museu e estando anunciada a criação de um novo museu … (desaparecendo a referência à …, e o nome ...), com a integração de várias colecções.
14. Esta diluição da Colecção é apta a provocar a sua desvalorização, bem como a desvalorização das obras que a compõem, pois uma colecção de arte obedece a critérios próprios, não sendo um mero amontoado de peças.
15. Os danos invocados, a verificarem-se (completarem-se), serão graves e dificilmente reparáveis.
16. Tais danos podem ser evitados com o decretamento da providência, pois a manutenção da existência da F... permite a permanência do Museu e da ... no estado em que se encontravam aquando do arresto – manutenção que a própria decisão que decretou o arresto pressupôs, ao determinar “que o arresto ora ordenado não prejudicará a exposição das obras […], nem o uso das mesmas por parte da F... ao abrigo desse Protocolo” [sublinhado nosso].
Nestes termos, - Requerem seja julgado procedente o presente recurso e, em consequência, seja revogada a decisão recorrida, sendo substituída por outra que, conhecendo a argumentação dos Recorrentes, decrete a providência requerida.”

3 – A requerida Presidência do Conselho de Ministros apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

“A. Os Recorrentes incorrem em manifesto erro sobre aquilo que foi decidido, já que, ao contrário do que parece estar subjacente às suas alegações, o Acórdão recorrido incidiu sobre o periculum in mora e não sobre o fumus boni iuris, pelo que se centrou exclusivamente sobre aquele requisito de apreciação das providências cautelares e, uma vez que entendeu que não estava verificado, nem sequer às ilegalidades imputadas ao ato suspendendo.
B. Inexistiu qualquer nulidade por omissão de pronúncia ou falta de fundamentação: o Acórdão recorrido não se pronunciou, nem tinha de se pronunciar, sobre as ilegalidades suscitadas – onde se inclui a suposta ilegalidade do ato impugnado por, alegadamente, o objeto da F...-... não se ter tornado impossível –, mas antes expôs e fundamentou as razões pelas quais entendia que não se verificava o requisito do periculum in mora.
C. Os Recorrentes podem discordar do que foi decidido, mas é inequívoco que a decisão não incorre em qualquer omissão, está devidamente fundamentada e que o Acórdão recorrido evidenciou que entendia que a suspensão requerida não afetaria a situação da ... e por isso os interesses invocados pela A... e por AA sobre esta última não sairiam afetados pelo decretamento ou não decretamento da providência.
D. Quanto à denúncia do acordo de comodato da ..., os Recorrentes procuram invocar uma miríade de argumentos e supostas explicações, mas o facto claro e inequívoco, que consta da alínea e) da matéria de facto considerada provada nos autos, é o de que em 26.05.2022, o Ministro da Cultura, em representação do Estado Português, comunicou àqueles a denúncia do acordo de comodato relativo às obras da ... em termos que impediam a sua renovação em 1.01.2023.
E. Embora os Recorrentes aleguem (sem razão) que essa denúncia não seria válida, ou que não lhes seria oponível ou que não teria sido feita por quem teria legitimidade, a verdade é que a denúncia foi efetivada e operou, como consta da matéria de facto provada, donde resulta claro que, para efeitos da apreciação do periculum in mora, o Acórdão recorrido considerou e bem a denúncia que foi operada.
F. Mesmo que a suspensão da eficácia requerida fosse decretada, o que apenas a benefício de raciocínio se equaciona, sem conceder, tal em nada influenciaria a situação da ... ou a denúncia do acordo de comodato que foi efetuada, já que são realidades exteriores e que não estão em causa neste processo cautelar ou na ação principal.
G. Por outro lado, a ... encontra-se arrestada em favor de um de Bancos no âmbito de um processo cautelar por estes intentado, em que é fiel depositária a FCCB, na pessoa do seu Presidente, pelo que também nessa perspetiva não teria a F...-... qualquer possibilidade de interferir na respetiva utilização.
H. É manifesto que bem andou a sentença recorrida ao reconhecer que a providência requerida em nada poderia afetar a situação da ..., seja devido à denúncia do acordo de comodato dessa Coleção, seja devido ao arresto que foi decretado sobre a mesma, pelo que improcede o alegado pelos Recorrentes.
I. Mesmo que se considere que se teria de analisar juridicamente a denúncia do acordo de comodato que foi efetuada pelo Estado português – o que por mera cautela de patrocínio se equaciona, sem conceder – ter-se-á de chegar à mesma conclusão, isto é, conforme ficou evidenciado na oposição apresentada nos autos, que aquela denúncia operou e foi efetuada em termos válidos e, por conseguinte, a F...-... não dispõe de qualquer título sobre a ... que lhe permita invocar algum tipo de risco de periculum in mora no caso dos autos.
J. A alegação dos Recorrentes de que o acordo de comodato apenas poderia ser denunciado pela A... ou pela F...-... e que por isso a denúncia efetuada pelo Estado não teria operado (i) não é correta nem tem qualquer apoio na Cláusula Primeira da Adenda ao Protocolo, (ii) é contrária ao que já foi decidido pelo TAC de Lisboa noutro processo cautelar intentado pelos Recorrentes, (iii) é absolutamente contraditória com o que estes aí (e noutras sedes) defenderam e
(iv) não tem qualquer lógica nem correspondência com a vontade das partes.
K. Tudo isto demonstrando, de forma inapelável, a absoluta improcedência da alegação pelos Recorrentes de que o comodato ainda estaria em vigor e que a F...-... poderia intervir sobre a Coleção ao abrigo do mesmo, antes cabendo concluir, como fez o Acórdão recorrido, que o acordo de comodato foi efetivamente denunciado, com todas as consequências associadas.
L. A alegação pelos Recorrentes de que ainda que o comodato se houvesse extinguido a F...-... continuaria a ter objeto não é procedente e não afeta o que se concluiu no Acórdão recorrido, no qual se decidiu, em sede de análise do periculum in mora e de forma correta, que o arresto da ... sempre impedia que F...-... pudesse dispor da Coleção, em acréscimo ao facto de a denúncia do comodato ter operado.
M. Não decorre de ponto algum da sentença que decretou o arresto da ... uma suposta “imposição” de utilização das obras pela F...-... para lá do que estava previsto no Protocolo, sendo também falsa, para além de carecida de qualquer sentido, a alegação dos Recorrentes de que o Estado teria reconhecido que a F...-... deveria manter-se enquanto existisse o arresto.
N. Contrariamente ao pretendido pelos Recorrentes, o arresto da ... não contribui para qualquer juízo de necessidade de manutenção da F...-...: esse arresto não só não é inócuo como constitui a principal causa de insegurança e indeterminação da relação jurídica criada com o Protocolo, determinante da necessidade, vivamente sentida pelo Estado, de não permitir a renovação automática do comodato.
O. Como notou o acórdão recorrido, a F...-... não é parte no presente processo cautelar, sendo por outro lado seguro que, conforme consta daquele Acórdão, a não concessão da suspensão da eficácia não tornará a eventual procedência da ação principal absolutamente inútil, de acordo com a jurisprudência já estabelecida do Supremo Tribunal Administrativo a este respeito.
P. Não basta aos Recorrentes invocar o facto consumado da extinção da fundação, carecendo, naturalmente, de demonstrar (pelo menos, indiciariamente), que tal extinção lhes provoca (direta e pessoalmente) prejuízos de difícil reparação, o que não ocorreu, já que não vieram invocados factos concretos no Requerimento Inicial, nem, por consequência, foram quaisquer factos considerados provados, sendo que o recurso interposto não questiona a matéria de facto que esteve subjacente ao Acórdão recorrido, o que é suficiente para constatar a improcedência do presente recurso, por manifesta falta de factos para suportar a respetiva pretensão.
Q. Não é compreensível a argumentação engendrada pelos Recorrentes relativa aos alegados prejuízos diretos e imediatos para a A... e para AA decorrentes da suposta perda de capacidade de gestão dos bens por força da extinção da F...-...: uma hipotética anulação da decisão de extinção da F...-... não teria qualquer consequência jurídica direta e imediata na decisão judicial relativa ao arresto e na situação jurídica dos bens arrestados.
R. A anulação da extinção da F...-... (ou a suspensão da eficácia) não tem qualquer consequência no plano da valorização (ou desvalorização) da ..., sendo certo que os Recorrentes não demonstraram qualquer facto a esse respeito, cabendo adicionalmente constatar que, desse ponto de vista, a decisão mais relevante foi a assumida pelo despacho judicial que determinou o arresto, de manutenção, a título de depósito, da ... em exposição pública no local em que se encontra.
S. A suspensão da eficácia da extinção da F...-... não contribuiria para afastar o risco da produção de prejuízos diretos e imediatos na esfera jurídica dos recorrentes, porque esse risco não existe.
T. A extinção da F...-... não determina qualquer prejuízo direto na esfera jurídica dos Recorrentes, muito menos prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação, tendo tal evidência sido reconhecida pelo Acórdão recorrido, em termos que não merecem censura, razão pela qual não deixará de ser confirmado e mantido.”

4 - A contra-interessada Fundação Centro Cultural de Belém contra-alegou formulando as seguintes conclusões:

“A. O Recurso veio interposto pelos Recorrentes, do douto Acórdão da Secção Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 30.03.2023, que julgou improcedente a providência cautelar de suspensão de ato administrativo de extinção da F...-..., incluído no Decreto-Lei n.º 90-D/2022, de 30 de dezembro.
B. O presente Recurso é totalmente improcedente.
C. Em 2 de abril de 2006, foi celebrado Protocolo entre os Recorrentes e Recorrida Presidência do Conselho de Ministros, alterado por aditamento de 23 de novembro de 2016, cujo n.º 2 da Cláusula Primeira atribuiu a qualquer das partes (e apenas a qualquer delas) a possibilidade de denunciar quer o comodato, quer o Protocolo (em conjunto ou separadamente, o Acordo), tendo, em exercício de tal prorrogativa, por carta assinada pelo Estado, datada de 26 de maio de 2022, sido denunciado o acordo de comodato relativo às obras da ..., impedindo a renovação do Protocolo a 1 de janeiro de 2023, referindo-se ainda que enquanto permanecer o arresto determinado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, é assegurada salvaguarda, conservação, segurança e assegurada a fruição pública da mesma, assegurando-se intocado o legítimo proprietário da ....
D. Em virtude do arresto judicial, a posse da ... está hoje entregue ao fiel depositário nomeado pelo Tribunal, que tem todas as obrigações de custódia, segurança e de manutenção da fruição pública, deixando assim de estar na Associação ... ou na F...-..., cessando o objeto desta e dando, consequentemente, lugar à extinção da F...-..., daí que através do Decreto-Lei n.º 90-D/2022, de 30 de dezembro, se tenha extinguido a F...-..., garantindo que são praticados os atos necessários e bastantes para que a ... seja salvaguardada, conservada, mantida em segurança e assegurada a fruição pública da mesma, através da respetiva exposição em espaço museológico adequado, pelo que, tendo o Tribunal a quo percebido esta configuração factual, e enquadrado de direito e processualmente o pleito em conformidade, improcede o alegado vício de nulidade do Acórdão Recorrido por omissão de pronúncia.
E. Encontrando-se a ..., na presente data, à guarda do fiel depositário nomeado pelo Tribunal, cumpre a este manter, salvaguardar e assegurar a fruição ao público da mesma, tornando-se inútil a existência da F...-..., porquanto se manteria em coexistência de finalidades com o fiel depositário do Coleção, perdendo aquela o respetivo objeto, justificando a respetiva extinção, não se verificando qualquer prejuízo resultante do risco de desmantelamento da Coleção, mistura com outras obras de arte ou, até, o esbulho da mesma, não passando de considerações que não passam de retórica melodramática numa vã tentativa de fazer passar a discordância dos Recorrentes com a decisão recorrida por argumento jurídico apto a sustentar vício da sentença que levaria à revogação da mesma, devendo improceder o alegado vício Acórdão Recorrido.
F. Contrariamente ao defendido pelos Recorrentes, encontrando-se a ... salvaguardada sobre responsabilidade do fiel depositário e assegurada a respetiva manutenção, segurança e fruição pelo público, tudo o alegado não passam de conjeturas e receios infundados que os Recorrentes já têm vindo a reiterar relacionadas com a criação do novo Museu … e suposto risco de desvalorização da ... pela “mistura” com a Coleção …, não existindo, pois, qualquer urgência ou risco a salvaguardar, pois, conforme referiu o douto Tribunal a quo, os riscos de prejuízos alegados mais não são do que «“potenciados” pelo ato de extinção» e resultantes “das condições da sua (...) exibição num museu sem o nome “...” e convivendo com obras de outra proveniência e sem o mesmo valor artístico.”, não se tendo demonstrado que prejuízos importa acautelar, ficando, pois, por preencher o pressuposto legal do periculum in mora, sendo de concluir pela não verificação de erro de julgamento por parte do Tribunal a quo.
G. Os Recorrentes limitam-se a invocar pretensos prejuízos, como sejam a extinção da F...-... e impossibilidade de garantir as respetivas atribuições, nomeadamente, a salvaguarda da coleção e a fruição pública e conservação da mesma, os quais não passam de pretensos, mas inexistentes, prejuízos, assentes em meras conjeturas, pelo que, considerando o entendimento doutrinário e jurisprudencial (v. Ac. TCA Sul, de 19.12.2017, Proc. 219/17.5BELSB, Acs. TCA Norte, de 17.04.2015, Proc. 03175/14.8BEPRT, e de 03.11.2017, Proc. 03657/15.4BEBRG, disponíveis em www.dgsi.pt), o ónus de alegação de factos concretos (e não meras conjeturas), cabe ao requerente da providência cautelar, o qual não foi cumprido em sede de requerimento inicial, não sendo em sede de alegações de recurso, que a repetição das mesmas conjeturas em tom de discordância com o já decidido, motivo para alteração da decisão recorrida.”

5 – Invocadas nulidades do acórdão recorrido, foi proferido acórdão, nos termos do artº 617º, nº1 do CPC, nos seguintes termos:

“Quanto às arguidas nulidades, entendemos ser manifesta a sua improcedência.
Efectivamente, no que concerne à vertida na al. b) do n.° 1 do art.° 615.° do CPC, é entendimento uniforme da jurisprudência que ela só é operante quando seja absoluta, o que implica que haja uma total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, não bastando, por isso, que a fundamentação se apresente deficiente, errada ou incompleta. Ora, o acórdão impugnado, que se limita a apreciar o requisito do “periculum in mora”, não padece dessa omissão total de fundamentos, pois especificou os factos de onde decorria que o Estado denunciara o acordo de comodato e referiu que a eventual concessão da suspensão do acto de extinção da F... não afectava a eficácia dessa denúncia.
No que respeita à omissão de pronúncia, prevista na 1ª parte da al. d) do citado art.° 615.°, n.° 1, importa notar que ela não ocorre quando o juiz não tome conhecimento de todos os argumentos apresentados pela parte, bastando que se apreciem as questões fundamentais e necessárias à justa decisão da lide, o que pressupõe que o seu conhecimento não fique prejudicado pela solução dada a outras. Ora, o acórdão que, como referimos, apenas apreciou a verificação do requisito do “periculum in mora”, julgando prejudicado o conhecimento do “fumus boni iuris”, decidiu a questão fundamental sobre que tinha de se pronunciar no âmbito daquele requisito.”

6 – Cumprido o disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA, o Ministério Público não emitiu pronúncia.

7 – Os Autores vieram juntar aos autos, em 16/10/2023, nos termos dos artºs 426º e 651º, n.º 2, do CPC, um parecer jurídico, subscrito pelo Senhor Professor António Pinto Monteiro, “sobre a ilicitude da extinção da Fundação … – ...”, que, notificado às partes, foi objecto de pronúncia apenas pela requerida Presidência do Conselho de Ministros, defendendo que, por versar sobre a validade do acto suspendendo, tal parecer “não tem utilidade para os presentes autos cautelares”.

8 – Sem vistos, nos termos do disposto no artº 36º nº 1, al. f) e nº 2 do CPTA, mas com prévia entrega do projecto de acórdão aos Exmos. Senhores Conselheiros Adjuntos, vem o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II – QUESTÕES A DECIDIR

9 – Tendo em conta as conclusões das alegações apresentadas pelas Recorrentes Associação ... e AA, - as quais delimitam o objecto do recurso ( sem prejuízo de eventual matéria de conhecimento oficioso), nos termos dos artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do CPC, ex vi do artº 1º e 140º nº 3 do CPTA – as questões a decidir são as de saber se o acórdão recorrido enferma das nulidades invocadas e se terá incorrido em erro de julgamento quanto à apreciação dos requisitos legais da providência cautelar requerida.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III - A – Fundamentação de facto

10 – O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

“a) Em 3/4/2006, as requerentes celebraram, com o Estado Português e a FCCB, o protocolo junto como doc. n.° 1 anexo ao requerimento inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido e por via do qual se pretendia assegurar a fruição pública da ..., prevendo-se a constituição de uma fundação — a F... — e destinando-se um espaço no CCB para a sua exposição num museu que se designaria “Museu ... ” (provado por acordo das partes e face ao teor do referido documento);
b) A A … é proprietária da ... que é uma colecção de … (por acordo das partes);
c) Em 23/11/2016, as mesmas partes celebraram uma adenda ao referido protocolo, nos termos constantes do doe. n.° 3 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido (acordo das partes e teor do documento identificado);
d) Em 25/6/2007, foi inaugurado o “Museu ... ”, localizado no CCB e onde ficou exposta a ... (acordo das partes);
e) Em 26/5/2022, o Sr. Ministro da Cultura enviou, ao Presidente da A…, e este recebeu, uma carta com o teor constante do doc. n.° 4 junto com o requerimento inicial, que se dá aqui por reproduzido, onde afirmava denunciar o acordo de comodato relativo às obras da ... em termos que impediam a sua renovação em 1/1/2023 (acordo das partes e documento referido);
f) Em 6/6/2019, a “Banco 1..., SA”, o “Banco 2..., SA” e o “Banco 3... SA” intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, contra a Fundação ..., AA, “A..., SGPS, SA” e a “B..., SA” execução para pagamento de quantia certa, nos termos constantes do requerimento executivo que constitui o doc. n.° 7 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
g) Os mesmos bancos intentaram, contra a A…, procedimento cautelar de arresto que, quanto às obras que constituem a ..., veio a ser decretado por decisão de 26/7/20 19, nos termos constantes do doc. n.° 8 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido e onde foi nomeado fiel depositário o Presidente do Conselho de Administração da FCCB (aludido documento e acordo das partes);
h) Os bancos requerentes do arresto apresentaram no tribunal o requerimento que constitui o doc. n.° 11 junto com o requerimento inicial, ao qual responderam a FCCB, o Ministro da Cultura e a A..., nos termos constantes, respectivamente, dos does. n°s. 12, 13 e 14 juntos com o requerimento inicial (referidos documentos cujo teor aqui se dá por reproduzido).”

III – B – Fundamentação de direito

11 – Importa começar por apreciar as nulidades invocadas, uma vez que o conhecimento das mesmas precede o conhecimento do mérito do recurso.
Os Autores/Recorrentes invocam no presente recurso que o acórdão recorrido enferma de nulidades (i) “por falta de fundamentação quanto à questão da extinção do comodato” e (ii) “por omissão de pronúncia acerca de questões suscitadas no requerimento inicial, como a extinção do comodato e a subsistência do objecto da F... ainda que o comodato se houvesse extinguido, pelo menos enquanto se mantiver o arresto”.
Porém, não lhes assiste razão.

12 - Com efeito, a nulidade decorrente de falta de fundamentação encontra-se prevista no artº 615º, nº 1, al. b) do CPC, onde se dispõe que “1- É nula a sentença quando:(…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Constitui jurisprudência uniforme, aliás sublinhada no acórdão proferido nos autos, nos termos do artº 617º, nº 1 do CPC, que a falta de fundamentação "só é operante quando seja absoluta, o que implica que haja uma total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, não bastando, por isso, que a fundamentação se apresente deficiente, errada ou incompleta”.
Como resulta da lição do Prof. Alberto dos Reis, “O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.” (CPC anotado, Vol. V, 1984, fls 140) – entendimento plenamente adoptado na jurisprudência deste STA, nomeadamente, entre muitos outros, no acórdão proferido em 27/6/2019 ( Proc. nº 0507/11.4BALSB), com o seguinte sumário:
“(…) III - A nulidade de sentença por falta de fundamentação de facto e/ou de direito encontra-se hoje prevista no art. 615º, nº 1, alínea b) do actual CPC (anterior art. 668º, nº 1, al. b)), sendo entendimento jurisprudencial pacífico de que apenas incorre em tal nulidade a sentença que seja completamente omissa de fundamentação de facto e/ou de direito.”

13 - Ora, no caso dos autos, analisando o acórdão recorrido, verifica-se que o mesmo explicitou os fundamentos em que baseou a sua decisão, referindo na matéria de facto provada, entre outros, os factos relativos ao arresto das obras de arte integrantes da ... e ao envio e recebimento da carta de 26/5/2022, em que o Estado afirmava denunciar o acordo de comodato, tendo igualmente referido, na apreciação de direito, que : “Resulta desta matéria que, à data da produção de efeitos da denúncia do “acordo de comodato” e da extinção da F..., a ... já se encontrava apreendida judicialmente — embora se mantivesse em exibição pública no espaço do módulo 3 do CCB — estando à guarda e sob administração do Presidente do Conselho de Administração da FCCB (art.° 760.°, n.° 1, do CPC) que era um mero detentor ou possuidor precário da mesma [art° 1253.°, al. c), do C. Civil]. Porque a eventual concessão da suspensão do acto de extinção não afecta a eficácia da aludida denúncia, o deferimento da requerida providência cautelar é insusceptível de produzir efeitos sobre a situação jurídica da ... que era propriedade da A… que, no entanto, não podia dispor dela, estava à guarda e era administrada pelo referido depositário e não podia ser utilizada pela F... que, com a denúncia do comodato, deixara de ter qualquer título para a sua utilização, embora continuasse usufrutuária do espaço onde ela se encontrava. Assim, com o deferimento da suspensão de eficácia, os requerentes apenas podem conseguir que a F... mantenha a sua existência jurídica e a titularidade do referido usufruto.”
Assim, é manifesto que o acórdão recorrido não é omisso de fundamentação, quer de facto, quer de direito, pelo que se mostra improcedente a invocada nulidade, nos termos do disposto no artº 615º, nº 1 al. b) do CPC.

14 – Quanto à alegada nulidade por omissão de pronúncia, prevista no nº 1, al. d), primeira parte, do referido artº 615º do CPC, mostra-se a mesma igualmente improcedente.
Na verdade, os recorrentes defendem que essa omissão de pronúncia diz respeito a “questões” suscitadas no requerimento inicial, “como a extinção do comodato e a subsistência do objecto da F... ainda que o comodato se houvesse extinguido, pelo menos enquanto se mantiver o arresto”.
Todavia, as matérias em causa não constituem verdadeiramente questões ou pretensões que o tribunal tenha obrigação de decidir, antes configurando meros argumentos de defesa da pretensão formulada.
Ora, os próprios recorrentes reconhecem essa natureza de “argumentos” ao longo das suas alegações, referindo nomeadamente, a fls 10, que “de modo semelhante, também foi ignorado outro argumento dos requerentes”, bem como a fls 13, in fine, referem “não só este argumento não foi conhecido" e ainda, a fls 15, dizem que “a decisão recorrida não apreciou, portanto, os argumentos aduzidos pelos requerentes”.
Como constitui jurisprudência consolidada, “Não se pode «confundir» aquilo que constituem as efetivas «questões», que exigem e impõem o conhecimento pelo tribunal, com aquilo que constituem os meros argumentos, as razões ou as motivações jurídicas nas quais se sustentam uma tese e pretensão, inclusive recursiva, presente que o tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes e nos quais as mesmas assentam a sua posição no diferendo, na certeza, ainda, de que o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.” – acórdão deste STA, Secção de CA, de 14/1/2021, Proc. nº 0312/08.5BEALM.
No caso dos autos, o acórdão recorrido apreciou efectivamente a questão fundamental que lhe competia decidir, uma vez que, conhecendo do requisito legal do periculum in mora e julgando o mesmo não verificado, julgou, em consequência, prejudicado o conhecimento do fumus boni iuris, atenta a natureza cumulativa dos requisitos legais previstos no artº 120º nº 1 do CPTA.
Em consequência, mostra-se improcedente a invocada nulidade.

15 – Quanto ao mérito, invocam os recorrentes, em síntese, que a decisão recorrida enferma de ilegalidade por erro num seu pressuposto essencial, por considerarem que “a carta de 26 de Maio de 2022 não teve por efeito a extinção do comodato” e que tal carta, “em que se pretende fazer a denúncia do comodato, não é apta a produzir qualquer efeito, por falta de legitimidade do declarante.”
Invocam ainda, que “a não concessão da providência causa danos absolutamente irreparáveis, tornando a decisão contida no acto administrativo impugnado num facto consumado, pois a eventual anulação do acto de extinção da F..., num futuro que se antevê longínquo, já nenhum efeito prático poderá produzir” e que “a extinção da F... causa danos na esfera jurídica dos seus instituidores, que perdem essa qualidade, em especial na esfera jurídica dos Requerentes, pois estes deixam de ter acesso à única qualidade que lhes permite acompanhar o património que lhes pertence (pelo menos enquanto se mantiver o arresto).”

Dado que o acórdão recorrido procedeu unicamente à apreciação do requisito cautelar do periculum in mora, que julgou não verificado, concluindo que “atento que os requisitos de procedência das providências cautelares são de verificação cumulativa, terá de ser indeferida a requerida suspensão de eficácia”, importa analisar se se mostram procedentes as críticas dos recorrentes à apreciação do referido requisito.

16 – Como resulta do disposto no artº 120º nº 1 do CPTA e tem sido sublinhado pela jurisprudência, nomeadamente no acórdão deste STA proferido em 14/06/2018, na revista nº 0435/18, “I - O periculum in mora constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que justifica este tipo de tutela urgente; II - Se o fundado receio de a decisão da acção principal não vir a tempo de dar resposta às pretensões jurídicas envolvidas no litígio porque a evolução da situação, entretanto, a tornou totalmente inútil, verifica-se o periculum in mora na vertente do facto consumado; III - Se o fundado receio de que durante a pendência da acção principal surjam danos dificilmente reparáveis, porque a reintegração da legalidade não é capaz de os reparar, ou pelo menos de os reparar integralmente, verifica-se periculum in mora na vertente da produção de prejuízos de difícil reparação (…)”

Conhecendo deste requisito o acórdão recorrido discorreu nos seguintes termos:

“No caso em apreço, para averiguação do preenchimento do requisito em análise importa tomar em consideração o seguinte:
- Objecto do pedido de suspensão de eficácia é o art.° 2.°, do DL n.° 90-D/2022, de 30/12, que determinou a extinção da F...;
- A A... proprietária da ..., deu-a, em comodato, à F... quando abriu o Museu ... ;
- Esse Museu foi instalado em espaço do módulo 3 do CCB que foi cedido, em usufruto, à F... pela FCCB enquanto se mantivessem os pressupostos que haviam conduzido ao protocolo celebrado entre as requerentes, o Estado Português e a FCCB com o fim de permitir que a ... fosse exposta ao público no CCB;
- As partes desse protocolo celebraram uma adenda ao mesmo, onde se estabeleceu que o aludido comodato era renovado pelo prazo de 6 anos, contados desde 1/1/2017, sendo automaticamente renovado por iguais períodos, salvo se qualquer das partes o denunciasse com a antecedência de 6 meses em relação à data do termo inicial ou de qualquer das suas renovações;
- Em 26/5/2022, o Estado denunciou “o acordo de comodato” em termos que impediam a sua renovação em 1/1/2023;
- Por decisão judicial de 25/6/2019, foi decretado o arresto de todas as obras de arte integrantes da ..., sem prejuízo da continuação da sua exibição pública e sem que tal implicasse a remoção das mesmas do CCB, tendo sido nomeado fiel depositário o Presidente do Conselho de Administração da FCCB;
- Estabeleceu-se nos estatutos da F... que, com a sua extinção, cessaria o usufruto de que esta era beneficiária.
Resulta desta matéria que, à data da produção de efeitos da denúncia do “acordo de comodato” e da extinção da F..., a ... já se encontrava apreendida judicialmente — embora se mantivesse em exibição pública no espaço do módulo 3 do CCB — estando à guarda e sob administração do Presidente do Conselho de Administração da FCCB (art.° 760.°, n.° 1, do CPC) que era um mero detentor ou possuidor precário da mesma [art° 1253.°, al. c), do C. Civil]. Porque a eventual concessão da suspensão do acto de extinção não afecta a eficácia da aludida denúncia, o deferimento da requerida providência cautelar é insusceptível de produzir efeitos sobre a situação jurídica da ... que era propriedade da A… que, no entanto, não podia dispor dela, estava à guarda e era administrada pelo referido depositário e não podia ser utilizada pela F... que, com a denúncia do comodato, deixara de ter qualquer título para a sua utilização, embora continuasse usufrutuária do espaço onde ela se encontrava. Assim, com o deferimento da suspensão de eficácia, os requerentes apenas podem conseguir que a F... mantenha a sua existência jurídica e a titularidade do referido usufruto.
Analisados os efeitos do acto suspendendo, cumpre averiguar se, face ao alegado pelos requerentes, se pode concluir pelo preenchimento do requisito do “periculum in mora”.
Cremos que a resposta terá de ser negativa quando se analisa esse requisito na vertente do facto consumado nos termos em que este ficou definido. Efectivamente, a não concessão da suspensão de eficácia não toma totalmente inútil a eventual procedência da acção de impugnação do acto de extinção da F..., por esta situação, podendo ser revertida, não se dever considerar irreversível em termos absolutos, sendo irrelevante para tal qualificação a circunstância da anulação do acto com efeitos retroactivos poder não reparar integralmente os prejuízos sofridos, uma vez que se trata já de questão que se colocará na outra vertente em que se desdobra o requisito em apreço (cf. citado Ac. deste STA de 22/4/20 15).
Quanto aos prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação, para além daqueles que os próprios requerentes reconhecem que só indirectamente os atingem por afectarem directamente a F... (cf. art°s. 164.° a 181.°, do requerimento inicial) — e que, por isso, como referimos, se devem considerar irrelevantes —, apenas são alegados, como sendo “potenciados” pelo acto de extinção, a desvalorização da ... resultante das condições da sua exibição num museu sem o nome “...” e convivendo com obras de outra proveniência e sem o mesmo valor artístico.
O juízo que há que efectuar é se, perante os factos concretos alegados pelos requerentes, é de concluir pela existência de um risco efectivo de verificação da situação descrita como causadora de prejuízos de difícil reparação.
Ora, para além de essa concretização não constar do requerimento inicial — que se limita a uma alegação genérica e conclusiva e à afirmação que os prejuízos são apenas “potenciados” pelo acto suspendendo —, cremos que o risco existente não ficava afastado com o deferimento da providência cautelar, sempre ocorrendo independentemente desta ser ou não concedida. Efectivamente, como vimos, o indeferimento da suspensão de eficácia apenas implicará que a F... deixe de ser usufrutuária do espaço onde foi instalado o museu, pois, seja ou não concedida essa providência, sempre esta carecerá de título que lhe permita a utilização da colecção, sempre permanecendo a A... proprietária da mesma, embora sem dela poder dispor por ter sido apreendida judicialmente e se encontrar à guarda e sob administração de um fiel depositário. Assim, quer porque, em face da alegação constante do requerimento inicial, não se podia concluir pela existência de um receio fundado da verificação do prejuízo invocado, quer porque esse prejuízo não constitui uma consequência adequada do indeferimento da suspensão de eficácia, é de julgar não demonstrada a verificação do “periculum in mora na vertente agora analisada.
Nestes termos, e atento que os requisitos de procedência das providências cautelares são de verificação cumulativa, terá de ser indeferida a requerida suspensão de eficácia.”

17 – Diremos, desde já, que o acórdão recorrido fez uma correcta apreciação do direito e da sua aplicação aos factos provados.


Os recorrentes defendem na sua conclusão 10. que “ a eventual anulação do acto de extinção da F..., num futuro que se antevê longínquo, já nenhum efeito prático poderá produzir”, constituindo, por isso, um facto consumado.
Porém, os recorrentes não demonstram que, no caso de ser recusada a providência, se tornará depois impossível, em caso de procedência do processo principal, proceder à restauração natural da situação conforme à legalidade, pelo que não estamos perante uma situação que possa considerar-se irreversível, típica da definição de facto consumado.
Como bem se refere no acórdão recorrido, “ a circunstância da anulação do acto com efeitos retroactivos poder não reparar integralmente os prejuízos sofridos” integra a vertente dos prejuízos de difícil reparação e não a referente ao facto consumado – este só ocorrerá, conforme se decidiu no acórdão deste STA de 22/4/2015 (revª nº 0245/15) “se a realidade a que tende o acto suspendendo se consolidar irreversivelmente com o início da sua execução”, o que não sucede no caso dos autos.

18 – Invocam os recorrentes na conclusão 11. que a extinção da F... causa danos na sua esfera jurídica porque “deixam de ter acesso à única qualidade que lhes permite acompanhar o património que lhes pertence (pelo menos enquanto se mantiver o arresto)”.
Porém, os recorrentes não demonstram de que forma esses alegados danos são efectivamente decorrentes da aludida falta de acesso, limitando-se a defender que “a F... é o meio de, enquanto a ... se encontrar em exposição no CCB, poderem ter algum controlo sobre a sua utilização (controlo que, reitera-se, não foi impedido pelo arresto)”.
Ora, dos actos que exemplificam como integrantes desse controlo – “tomada de decisões sobre aquisição de novas obras para a colecção, empréstimos de obras, critérios de exposição, etc.,” – ou melhor, da impossibilidade de os praticar, não decorre qualquer dano próprio para os recorrentes, não se vislumbrando que daí possa resultar a produção de prejuízos de difícil reparação para o interesse que os requerentes visam assegurar no processo principal, interesse que se consubstancia na não extinção da F....
Na verdade, essa alegada impossibilidade de controlo não é manifestamente uma consequência do acto suspendendo de extinção da F..., mas sim do acto de denúncia do comodato e do arresto decretado, uma vez que a administração dos bens arrestados cabe ao depositário judicial, nos termos do artº 760º nº 1 do CPC – sendo o depositário nomeado o Presidente da FCCB e não os recorrentes.
Por isso, ainda que, por mera hipótese, viesse a ser eventualmente deferida a providência, não poderiam os recorrentes retomar esse almejado controlo, por continuarem a não ter a fruição da Colecção – pelo que os alegados danos não decorrem directamente do acto suspendendo, nem este constitui causa adequada da invocada impossibilidade de controlo.
Assim, mostra-se inteiramente correcta a posição adoptada no acórdão recorrido quando refere que “Porque a eventual concessão da suspensão do acto de extinção não afecta a eficácia da aludida denúncia, o deferimento da requerida providência cautelar é insusceptível de produzir efeitos sobre a situação jurídica da ... que era propriedade da A… que, no entanto, não podia dispor dela, estava à guarda e era administrada pelo referido depositário e não podia ser utilizada pela F... que, com a denúncia do comodato, deixara de ter qualquer título para a sua utilização, embora continuasse usufrutuária do espaço onde ela se encontrava. Assim, com o deferimento da suspensão de eficácia, os requerentes apenas podem conseguir que a F... mantenha a sua existência jurídica e a titularidade do referido usufruto.”

19 – Os recorrentes defendem agora que, afinal, o prejuízo causado pela extinção da F..., que, no artº 181º da p.i., referiram ser “indirectamente” seu, “não deixa de se repercutir “directamente” na esfera jurídica dos Requerentes, no sentido de que é um prejuízo que são estes que sofrem.”
Porém, é manifesto que os prejuízos invocados nos artºs 169º e 170º da p.i. como sofridos pela F... – o esvaziamento patrimonial da mesma em virtude da liquidação do seu património, deixando de ter o usufruto do espaço expositivo no CCB e o comodato das obras da ... – só poderão constituir, eventualmente, prejuízos directos da referida Fundação, que não é requerente nos presentes autos, e, em consequência, não podem considerar-se directamente sofridos pelos recorrentes.
Ora, como se sublinhou no acórdão recorrido, constitui entendimento consolidado da jurisprudência a exigência da natureza directa do prejuízo, bem como a verificação de um nexo de causalidade entre a execução do acto e os prejuízos invocados – como se consignou no Acórdão do STA de 26/2/1998, revista nº 43423-A, referindo que “Ter-se-à de estabelecer um nexo de causalidade entre a execução do acto e os prejuízos a sofrer pelo requerente. A este nível não relevam os prejuízos conjecturais ou eventuais, mas apenas os que resultam directa, imediata e necessariamente da execução do acto” .
Veja-se no mesmo sentido o Acórdão do STJ de 23/5/2019, Proc. nº 19/19.8YFLSB:
“IV - Na relevância deste requisito, importa atentar que (i) serão prejuízos de difícil reparação «aqueles cuja reintegração no plano dos factos se perspectiva difícil seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente»; (ii) tais prejuízos terão de resultar direta, imediata e necessariamente do ato suspendendo, carecendo de relevância para o efeito, os danos ou prejuízos indiretos ou mediatos; e (iii) terão de consistir em danos ou prejuízos efetivos, reais e concretos, sendo de desconsiderar os danos ou prejuízos meramente hipotéticos, conjeturais, ou aleatórios.”
Assim, não incorreu o acórdão recorrido em qualquer erro ao ter entendido deverem considerar-se irrelevantes aqueles invocados danos, dado que são de ocorrência mediata e indirecta para os recorrentes.

20 – Por outro lado, defendem os recorrentes que “a extinção da F... (…) possibilita a anunciada diluição da ..., sendo as obras que a integram misturadas com obras provenientes de outras colecções e integradas um futuro Museu …”, sendo que “Esta diluição da Colecção é apta a provocar a sua desvalorização, bem como a desvalorização das obras que a compõem, pois uma colecção de arte obedece a critérios próprios, não sendo um mero amontoado de peças.”- pontos 12 e 14 das conclusões.
Ora, invocar que a diluição é apta a provocar a desvalorização não corresponde à alegação de um prejuízo efectivo, real e concreto, mas a uma mera possibilidade de ocorrência incerta.
Mostra-se, assim, alegado em termos abstractos e não suficientemente caracterizados, o prejuízo resultante da hipotética diluição da Colecção.
Como bem se refere no acórdão recorrido, “O juízo que há que efectuar é se, perante os factos concretos alegados pelos requerentes, é de concluir pela existência de um risco efectivo de verificação da situação descrita como causadora de prejuízos de difícil reparação.”
No caso dos autos, esse risco, ou fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que os requerentes visam assegurar no processo principal não se encontra demonstrado, ainda que numa análise meramente perfunctória, dado que se mostra dependente de uma hipotética circunstância de, no futuro, a Colecção vir a ser “misturada” com obras de outras colecções, representando, assim, um prejuízo conjectural e meramente eventual.

21 - Importa ainda salientar que o invocado risco de diluição não deixaria de ocorrer quer fosse concedida quer indeferida a presente providência, uma vez que, em qualquer dos casos, os recorrentes, atenta a existência do arresto e a denúncia do comodato, não detêm qualquer título que lhes permita manter a fruição da Colecção.
Com efeito, a concessão da providência apenas se reflecte na existência jurídica da F... e na manutenção do usufruto, pelo que, da não concessão da mesma, não resulta de forma causal o invocado risco de diluição.
Assim, é manifesta a inteira justeza da conclusão a que chegou o acórdão recorrido no sentido de que “(…) o risco existente não ficava afastado com o deferimento da providência cautelar, sempre ocorrendo independentemente desta ser ou não concedida. Efectivamente, como vimos, o indeferimento da suspensão de eficácia apenas implicará que a F... deixe de ser usufrutuária do espaço onde foi instalado o museu, pois, seja ou não concedida essa providência, sempre esta carecerá de título que lhe permita a utilização da colecção, sempre permanecendo a A… proprietária da mesma, embora sem dela poder dispor por ter sido apreendida judicialmente e se encontrar à guarda e sob administração de um fiel depositário.”
Acresce ainda que, mesmo a entender-se verificada a alegada desvalorização, por diluição, da Colecção, tal desvantagem patrimonial não poderia configurar um prejuízo “de difícil reparação”, com o grau de dificuldade necessário para o deferimento da providência, uma vez que, em sede de acção principal, se obtiverem vencimento, sempre os recorrentes poderão ver tal prejuízo ressarcido – como decorre, aliás, do pedido indemnizatório que formularam na referida acção.

22 – Nestes termos, não enferma o acórdão recorrido das nulidades e do erro de julgamento que lhe vêm imputados pelos recorrentes.

Pelo exposto, tal como se entendeu no acórdão recorrido, conclui-se que não se encontra preenchido nos autos o requisito legal do periculum in mora, o que, atenta a exigência de verificação cumulativa de todos os requisitos previstos no artº 120º nº 1 do CPTA, determina o indeferimento da providência, ficando prejudicado o conhecimento do requisito do fumus boni iuris que os recorrentes invocam nos pontos 3 a 9 das suas conclusões e que constitui também o objecto do parecer jurídico junto aos autos. (cfr. artº 608º nº 2 do CPC).



IV – Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em Pleno, em negar provimento ao recurso e, em consequência, em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 23 de Novembro de 2023. - Liliana Maria do Estanque Viegas Calçada (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha - Cláudio Ramos Monteiro - Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho - Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete – Dora Sofia Lucas Neto Gomes.