Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02048/20.0BELSB
Data do Acordão:04/07/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
INTERESSE EM AGIR
PREÇO-BASE
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:Se, relativamente a incumprimento do dever de fundamentar a decisão de contratar (imposto pelo art. 36º nº 1 do CCP, na redação do DL nº 111-B/2017), o interesse em agir impugnatório, por parte de um concorrente não adjudicatário, é meramente objetivo, de legalidade, já o interesse em agir impugnatório, por parte do mesmo concorrente, relativamente a incumprimento do dever de fundamentar a fixação do preço base (imposto pelo art. 47º nº 3 do CCP, na redação do DL nº 111-B/2017), é, no caso, direto e pessoal, na medida em que a dúvida instalada sobre a adequação do preço base fixado se repercutiu na ponderação sobre a arguida verificação de preços anormalmente baixos de algumas das propostas concorrentes.
Nº Convencional:JSTA00071441
Nº do Documento:SA12022040702048/20
Data de Entrada:02/07/2022
Recorrente:A........., S.A.
Recorrido 1:B........., S.A. E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO TCA SUL
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Legislação Nacional:Arts 36º nº 1, 17º nº 7 e 47º nº 3 do Código dos Contratos Públicos (na redação do DL nº 111-B/2017, de 31/8), Art. 55º nº 1 a) do CPTA.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. “A…………., SA”, Contrainteressada na presente ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual, interpôs recurso de revista do Acórdão proferido em 20/10/2021 pelo Tribunal Central Administrativo Sul (cfr. fls. 3692 e segs. SITAF), que negou provimento ao recurso e que manteve a decisão proferida pelo TAC/Lisboa, em 21/5/2021 (cfr. fls. 3511 e segs. SITAF), que julgara procedente a ação, instaurada pela Autora “B…………, SA” contra a Ré “EMEL – EMPRESA MUNICIPAL DE MOBILIDADE E ESTACIONAMENTO DE LISBOA, E.M., SA”, e que, em consequentemente, anulara «o ato de adjudicação praticado no âmbito do concurso público publicitado pela Entidade Demandada para o fornecimento, instalação e manutenção dos sistemas de controlo de acessos das Zonas de Acesso Automóvel Condicionado».

2. A Recorrente/Contrainteressada (“A…………”) conclui do seguinte modo as suas alegações no presente recurso de revista (cfr. fls. 3736 e segs. SITAF):

«A. Vem o presente recurso interposto de parte do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que nega provimento ao recurso apresentado pela Recorrente e confirma a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que anulou os atos de adjudicação praticados nos lotes A, B e C do concurso público para aquisição de serviços de “Fornecimento, instalação e manutenção dos sistemas de controlo de acessos das Zonas de Acesso Automóvel Condicionado (ZAAC)”.
B. A presente revista tem por fundamento a violação da lei, em concreto, uma errada interpretação e aplicação (i) do pressuposto processual do interesse em agir, e (ii) do instituto do abuso de direito, enquanto matéria de conhecimento oficioso.
C. O STA deve pronunciar-se sobre duas questões jurídicas, que fixam o objeto do presente recurso: (i) se um concorrente tem interesse em agir, para anular o ato de adjudicação com fundamento em preterição do dever de fundamentação da decisão de contratar (da necessidade de contratação externa) e do preço base, quando não alega (nem prova) que estes vícios tenham causado qualquer lesão na sua esfera jurídica; e (ii) se o Tribunal de recurso deve conhecer do abuso de direito, apenas invocado em sede de recurso jurisdicional, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
D. No que concerne esta última questão, deve o STA fazer uso dos seus poderes de cognição alargados e proferir uma verdadeira decisão substitutiva, que fixe a melhor aplicação das normas com relevo para a conformação da situação controvertida nos presentes autos, entrando no mérito da exceção de abuso de direito invocada pela Recorrida, cujo conhecimento foi prejudicado no seio no Tribunal a quo.
E. Nesta medida, caso conclua que um concorrente tem interesse em agir, para anular o ato de adjudicação com fundamento em preterição do dever de fundamentação da decisão de contratar (da necessidade de contratação externa) e do preço base, quando não alega (nem prova) que estes vícios tenham causado qualquer lesão na sua esfera jurídica, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, deverá o STA pronunciar-se sobre se tal configura, ou não, um abuso do direito do impugnante.
F. O presente recurso de revista excecional é interposto com fundamento no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, uma vez que a sua admissão se revela necessária para uma melhor aplicação do direito.
G. Quanto ao primeiro fundamento, a discussão do mérito do presente recurso demonstra elevada utilidade jurídica, na medida em que as questões de direito suscitadas são de difícil resolução, não tendo o STA se pronunciado, ainda, acerca das mesmas.
H. Apesar do amplo tratamento que o pressuposto processual do interesse em agir tem merecido pelos nossos tribunais superiores, não se conhece qualquer acórdão transitado em julgado que verse a aplicação deste pressuposto aos casos de falta de fundamentação da decisão de contratar e do preço base (ou de outros deveres de fundamentação que o CCP reserva para estas decisões iniciais do procedimento).
I. A decisão que vier a transitar em julgado no âmbito dos presentes autos terá uma aplicação a uma miríade de casos futuros, devendo ser o STA a fixar o sentido interpretativo das normas em apreço, enquanto tribunal superior da jurisdição administrativa.
J. Deve igualmente ser o STA a fixar qual o papel dos tribunais administrativos na aferição do incumprimento de exigências legais de fundamentação previstas no CCP, através da definição daquilo que deve ser entendido como um interesse direto, atual, efetivo e legítimo do impugnante, na arguição deste tipo de vícios.
K. O acórdão recorrido, a firmar-se, estabelecerá um precedente com enormes repercussões, uma vez que, desde a reforma introduzida em 2017, o elenco de exigências de fundamentação, previsto no CCP, em particular na fase de abertura do procedimento, aumentou exponencialmente.
L. Tendo em conta o número de exigências em matéria de fundamentação dos atos iniciais do procedimento e a dificuldade de muitas entidades adjudicantes garantirem o seu pleno cumprimento, a transitar em julgado a decisão recorrida, poucos seriam os concursos públicos que estariam a salvo de uma quase certa e futura “auditoria”, realizada pelos concorrentes que não venceram.
M. Quanto ao segundo fundamento de recurso, o Tribunal a quo considerou que, por o abuso de direito apenas ter sido invocado em sede de recurso, se estaria diante de uma “questão nova”, concluindo que estaria impedido de apreciar esta exceção.
N. O Tribunal a quo cometeu um manifesto erro de direito, ao ignorar que o abuso de direito é uma questão de conhecimento oficioso, o que já foi expressamente admitido pelo STA, por exemplo, no seu acórdão de 04/12/2001, proferido no âmbito do processo n.º 047550.
O. O exercício de um direito fora dos moldes para o qual este foi criado é uma questão que reveste importância fundamental no nosso ordenamento jurídico, sobretudo se o STA entender que, não obstante tais vícios em nada terem afetado a esfera jurídica do impugnante, o mesmo tem interesse em agir.
P. Na verdade, nesse cenário, só o instituto do abuso de direito permitirá impedir a utilização abusiva das vias judiciais para anular tal ato administrativo.
Q. Pelo que deve a presente revista excecional ser admitida.
R. Apesar de inicialmente ter pedido a anulação do ato de adjudicação, por necessidade de exclusão das propostas apresentadas pela ora Recorrente e pela Contrainteressada C……… e de consequente adjudicação das propostas por si apresentadas, após a junção das contestações da EMEL e da Recorrente e do processo administrativo instrutor, a Recorrida mudou a sua estratégia processual, tendo, em sede de articulado superveniente, imputado novos vícios aos atos de adjudicação dos referidos lotes: a falta de fundamentação da decisão de contratar (apenas quanto à necessidade de contratação externa) e do preço base.
S. Sucede que, a Recorrida nunca alegou, nem provou, que a falta de fundamentação da decisão de contratar e do preço base tiveram um impacto direto e imediato no ato final do procedimento.
T. O interesse em agir exige “a verificação objetiva de um interesse real e actual, isto é, da utilidade na procedência do pedido”; este interesse tem de ser imediato e real, ou seja, tem de ser conseguido (ou prosseguido) diretamente através da procedência da ação.
U. Este interesse tem de ser legítimo, porquanto o autor tem de procurar uma tutela, por parte do ordenamento, de um direito ou de um interesse seu, que lhe seja legalmente conferido, “não relevando para o efeito as consequências indiretas, reflexas ou colaterais como o interesse abstrato na legalidade”.
V. O Tribunal a quo reconheceu interesse em agir à Recorrida, pois entendeu que, com a anulação do ato de adjudicação, “qualquer que seja o fundamento da invalidade do ato”, desapareceria a lesão do seu interesse (que se traduziria na adjudicação do contrato a outro concorrente), podendo o procedimento ser retomado, o que resultaria numa nova decisão de adjudicação das propostas concorrentes.
W. Em primeiro lugar, o acórdão recorrido erra ao considerar que o procedimento será retomado depois de a entidade adjudicante fundamentar a decisão de contratar e de fixação do preço base, “com uma nova decisão de adjudicação de uma das propostas concorrentes”.
X. Sucede que, a fundamentação após a prática do ato (i.e., depois da decisão estar tomada, de o iter cogniscivo da entidade pública estar formado) é imprestável para as funções que o dever de fundamentação visa cumprir.
Y. Não se podendo admitir uma fundamentação que seja realizada após o momento decisório, para dar cumprimento à sentença e repor a legalidade violada, não poderá a EMEL simplesmente explicitar as razões pelas quais entendeu “comprar fora” e fixar o concreto preço base constante das peças do procedimento, devendo ser aprovada uma nova decisão de contratar.
Z. Sendo aprovada uma nova decisão de contratar, ao contrário do que pressupõe o acórdão recorrido, nenhum ato do procedimento pode ser aproveitado e, como tal, nenhuma das propostas apresentadas pode vir a ser adjudicada.
AA. Em segundo lugar, o acórdão recorrido erra ao configurar o ato de adjudicação da proposta apresentada por um outro concorrente como uma lesão ao interesse da Recorrida, que lhe confere um interesse direto, pessoal, atual e efetivo a “atacar” esse ato, “qualquer que seja o fundamento da invalidade do ato”.
BB. Se o interesse em agir fosse entendido com tal amplitude, bastaria ao impugnante participar no procedimento, como concorrente, para que lhe fosse reconhecida, em moldes muito similares aos do Ministério Público, uma tutela objetiva da legalidade desse mesmo procedimento, para destruir o ato de adjudicação.
CC. Na verdade, o interesse direto, pessoal, atual e efetivo em “atacar” o ato de adjudicação não se basta com o facto de esse ato recair sobre uma outra proposta e, de o afastamento do mesmo, com a correção de eventuais ilegalidades existentes no início do procedimento, permitir ao impugnante apresentar uma nova proposta. Esse interesse pressupõe que os concretos vícios de que o ato padece tenham, de alguma forma, afetado a sua esfera jurídica, não podendo o Tribunal deixar de atender aos concretos factos alegado pelo Autor, para sustentar a sua pretensão.
DD. A exigência de fundamentação, colocada para várias decisões tomadas pelo órgão competente para a decisão de contratar na fase inicial do procedimento (entre as quais a decisão de contratar e a decisão de fixação do preço base), visa essencialmente permitir o controlo da atividade administrativa na boa utilização dos dinheiros públicos e na promoção da concorrência; e não a proteção do interesse dos particulares interessados no procedimento.
EE. Salvo raros casos, em que as opções tomadas restringem a concorrência (e por esse motivo, impedem o acesso ao procedimento ou limitam a atuação dos concorrentes, favorecendo uns ou prejudicando outros), as opções tomadas nesta fase, não se repercutem na esfera jurídica de um concorrente.
FF. A falta de fundamentação da decisão de contratar (enquanto decisão de “comprar fora”) em nada pode prejudicar os concorrentes, porquanto é a mesma que lhes permite participar no procedimento.
GG. A razão pela qual foi escolhido o preço base só poderá ter alguma repercussão na esfera jurídica dos interessados/concorrentes quando (i) o preço máximo não for suficiente para cumprir as prestações que se visa adjudicar, limitando a possibilidade de participação; ou (ii) o preço anormalmente baixo foi fixado por referência a uma percentagem do preço base e o concorrente/interessado queira questionar um erro grosseiro na fixação desse limiar de preço anormalmente baixo; tudo situações que não se verificaram no âmbito do presente procedimento.
HH. O próprio CCP denota a falta de importância para os concorrentes da decisão de contratar ou da fundamentação do preço base (que não está vertida nas peças do procedimento), ao não impor que esta seja fornecida aos interessados.
II. A falta de fundamentação do preço base não lesou a esfera jurídica da Recorrida, impedindo-a de participar no procedimento ou limitando, de alguma forma, o preço que esta apresentou (ou mesmo o preço apresentado pelos demais concorrentes).
JJ. Ao contrário do que a Recorrida procurou sustentar, o seu interesse em agir, no pedido formulado em sede de articulado superveniente, não é um interesse direto, atual e efetivo, não constituindo a presente ação uma forma de corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura (até porque, a Recorrida não sofreu qualquer lesão com o vício invocado).
KK. É, outrossim, um interesse longínquo, eventual e hipotético, só passível de se tornar real se se verificar um conjunto de factos que não são certos, nem podem ser considerados uma consequência direta da anulação do ato de adjudicação com aquele fundamento.
LL. O trânsito em julgado da sentença, que anula um ato de adjudicação com fundamento nos alegados vícios de falta de fundamentação, não determina a adjudicação da proposta da Recorrida.
MM. O interesse de um concorrente, em participar num procedimento sem tais vícios de falta de fundamentação, também não é um interesse atendível.
NN. A preterição dos deveres de fundamentação em apreço não teve o efeito de favorecer a proposta apresentada pela Recorrente ou de desfavorecer a proposta apresentada pela Recorrida, não tendo, como tal, afetado ou falseado a concorrência a verificada no âmbito deste procedimento.
OO. A única vantagem que a Recorrida obtém com a anulação dos atos de adjudicação com os vícios apontados é a possibilidade – eventual e incerta – de apresentar uma nova proposta, num distinto procedimento, conhecendo já o resultado decorrente das propostas que foram apresentadas pelos operadores económicos que são seus concorrentes no atual procedimento.
PP. O acesso aos Tribunais não pode servir para obter uma nova e segunda oportunidade de apresentar uma diferente proposta, quando as peças do procedimento e as decisões preparatórias em nada influíram na construção das mesmas.
QQ. Acresce que, este direito a apresentar uma nova proposta é um “interesse longínquo, eventual e hipotético”, “só passível de se tornar real” se a Entidade adjudicante decidir lançar um novo procedimento.
RR. É necessário, em primeiro lugar, que se mantenha “o interesse público a satisfazer através da celebração do contrato” e, em segundo lugar, que o procedimento subsequente permita a participação da Recorrida, o que pode vir a não ocorrer.
SS. Para aferir do interesse em agir da Recorrida, o Tribunal a quo não podia, como fez, atender apenas aos pedidos formulados pela Recorrida e ao efeito anulatório da sua procedência, sem curar de considerar os concretos factos alegados e que sustentam a sua pretensão.
TT. Para se aplicar, ao caso concreto, os conceitos indeterminados que concretizam o interesse em agir de um impugnante, o mesmo deve atender aos diversos factos alegados pelo autor, para sustentar a sua pretensão, e não apenas ao efeito da procedência da ação.
UU. O pedido – “a anulação do ato” – não é um direito concedido em abstrato (e sem mais), se não se verificar qualquer lesão da esfera jurídica dos destinatários pelo ato impugnado.
VV. Só através da causa de pedir, ou seja, dos concretos factos alegados quanto à lesão que se pretende afastar por via da anulação do ato, é possível saber se a utilização do processo se afigura um meio adequado para “corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura”.
WW. O facto de o Tribunal ter o poder-dever de conhecer todos os vícios do ato, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 95.º do CPTA, não o dispensa de verificar o interesse em agir para tal concreta pretensão anulatória.
XX. A ser verdade esta tese, bastaria ao autor levar a legalidade de um ato administrativo à apreciação de um tribunal, para que este tivesse de conhecer de quaisquer vícios, independente da sua repercussão na sua esfera jurídica.
YY. Nem se diga que a falta de fundamentação do preço base pode ter tido uma influência no decorrer do procedimento, e isso atribui interesse em agir à Recorrida.
ZZ. Cabia à Recorrida provar que o ato de adjudicação foi afetado pela preterição dos deveres de fundamentação (que a impediram de participar ou, de alguma maneira, condicionaram a sua proposta ou favoreceram a de outros concorrentes), o que a mesma não fez.
AAA. A ter existido um erro do júri na apreciação da normalidade dos preços constantes das propostas apresentadas pela Recorrente, o mesmo nada tem que ver com a falta de fundamentação do preço base, enquanto montante máximo que a entidade adjudicante se dispõe a pagar, mas com a apreciação da proposta apresentada pela ora Recorrente face às exigências previstas no caderno de encargos.
BBB. Adotando-se um conceito de preço anormalmente baixo como preço abaixo de custo, o preço base, enquanto preço máximo a pagar pela entidade adjudicante, e principalmente a sua fundamentação, em nada se projeta no juízo sobre a anomalia de um determinado preço.
CCC. O que permite aferir um preço anormalmente baixo não é o valor do preço base, mas o teor do projeto contratual submetido à concorrência (i.e. o caderno de encargos) e as exigências aí previstas, que terão de ser integral e pontualmente cumpridas pelo adjudicatário com o preço proposto, sendo irrelevantes as concretas razões pelas quais o preço base foi fixado em determinado valor.
DDD. A ser procedente o presente recurso, a Recorrida terá, ainda, a oportunidade de discutir a (a)normalidade dos preços propostos pela Recorrente e demais concorrentes.
EEE. Pelo que, ao concluir-se que um preço anormalmente baixo não é aferido em função de um preço base (ou da sua fundamentação) em nada limita o direito da Recorrida a discutir a (a)normalidade do preço constante da proposta apresentada pela Recorrente.
FFF. Não se pode igualmente sustentar que o reconhecimento da falta de interesse em agir a um concorrente, nos moldes acima indicados, violaria o artigo 1.º, n.º 1, terceiro parágrafo, e n.º 3 da Diretiva Recursos, na interpretação que lhe foi conferida pelo TJUE, no acórdão Lombardi.
GGG. O referido acórdão foi proferido num circunstancialismo que não tem correspondência com o dos presentes autos. Na verdade, tal acórdão (i) teve por base a especificidade do meio processual existente no direito italiano e (ii) não estavam em discussão vícios formais, ocorridos na fase inicial do procedimento, que em nada afetaram o resultado do procedimento, mas sim, o mérito das propostas apresentadas e o sentido adjudicatório do ato final.
HHH. O acórdão recorrido deve, assim, ser revogado, fixando-se o entendimento de que um concorrente só tem interesse em agir, para anular o ato de adjudicação, com fundamento em preterição do dever de fundamentação da decisão de contratar (da necessidade de contratação externa) e do preço base, quando alega (e prova) que estes vícios tenham causado uma lesão na sua esfera jurídica, não constituindo um interesse direto, pessoal, atual e efetivo em “atacar” o ato de adjudicação, a mera obtenção da possibilidade de apresentar uma nova proposta, uma vez corrigidas as ilegalidades identificadas.
III. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, deve o STA entender que a que a Recorrida tem um direito formal à arguição desses vícios, mas que o exerce em manifesto abuso de direito.
JJJ. Em primeiro lugar, deve o STA reconhecer o erro de direito do acórdão recorrido e revogá-lo, reconhecendo a oficiosidade da exceção invocada pela Recorrida e a possibilidade de ser conhecida por um tribunal de recurso, ainda que advogada ex novo perante esse tribunal, conforme sustentado no acórdão do STA de 04/12/2001, proferido no âmbito do processo n.º 047550.
KKK. Em segundo lugar, deverá o STA pronunciar-se sobre se existiu, ou não, um abuso do direito de anulação de um ato administrativo.
LLL. O resultado que a Recorrida procura obter com o pedido formulado em sede de articulado superveniente é ilegítimo, ou seja, jamais poderá ser considerado um interesse juridicamente tutelado.
MMM. A correta interpretação e aplicação das normas jurídicas carece de um controlo de resultados por parte do julgador: no caso concreto, quando seja efetuado esse controlo, deve considerar-se que fere a ideia de direito a tutela de um concorrente, que atua como a Recorrida atuou.
NNN. O STA deverá concluir pela atuação em abuso de direito de um concorrente que: (i) invoca vícios de decisões iniciais do procedimento, como forma de invalidade derivada no ato de adjudicação, mas que em nada afetaram a sua esfera jurídica, não o tendo impedido de concorrer; (ii) que obtém, como única vantagem com a anulação desse ato de adjudicação, a possibilidade de apresentar uma nova proposta, depois de conhecido o resultado obtido no concurso com a apresentação da sua primitiva proposta; (iii) ignora as consequências para o interesse público desta “segunda oportunidade”, bem como para a sã e leal concorrência entre os operadores económicos.
OOO. Tal exercício do direito de anulação do ato de adjudicação – para que a Recorrida possa apresentar uma nova proposta, depois de conhecer o resultado obtido no concurso com a apresentação da sua primitiva proposta, para tentar ganhar o contrato numa “segunda volta” – revela-se contrário à boa fé e manifestamente abusivo, em particular, quando comparados os benefícios que o concorrente obtém e os prejuízos que causa ao interesse público e à concorrência.
PPP. Deve o STA reconhecer o abuso de direito por parte da Recorrida, determinando a absolvição da EMEL e da Recorrente quanto ao pedido de anulação do ato de adjudicação com fundamento na falta de fundamentação da decisão de contratar e de fixação do preço base.
Termos em que se requer a V. Exas. seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido».

3. A Recorrida/Autora (“B…….”) apresentou contra-alegações, concluindo-as da seguinte forma (cfr. fls. 3812 e segs. SITAF):

«I. Através do despacho de 16/03/2021 (cfr. fls. 3392 do SITAF), o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou improcedente a exceção deduzida pela A……… (e pela EMEL) à admissibilidade do articulado superveniente por falta de interesse em agir nos vícios então invocados, admitiu o articulado superveniente e julgou prejudicada a invocação e a aplicação do disposto no artigo 95.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos para
efeitos do conhecimento de tais vícios.
II. A A……… não põe em causa nem discute que o ato de abertura do procedimento seja inválido, nem que essa invalidade se comunica ao ato de adjudicação, determinado a sua anulação.
III. Assim, a eventual procedência do recurso de revista interposto não produz quaisquer efeitos sobre a solução jurídica dada ao pleito pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e sobre o segmento decisório da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, integralmente mantida pelo Tribunal Central Administrativo Sul, de anulação do ato de adjudicação.
IV. Se, em resultado da eventual procedência da revista, se determinasse a falta de interesse em agir da B………. na invocação das invalidades pelas quais foi anulado ato impugnado, sempre haveria o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa de ter de revisitar a decisão que tomou de julgar prejudicada a aplicação do artigo 95.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e de, ao abrigo desta disposição, conhecer os vícios em causa, voltando a proferir sentença exatamente no mesmo sentido e com o mesmo conteúdo anulatório.
V. Inexiste, pois, qualquer utilidade, para a A…….., da procedência do recurso de revista interposto, visto que, mesmo que seja procedente a revista, voltando os autos à primeira instância, será proferida sentença exatamente idêntica, ao abrigo do disposto no artigo 95.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que se verifica a falta de interesse em recorrer. Quando assim não se entenda,
VI. Não existem fundamentos para admitir a revista quanto ao primeiro fundamento invocado, dado que (i) as instâncias julgaram de modo uniforme, em decisões judiciais amplamente fundamentadas e que procedem a uma interpretação correta e razoável e sustentada das normas aplicáveis, (ii) está em causa um caso de contornos específicos que dificilmente serão repetidos e (iii) visto que já no passado este mesmo Supremo Tribunal Administrativo julgou casos em que as invalidades imputadas ao procedimento pré-contratual em nada beliscavam os direitos dos respetivos autores.
VII. Não existem fundamentos para admitir a revista quanto ao segundo fundamento invocado, porquanto está em causa exceção perentória relativamente à qual inexiste norma legal que isente o interessado de invocar, conforme já reconhecido pelo Supremo Tribunal Administrativo em Acórdãos de 23/10/2019, processo n.º 0179/19.8BEPNF, e de 14/12/2005, processo n.º 0807/05.
VIII. Mesmo que estivesse em causa matéria de conhecimento oficioso, esse conhecimento dependeria da alegação e prova de factos no decurso da primeira instância, ainda que sem se extrair uma conclusão no pedido quanto ao suposto abuso de direito, e certo é que a A…….. nada alegou na primeira instância a este propósito e inexistem factos provados sobre a matéria, assim prejudicando a possibilidade de aplicação do Direito por parte do Supremo
Tribunal Administrativo. Quando assim não se entenda,
IX. De forma relevante verifica-se que a EMEL — entidade que cometeu as invalidades apontadas na sentença recorrida — não recorreu da sentença proferida que julgou procedente a ação proposta, com ela se conformando.
X. A matéria da suposta falta de interesse em agir foi decidida por Despacho de 16 de março de 2021, em termos que, caso tivesse sido julgada procedente, teria conduzido à decisão de inadmissibilidade do articulado superveniente — o Despacho transitou em julgado, não tendo dele sido apresentado recurso, pelo que a questão não pode voltar a ser apreciada, sob pena de ofensa do caso julgado.
XI. A decisão de abertura do procedimento consubstancia um ato administrativo que, após o anúncio, assume caráter externo e é impugnável, seja diretamente, seja indiretamente aquando da impugnação da decisão de adjudicação.
XII. A falta de fundamentação transversal da decisão de contratar produziu implicações concretas no modo como o procedimento decorreu, em especial no que respeita à fundamentação do preço base.
XIII. Há dois indícios primários para aferir a anomalia de um preço proposto: o primeiro, o desvio face ao preço base; o segundo o desvio face à média dos demais preços propostos.
XIV. Se a entidade adjudicante, após preparar as peças do procedimento, depois de fazer as suas pesquisas sobre o preço necessário à execução das prestações (atendendo a quaisquer critérios objetivos de que disponha) fixa um determinado preço base, constitui o primeiro indício de anomalia do preço que uma proposta se situe 53,38%, 52,78% ou 58,68% abaixo do preço base definido, como sucede com as propostas apresentadas pela A……...
XV. A ausência de fundamentação do preço base conduziu a que o Júri do Concurso, no Relatório Final, tecesse considerações acerca do modo como teria sido definido o preço base, afirmando que a EMEL o calculara sem atender à evolução tecnológica, mais barata, e que tal “levou à determinação de um preço base inflacionado” (cfr. fls. 1189, 1190 do processo administrativo – Facto Provado L), razão pela qual concluiu pela inexistência de indícios de anomalia dos preços propostos pela A………e pela C……...
XVI. A EMEL, na sua pronúncia sobre o articulado superveniente (artigos 103.º e 104.º), que a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa reproduziu parcialmente na p. 17 e o Acórdão recorrido reproduziu nas suas pp. 32-33, contradiz o entendimento subscrito pelo Júri do Concurso no Relatório Final, afirmando que, ao invés, “Tem, pois, pleno, detalhado e actualizado conhecimento das condições praticadas no mercado, designadamente os respectivos preços, que foram os utilizados no preenchimento da documentação inicial e que serviram de base à decisão de contratar”.
XVII. A ser verdade o que a EMEL afirmou, o Júri do Concurso incorreu em erro sobre os pressupostos de facto; e se o Júri do Concurso soubesse o que a EMEL afirma, certamente teria considerado que as propostas apresentadas pela A…….. aos Lotes A, B e C (53,38%, 52,78% ou 58,68% abaixo do preço base) e pela C………. no Lote C (43,48% abaixo do preço base) eram anormalmente baixas, conforme alegado pelos Concorrentes n.ºs 2 e 6 em sede de audiência prévia dos interessados.
XVIII. Deste modo, a falta de fundamentação do preço base, em violação do artigo 47.º, n.º 3, do Código dos Contratos Públicos, teve impacto direto e imediato no modo como foram analisadas as propostas da A………. e da C……… e como decorreu o procedimento, em termos que não podem ser supridos.
XIX. A pretensão de obtenção do efeito anulatório do ato de adjudicação corresponde, em si mesmo, a um interesse direto, pessoal e legítimo da B………., pelo que se verifica o interesse em agir.
XX. Conforme afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 29/04/2021, processo n.º 01283/16.0BEAVR, “o interesse em agir afere-se pelo alegado na petição e fixa-se no momento em que ela seja apresentada”; “é impossível que um interesse em agir, existente «in initio litis», desapareça depois”; “o interesse em agir há-de transparecer da petição e existir no início da causa; e não surge nem desaparece por circunstâncias posteriores”; e certo é que a A……….., na contestação apresentada, não deduziu exceção de falta de interesse em agir, antes a admitindo.
XXI. O interesse em agir constitui um pressuposto processual que legitima o acesso à jurisdição administrativa e à pretensão anulatória, e não um pressuposto para a possibilidade de invocação de determinados vícios, não havendo dúvidas de que nos autos ocorre o interesse em agir na impugnação da decisão de adjudicação dos Lotes A, B e C à A……….., por ser esse o ato que lesa o interesse legalmente protegido de aceder à celebração do contrato por parte da impugnante (acompanhada da D…………., S.A., quanto aos Lotes A e B).
XXII. De acordo com os Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 04/07/2013, Fastweb SpA, C-100/12, 05/04/2016, PFE, C-689/13, de 11/05/2017, Archus e Gama, C-131/16, de 05/09/2019, Lombardi, C-333/18, e de 24/03/2021, Nama, C-771/19, o interesse em agir tem de ser apreciado em termos amplos, estando verificado se o autor pretende alcançar o efeito de ser aberto novo procedimento (“pode, sendo caso disso, referirse ao eventual início de um novo procedimento de adjudicação de um contrato público”), podendo, para alcançar esse efeito, invocar-se quaisquer fundamentos.
XXIII. Existe interesse em agir em contencioso pré-contratual quando seja possível arguir vícios que permitam “que a A. pode apresentar nova proposta (só assim podendo continuar a alegar que possui um interesse pessoal e directo na impugnação do acto)” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11/07/2019, processo n.º 42/19.2BALSB).
XXIV. Estes entendimentos jurisprudenciais, que são também os doutrinários, abrangem claramente a situação dos presentes autos em que, à luz dos vícios julgados procedentes, se pretende a remoção da ordem jurídica do ato de adjudicação relativamente aos Lotes A, B e C e, consequentemente, a possibilidade de, posteriormente, vir a obter as correspondentes adjudicações em novo procedimento.
XXV. Ainda que assim não fosse, sempre poderia o Tribunal conhecer da matéria alegada, ao abrigo do artigo 95.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (matéria que o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou prejudicada, por dela ter conhecido em função do alegado no articulado superveniente), com o que sempre teria concluído nos mesmos termos.
XXVI. A procedência da pretensão da A…….. levaria à criação de um espaço livre de Direito, a um livre passe para que as entidades adjudicantes desrespeitassem as determinações dos artigos 17.º, n.º 7, 36.º, 46.º-A, n.º 2, 47.º, n.º 3, 48.º ou 71.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos.
XXVII. A tese da A…… de que só o Tribunal de Contas pode apreciar as invalidades da decisão de abertura do procedimento é ilegal por violar o artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e conduziria a uma interpretação das normas aplicáveis que é desconforme com os artigos 212.º, n.º 3, 266.º, n.º 2, e 268.º, n.º 4, da Constituição.
XXVIII. A tese da A…….. conduziria igualmente a que um autor pudesse deixar de invocar vícios de forma ou de incompetência, o que, manifestamente, não tem qualquer sustentação.
XXIX. Improcede a alegação de abuso de direito: o ato de abertura do procedimento é inválido, e a invalidade cometida teve impacto direto nas apreciações que o Júri do Concurso fez das propostas da A…… e da C……… no relatório final; tendo as conclusões do relatório final sido acolhidas pela EMEL na decisão de adjudicação, é esta inválida quanto aos Lotes A, B e C, não podendo subsistir na ordem jurídica.
XXX. Em face da tramitação que teve o procedimento pré-contratual, é evidente que o vício imputado produziu efeitos no resultado do procedimento, conforme afirmado pelas Instâncias no julgamento feito a propósito da aplicação do artigo 163.º, n.º 5, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo, de que a A……… não recorreu e que, assim, transitou em julgado.
XXXI. A procedência do suposto abuso de direito teria como efeito que se ignorasse toda a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a matéria.
XXXII. A B………. (juntamente com a D………., S.A., nos Lotes A e B) limitou-se a exercer os direitos substantivos e processuais que a lei lhe confere com vista a obter a anulação da decisão de adjudicação à A…….. dos Lotes A, B e C.
XXXIII. Se a procedência dos vícios invocados implica a abertura de novo procedimento e o renascimento da sua hipótese de vir a ser adjudicatária em tais lotes para, desse modo, celebrar e executar os contratos tidos em vista, tal é quanto baste para que se reconheça o direito processual exercido, tal como propugnado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.
XXXIV. Em todo o caso, repita-se que a solução do caso alcançada pelas instâncias seria sempre a mesma se o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ao invés de julgar prejudicada a questão da aplicação do artigo 95.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, dele tivesse lançado mão para conhecimento dos vícios que foram levados ao seu conhecimento.

Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com douto suprimento de V. Ex.as:
a) Deve ser verificada a falta de interesse em recorrer da A……..;
Assim não se entendendo,
b) Deve ser tomada decisão de não admissão de revista;
Quando assim não se entenda, e sem prejuízo do que se afirmou a propósito da potencial ofensa de caso julgado,
c) Deve o recurso interposto ser julgado improcedente, por não provado, com o que se fará
Justiça!»

4. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 13/1/2022 (cfr. fls. 3929 e segs. SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) A questão da verificação ou não de interesse em agir quando, no âmbito do contencioso pré-contratual, é invocada pela autora uma situação de ilegalidade derivada, porquanto o seu ataque ao acto impugnado, de «adjudicação», emerge de ilegalidades pretéritas, e respeitantes, nomeadamente, a peças do procedimento, visando apenas obter uma nova oportunidade para apresentar proposta diferente, mostra-se complexa, e carente de alinhamento com a jurisprudência do TJUE - ver «Acórdão Lombardi» relativamente ao artigo 1°, n°1, 3° parágrafo, e n°3, da Directiva Recursos -, sendo que a respeito da mesma foi - recentemente - admitida revista por esta Formação Preliminar [Ac 5TA de 21.10.2021, processo n°193/21.3BELR.A].

Também a respeito da - alegadamente - errada falta de conhecimento da questão sobre o invocado abuso do direito - invocada apenas em sede de recurso de apelação, defendendo a apelante que a ser entendido que a autora tem o direito forma/à arguição dos vícios invocados no articulado superveniente, o certo é que o exerce em manifesto abuso do mesmo - é necessário visitar e dilucidar a jurisprudência deste Supremo Tribunal [AC STA de 04.12.2001, processo n°047550] em face do entendimento adoptado pelo tribunal de apelação.

Assim, e apesar da decisão unânime das instâncias, sobretudo em nome da relevância jurídica das questões colocadas, mas também da necessidade de esclarecer – cimentando ou revertendo - a jurisprudência deste Supremo Tribunal, importa no caso quebrar a regra da excepcionalidade do recurso de revista, e admiti-lo (…)».

5. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste STA, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146º nº 1 do CPTA, emitiu parecer (cfr. fls. 3940 e segs. SITAF), no sentido de ser negado provimento à revista, nos seguintes termos conclusivos:

«(…) Deve ser proferido Acórdão que confirme a anulação do acto adjudicatório operada pelo Acórdão recorrido, por vício decorrente de erro nos pressupostos de facto, imputável ao Júri do Concurso, com a consequente imposição à EMEL, SA da retoma do procedimento na fase anterior à proposta daquele Júri sobre a qual recaiu o referido acto, através da promoção dos esclarecimentos sobre os preços anormalmente baixos apresentados pelos Concorrentes, entre os quais a ora Recorrente A........, SA, em cumprimento da formalidade - omitida - prevista no artigo 71º, nº 4, do CCP, como pedido pela Autora/Recorrente na Petição Inicial da Acção.
Reconhecida a essencialidade da falta de fundamentação do preço-base no alinhamento e selecção das propostas, factor verdadeiramente decisivo do acto de adjudicação, o detectado vício de falta de fundamentação da decisão de contratar perde plenitude invalidante, pois assume-se, num juízo de prognose póstuma, contrário à composição dos interesses públicos e privados em presença.
Sem prejuízo do decretamento da suspensão da instância até que haja pronúncia do TJUE no reenvio prejudicial que toma por objecto o interesse em agir em circunstâncias em tudo idênticas às da situação sub judice, deve ser julgado improcedente o recurso, por ser manifesto o interesse em agir da Recorrida B………., SA, cuja argumentação, na sua essencialidade, acompanho, não se conhecendo, por não ser manifesto, do abuso do direito, assim se confirmando o Acórdão recorrido».

6. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, mas com prévia divulgação do projeto do acórdão pelos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos, o processo vem submetido à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

7. Constitui objeto do presente recurso de revista saber se o Acórdão do TCAS recorrido, confirmativo da decisão de 1ª instância do TAC/Lisboa, procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação interposto pela Recorrente/Contrainteressada “A……..”, em face dos erros de julgamento que, pela mesma, lhe são apontados, concretamente nas conclusões das suas alegações, que delimitam o respetivo objeto. Assim, cumpre conhecer dos invocados erros de julgamento relativamente:

(i) ao pressuposto processual do interesse em agir por parte da Autora/Recorrida “B………”, e

(ii) ao “abuso de direito”, alegadamente praticado pela mesma Autora/Recorrida, enquanto matéria de conhecimento oficioso.

Liminarmente, caberá, ainda, ponderar da cognoscibilidade, no âmbito do presente recurso, da alegada invalidade anulatória do ato de adjudicação impugnado nos presentes autos – suscitada no parecer do Ministério Público -, decorrente do incumprimento, pelo júri do concurso, da formalidade imposta pelo art. 71º nº 4 do CCP.

Também liminarmente, haverá, ainda, que ponderar:
- a inutilidade da interposição do presente recurso, alegada pela Autora/Recorrida (conclusões I a V das suas alegações); e
- a impossibilidade de conhecimento do fundamento (i) do presente recurso interposto pela Recorrente/Contrainteressada, relativo ao pressuposto processual do interesse em agir da Autora/Recorrida, alegada pela Autora/Recorrida (conclusão X das suas alegações) sob pena de ofensa do caso julgado formal, formado pelo despacho de 16/3/2021, transitado sem oportuna impugnação, que julgou improcedente esta mesma exceção dilatória de falta de interesse em agir da Autora relativamente à impugnação dos vícios em questão.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

8. Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos dados como provados nas instâncias – arts. 663º nº 6 e 679º do CPC, aplicáveis “ex vi” do disposto nos arts. 1º e 140º nº 3 do CPTA.


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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

9. A questão da inutilidade da interposição do presente recurso

Alega a Autora/Recorrida, no início das suas contra-alegações (cfr. respetivas conclusões I a V) que inexiste qualquer utilidade, para a própria Recorrente “A……..”, na interposição do presente recurso de revista, uma vez que, mesmo que seja julgado procedente (decidindo-se a falta de interesse da Autora relativamente à impugnação dos vícios em questão, de falta de fundamentação da decisão de contratar e relativamente à fixação do preço-base), sempre os autos voltariam à 1ª instância, onde certamente seria proferida idêntica sentença anulatória, na sequência do conhecimento então dos vícios cujo conhecimento foi considerado prejudicado, designadamente tais vícios de falta de fundamentação da decisão de contratar e da fixação do preço-base - ao abrigo do disposto no art. 95º nº 3 do CPTA -, resultando, assim, falta de interesse em recorrer.

Mas não tem razão, uma vez que, em face do objeto do presente recurso, cumpre decidir as questões que vêm colocadas, nomeadamente sobre o pressuposto do interesse em agir da Autora relativamente à impugnação dos aludidos vícios de falta de fundamentação invocados, não cabendo, nesta sede, isto é, na decisão do presente recurso, e conforme seja o seu sentido, determinar a sequência das decisões a serem tomadas no posterior decurso processual e, muito menos, o sentido das mesmas, nomeadamente, das decisões a serem tomadas quanto aos vícios tidos por prejudicados.

Desta forma, a utilidade da interposição do recurso, por parte da Recorrente/Contrainteressada, resulta da pretendida revogação, para si favorável, da anulação judicial da adjudicação que lhe fora efetuada pela Administração.

E, para efeitos do presente recurso, o que releva para a Recorrente é, tão só, a revogação da decisão anulatória do ato de adjudicação, tomada pelas instâncias – a qual se suportou no pressuposto do interesse em agir (impugnatório) da Autora/Recorrida, que a Recorrente aqui vem negar. Resulta consequentemente verificada a sua utilidade.

10. A questão da alegada invalidade anulatória do ato de adjudicação impugnado nos presentes autos, decorrente do incumprimento, pelo júri do concurso, da formalidade imposta pelo art. 71º nº 4 do CCP.

Como vimos supra (cfr. ponto 5 supra), no seu parecer (cfr. fls. 3940 e segs. SITAF), oportunamente notificado às partes, o Ministério Público junto deste STA defende que deve ser confirmada a anulação do ato de adjudicação impugnado, determinada pelo Acórdão TCAS recorrido, mas em decorrência de diferente vício: por erro nos pressupostos de facto, imputável ao júri do concurso, pelo incumprimento da formalidade prevista no artigo 71º, nº 4, do CCP - como pedido pela Autora/Recorrente na petição inicial da ação -, com a consequente imposição à Entidade Demandada “EMEL” da retoma do procedimento na fase anterior à proposta daquele júri sobre a qual recaiu o referido ato, através da promoção dos esclarecimentos sobre os preços anormalmente baixos apresentados pelos Concorrentes, entre os quais a ora Recorrente “A……..”.

Sucede, porém, que, neste momento, está exclusivamente em causa o julgamento do recurso (de revista) interposto pela Contrainteressada/Recorrente “A…….”, sendo certo que a apreciação da questão colocada no parecer do MºPº não faz parte do objeto do recurso, tal como delimitado nas alegações da Recorrente e, especificamente, nas suas conclusões, acima transcritas (cfr. ponto 2 supra), as quais confluem no pedido recursivo apresentado de dever o STA conceder «provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido», determinando «a absolvição da EMEL e da Recorrente quanto ao pedido de anulação do ato de adjudicação com fundamento na falta de fundamentação da decisão de contratar e de fixação do preço base».

Por outro lado, o parecer do Ministério Público, tal como previsto no nº 1 do art. 146º do CPTA, há-de cingir-se a uma pronúncia “sobre o mérito do recurso” – atida, consequentemente, ao objeto do recurso -, não sendo possível a invocação de eventuais vícios do ato impugnado não abarcados em tal objeto recursivo.

É em momento processual antecedente que o MºPº pode proceder a uma tal invocação de causas de invalidade dos atos impugnados diferentes das invocadas (cfr. art. 85º nº 3 do CPTA), da mesma forma que apenas em momento processual antecedente, e já não em apreciação de recurso jurisdicional, o próprio tribunal pode/deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas (cfr. art. 95º nº 3 do CPTA e Ac.STA, Pleno da Secção, de 15/11/2012, 0159/11, e Ac.STA de 7/6/2019, 0657/17).

No presente caso, nem se punha a questão da invocação do vício em causa pelo MºPº no momento apropriado antecedente (previsto no aludido art. 85º nº 3 do CPTA), pois que, como se reconhece no parecer, a própria Autora o tinha desde logo invocado na p.i. Vício cujo conhecimento foi considerado prejudicado, em 1ª instância, pela decisão dos vícios apreciados (de falta de fundamentação da decisão de contratar e da formulação do preço contratual).

Pelo exposto, por não se incluir no âmbito do objeto do presente recurso, tal como delimitado este pela Recorrente, nem ser questão, nesta fase recursiva, de conhecimento oficioso, não se conhece da mesma.

11. A questão da impossibilidade de conhecimento do fundamento (i) do presente recurso, relativo ao pressuposto processual do interesse em agir da Autora/Recorrida, sob pena de ofensa de caso julgado formal

Como se disse, a Autora/Recorrida defende, nas suas contra-alegações (cfr. conclusão X), a impossibilidade de conhecimento – isto é, de voltar a conhecer e voltar a decidir, nesta fase processual -, do primeiro fundamento (i) do presente recurso interposto pela Recorrente/Contrainteressada, relativo ao pressuposto processual do interesse em agir da Autora/Recorrida, sob pena de ofensa do caso julgado formal, formado pelo decidido no despacho de 16/3/2021, alegadamente transitado sem oportuna impugnação, que julgou improcedente esta mesma exceção dilatória de falta de interesse em agir da Autora relativamente à impugnação dos vícios em questão.

Mas não vemos que tenha razão.

No citado despacho, de 16/3/2021, proferido a fls. 3392 e segs. SITAF, no TAC de Lisboa, na sequência da invocação, pela Autora, dos vícios de falta de fundamentação da decisão de contratar e sobre a fixação do preço-base, e após suscitação, pela Contrainteressada (aqui Recorrente) e pela Entidade Demandada da exceção dilatória de falta de interesse em agir da Autora (aqui Recorrida), decidiu-se a improcedência desta exceção dilatória.

Porém, contrariamente ao alegado, esta decisão não transitou em julgado pois que foi impugnada no recurso interposto pela Recorrente/Contrainteressada da sentença proferida em 1ª instância.

É que, tal como previsto no nº 5 do art. 145º do CPTA, «as decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida apelação autónoma nos termos da lei processual civil». Ora, as decisões que, em fase de saneamento, julguem improcedentes exceções dilatórias são, precisamente, decisões que se incluem nessa previsão normativa, podendo, assim, ser impugnadas no recurso interposto da sentença, como efetivamente sucedeu no presente caso.

Por isso, corretamente, o Ac.TCAS recorrido entendeu que aquela decisão de 16/3/2021 «só agora, e bem, nos termos do art. 644º nº 3 ex vi art. 142º nº 5 do CPTA, vem impugnada no âmbito do recurso interposto da sentença».

12. A questão relativa ao pressuposto processual do interesse em agir por parte da Autora, aqui Recorrida, “B………

12.1 A Recorrente “A…….” alega que o Ac.TCAS recorrido julgou mal ao decidir, em confirmação da sentença de 1ª instância, que assistia à Autora “B………..” um interesse relevante em agir ao impugnar o ato adjudicatório, especificamente com fundamento em vícios referentes à fase de abertura do concurso, de preterição do dever de fundamentação relativamente à decisão de contratar (à necessidade de contratação externa) e relativamente ao preço base adotado, sobretudo quando – segundo diz – a Autora não alega (nem prova) que estes vícios tenham causado qualquer lesão na sua esfera jurídica.

Mais alega que o interesse em agir exige a verificação objetiva de um interesse real, atual e imediato, conseguido diretamente através da procedência da ação, tendo errado o tribunal a quo ao entender que, com a anulação do ato de adjudicação, “qualquer que seja o fundamento da invalidade do ato”, desapareceria a lesão do interesse da Autora impugnante (que se traduziria na adjudicação do contrato a outro concorrente), podendo o procedimento ser retomado, o que resultaria numa nova decisão de adjudicação das propostas concorrentes; é que, segundo defende, contrariamente ao pressuposto no aresto recorrido, nenhum ato do procedimento poderá ser aproveitado e, como tal, nenhuma das propostas apresentadas pode vir a ser adjudicada, o que remeteria o interesse da Autora para um eventual novo concurso, de incerto resultado.

Por outro lado, defende que a fundamentação da necessidade de abertura do concurso se dirige ao controlo externo, designadamente pelo Tribunal de Contas, nada tendo a ver com os interesses dos concorrentes, e que, contrariamente ao julgado, o estabelecimento do preço-base não é suscetível de se repercutir na ponderação de “preços anormalmente baixos”, nem de conflituar com interesses da Autora ou dos outros concorrentes em geral.

A Autora/Recorrida defende, por seu lado, que a decisão de abertura do procedimento consubstancia um ato administrativo impugnável, por assumir carácter externo, e que a sua falta de fundamentação, em especial no tocante à fixação do preço-base, teve implicações concretas no modo como o procedimento decorreu.

O Ac.TCAS recorrido confirmou a decisão da 1ª instância quanto a esta questão, reconhecendo à Autora/Recorrida um interesse direto, pessoal, real e atual, tal como exigido no art. 55º nº 1 a) do CPTA, “ex vi” do art. 101º do mesmo, para impugnar contenciosamente, como concorrente preterida, o ato de adjudicação do contrato à proposta da Recorrente/Contrainteressada. E, contrariando o alegado pela Recorrente, reconheceu que não se trata de um mero interesse objetivo, de reposição da legalidade violada, que move a Autora, mas sim de um seu interesse subjetivo de, na sequência da anulação do ato de adjudicação impugnado, poder vir a ser ela a adjudicatária. Entendeu, por isto, que se encontrava justificado o interesse da Autora na lide.

Vejamos.

12.2 Em causa está a falta de fundamentação, por parte da Entidade Adjudicante, quer relativamente à decisão de contratar quer relativamente ao preço-base fixado.

Não se apresenta controvertido, nos autos, que, em ambos os casos, houve um incumprimento de imposição legal: quanto à falta de fundamentação da decisão de contratar, incumpriu-se o disposto no art. 36º nº 1 do CCP, e, quanto à falta de fundamentação do preço-base fixado, o disposto nos arts. 17º nº 7 (valor do contrato) e 47º nº 3 do mesmo CCP (preço-base).

O que a Recorrente/Contrainteressada contesta é que estes incumprimentos tenham, de alguma forma prejudicado os interesses da Autora no procedimento concursal, defendendo, portanto que, por não ter sido por eles efetivamente lesada, carece de interesse em impugnar o ato de adjudicação com fundamento nesses incumprimentos procedimentais. Alega, a este propósito, que as imposições legais em causa não se dirigem, sequer, a proteger interesses dos concorrentes, mas sim interesses de boa gestão pública, controláveis pelo Tribunal de Contas. E, de qualquer forma, mesmo a ser determinada a anulação do ato de adjudicação, o resultado seria a anulação total do concurso, sem adjudicação a qualquer das propostas, pelo que se confirmaria, assim, também por aqui, a falta de relevante interesse da Autora nesta impugnação.

12.3. Quanto ao incumprimento do dever de fundamentação da decisão de contratar (isto é, da necessidade de contratação externa, de “comprar fora”), reconhecemos que resulta dos autos que o interesse da Autora/Recorrida é, como alega a Recorrente, um interesse meramente de reposição da legalidade, já que não sobressai dos mesmos que o incumprimento legal em causa tenha afetado os interesses dos concorrentes, designadamente os da Autora, no corrente procedimento.

Efetivamente, a falta de fundamentação da decisão de contratar, consubstanciada na explanação das razões que impunham à Entidade Adjudicante a necessidade de uma contratação externa, não se repercute, pelo menos no presente caso, nos interesses dos concorrentes.

Como, a este propósito, refere Débora Melo Fernandes in “A decisão de contratar no CCP revisto” (“Comentários à Revisão do CCP”, AAFDL, 3ª edição, 2019, págs. 311 e segs.):
«Não pode, todavia, deixar de ser assinalado que o dever de fundamentação não é, neste caso, estabelecido primacialmente no interesse dos particulares – ou seja, não assume uma função primária de proteção das posições jurídicas subjetivas destes, sendo difícil recortar direitos subjetivos ou interesses legítimos que reclamem uma cautela acrescida no exercício do poder administrativo -, servindo antes uma função de incentivo à boa administração, pelo que o exame da legalidade da decisão de contratar será feito essencialmente pelas entidades e órgãos de auditoria e controlo financeiro, em particular pelo Tribunal de Contas, em termos muito próximos ou idênticos aos do exame do ato de autorização de despesa, tradicionalmente efetuado à luz de critérios de economia, eficiência e eficácia».

No mesmo sentido, cfr. Pedro Costa Gonçalves in “Direito dos Contratos Públicos”, vol. I, 3ª edição, Almedina, 2018, a págs. 431/432:
«O facto de a decisão de contratar constituir um ato interno (documentalmente, é assim sempre, pois trata-se de um ato que não tem de ser notificado nem publicado) conduz a conceber esta fundamentação como uma exigência com projeção num plano interno, que releva sobretudo no âmbito dos controlos e auditorias internas. Todavia, nos casos em que o contrato está sujeito a controlo do Tribunal de Contas, este tem de poder aceder à fundamentação da decisão de contratar e, no caso de a considerar insuficiente, exigir que a mesma seja completada».

Não significa isto que a decisão de contratar seja um ato que possa apenas dizer respeito, em todos os casos, aos órgãos de controlo da boa gestão pública, como o Tribunal de Contas, pois pode suceder que esse ato – e, inerentemente, o incumprimento da sua fundamentação - afete diretamente interesses específicos de particulares: veja-se o exemplo dado por Pedro Fernández Sánchez, in “Direito da Contratação Pública”, vol. II, Almedina, 2021, 1ª reimpressão, a págs. 864:
«impugnação que poderia suceder se um operador económico beneficiário de um direito exclusivo (lícito) se visse ameaçado pela perspetiva de celebração de um contrato que ofendesse o seu exclusivo. A mera prática da decisão de contratar já corporizaria uma ilegalidade que justificaria a sua impugnação imediata, logo que o lesado dela tivesse conhecimento por qualquer meio».

Não é, porém, o que se verifica no presente caso, em que, obviamente, apenas uma decisão de contratar (independentemente da sua fundamentação, ou seja, dos seus motivos) pode interessar à Autora/Recorrida (assim como aos restantes concorrentes). Pelo que a decisão de contratar, ou a sua falta de fundamentação, não se revelam, “in casu”, lesivas dos interesses dos concorrentes, nomeadamente da Autora/Recorrida, no procedimento.

Aliás, não deixa de ser sintomático que a própria Autora/Recorrida sustente o seu interesse em agir sobretudo na vertente da fixação do preço-base:
«a falta de fundamentação transversal da decisão de contratar produziu implicações concretas no modo como o procedimento decorreu, em especial no que respeita á fundamentação do preço-base» - cfr. conclusão XII das suas contra-alegações (sublinhado nosso).

E a verdade é que a explanação que a Autora/Recorrida efetua sobre tais implicações referem-se, sempre, à violação do dever de fundamentação da fixação do preço-base e nunca à violação do dever de fundamentação da decisão de contratar, especificamente considerada (cfr. v.g., conclusões XV e XVIII das suas contra-alegações).

Não obstante, a jurisprudência do TJUE invocada nos autos, poderia ser convocada em defesa do interesse em agir da Autora/Recorrida relativamente a esta violação do dever de fundamentar a decisão de contratar, ainda que estando em causa um interesse de mera reposição da legalidade, por parte da Autora impugnante, ao poder abrir-lhe o caminho a uma nova “chance” de obtenção da adjudicação do contrato.

Porém, como veremos de seguida, já é de reconhecer à Autora/Recorrida um claro interesse subjetivo na impugnação do ato adjudicatário pelo diferente vício de violação de fundamentação da fixação do preço-base, por ter este efetivamente afetado os interesses dos concorrentes – designadamente, da Autora/Recorrida - no presente procedimento concursal.

12.4. É que resulta dos autos que este incumprimento, por parte da Entidade Adjudicante, do dever de fundamentação da fixação do preço-base, teve efetiva repercussão no desenrolar do procedimento concursal.

Conforme consta (a fls. 10) do Relatório Final do Júri do Concurso (junto com o P.A. e como doc. 2 com a p.i., e referido no ponto L dos factos provados):
«(…) parece-nos claro que, através do presente procedimento, foram revelados novos métodos e soluções que a Entidade Adjudicante não levou em conta aquando do cálculo do preço base, o que leva o Júri a concluir que, considerada a permanente evolução do mercado, o preço base calculado com recurso ao histórico de procedimentos levou à determinação de um preço inflacionado, o que originou a discrepância que se verifica entre este e o preço das propostas apresentadas (…)».

Se assim foi, não só estamos perante um verificado incumprimento de norma legal impositiva – falta de fundamentação do preço-base fixado pela Entidade Adjudicante, em desrespeito ao disposto nos arts. 17º nº 7 e 47º nº 3 do CCP -, como se constata que essa falta de fundamentação terá escamoteado e permitido a fixação de um preço-base inflacionado, manifestamente desadequado ao procedimento contratual em questão.

Porém, verifica-se que a Entidade Adjudicante veio depois, nos presentes autos, desmentir o Júri do Concurso, referindo que:
«(…) Por outro lado, nenhuma censura merece igualmente a fixação dos preços base para os diversos lotes à contratação, pois os mesmos foram fixados tendo por base os parâmetros e condições até então praticados, com referência aliás a variadíssimos contratos anteriores celebrados (...). A EMEL, nos últimos anos, para além de ter vindo a contratar sucessivamente os serviços de implementação, manutenção preventiva e corretiva do sistema de controlo de acessos às ZAAC sob sua responsabilidade (…), tem vindo a celebrar contratos de implementação e manutenção de sistemas de CCTV (…). Tem, pois, pleno, detalhado e atualizado conhecimento das condições praticadas no mercado, designadamente os respetivos preços, que foram os utilizados no preenchimento da documentação inicial e que serviram de base à decisão de contratar» - cfr. seu articulado a fls. 3300 SITAF.

Ora, não é possível deixar de concluir que esta incerteza quanto à justeza do preço base fixado - proporcionada, no concurso, pelo incumprimento, por parte da Entidade Adjudicante, do dever legal da respetiva fundamentação -, teve efetiva repercussão no desenrolar do concurso.

É que esta discrepância entre a Entidade Adjudicante e o Júri do Concurso quanto à adequação do preço-base fixado não pode considerar-se irrelevante: desde logo, se a razão estiver do lado da Entidade Adjudicante, então o Júri apreciou as propostas incorrendo em pressuposto errado que ele próprio formou – de desadequação, por inflacionamento, do preço-base fixado pela Entidade Adjudicante -, nomeadamente nas decisões que tomou face às arguições de “preços anormalmente baixos” dirigidas a algumas propostas (designadamente, às propostas melhor classificadas).

Sendo certo que a fixação do preço-base tem sempre repercussões num procedimento concursal. E isto, por duas vias: 1º - por ser o preço-base fixado num concurso por uma Entidade Adjudicante um referencial relevante na conformação das propostas apresentadas pelos concorrentes, já que se trata do preço máximo que aquela Entidade está disposta a pagar, levando a presumir-se que é um valor consentâneo com o valor real do concurso (o que, no caso, pelos vistos, pode não ter ocorrido); 2º - por outro lado, por que tal preço-base condiciona, entre o mais, o próprio conceito de “preço anormalmente baixo”, arguido no presente procedimento relativamente a algumas propostas.

Nesta parte, a Recorrente discorda, alegando que o preço-base fixado em nada se relaciona com o conceito de “preço anormalmente baixo”.

Mas não tem razão, pelo menos constatando o que efetivamente ocorreu nos presentes autos.

É que essa afirmação é, desde logo, desmentida pelo concretamente sucedido no presente concurso: veja-se que o Júri do Concurso rejeitou as arguições de “preço anormalmente baixo” assacadas a algumas propostas argumentando que tal não se verificava pois que, precisamente, o preço-base fixado pela Entidade Adjudicante é que estaria inflacionado (e não os preços das propostas demasiado baixos): «O preço base calculado com recurso ao histórico de procedimentos levou à determinação de um preço base inflacionado, o que originou a discrepância entre este e o preço das propostas apresentadas».

E é indesmentível que um significativo afastamento entre um preço-base fixado e um preço apresentado por uma proposta pode ser sempre um indício de “preço anómalo” que, pelo menos, imponha um contraditório tendente ao esclarecimento (como previsto no art. 71º nºs 2 e 3 do CCP).

Aliás, a revisão do CCP de 2017 (DL nº 111-B/2017, de 31/8) - aplicável ao presente procedimento concursal -, reforçada, neste campo, na revisão de 2021 (Lei nº 30/2021, de 21/5) «procurou tornar clara a competência discricionária da Entidade Adjudicante na consideração de uma proposta como contendo um preço anormalmente baixo (artigo 71º nº 3)» (cfr. Duarte Rodrigues Silva, “O preço anormalmente baixo na revisão do CCP de 2021”, in “A Revisão do CCP de 2021 – Atas da Conferência”, AAFDL, 2021).

Assim, resultando dos autos que o incumprimento da Entidade Adjudicante teve efetiva influência no procedimento concursal, designadamente na forma de apreciação das propostas por parte do Júri do Concurso, sem ser possível prognosticar como teria o mesmo decorrido caso não tivesse ocorrido tal incumprimento, não é possível negar-lhe relevância invalidante, nem negar interesse em agir por parte da Autora/Recorrida, ao pretender ver anulado o ato adjudicatório.

12.5. Como já acima se referiu, no decorrer dos autos, foi chamada à colação a jurisprudência do TJUE, concretamente o Acórdão de 5/9/2019, C-333/18 (“Lombardi, SRL”), no sentido da confirmação do interesse em agir, por parte da Autora, com base na vantagem que para si adviria, quanto mais não fosse, na participação num eventual novo procedimento concursal.

Entendemos, porém, que estamos, aqui, perante situação diversa.

No citado aresto do TJUE - cuja orientação é comungada noutros (de 4/7/2013, C-100/12, “FastWeb”; de 5/4/2016, C-689/13, “PFE”; de 11/5/2017, C-131/16, “Archus e Gama”; e de 24/3/2021, C-771/19, “Nama”) - estava em causa o interesse de um concorrente, cuja proposta fora excluída, em anular um concurso por forma a conseguir participar num eventual novo procedimento concursal, a ser aberto em consequência da anulação do concurso em causa. E aí se afirmou que os concorrentes têm um interesse legítimo na exclusão de propostas de outros concorrentes, na medida em que, em consequência dessa eliminação, mantenham uma “chance” de o contrato lhes poder vir a ser adjudicado num futuro procedimento. E considerou-se que nem mesmo uma incerteza sobre a efetiva repetição do procedimento é suficiente para afastar esse legítimo interesse.

Ora, no presente caso, a Autora/Recorrida não foi excluída do concurso: as suas propostas foram admitidas e classificadas (nos diferentes lotes); apenas não saíram vencedoras. E, diferentemente do alegado pela Recorrente/Contrainteressada, não se prefigura que o presente procedimento tenha que ser totalmente anulado, pois que, estando em causa a anulação da adjudicação por vício referente ao incumprimento do dever de fundamentar a fixação do preço-base, o procedimento só terá, necessariamente, que ser refeito a partir desse momento: de fixação e fundamentação do preço-base.

E também não colhe a alegação da Recorrente/Contrainteressada de que o procedimento seria totalmente inaproveitável por ser inadmissível uma fundamentação “a posteriori” por parte da Entidade Adjudicante: é que, refazendo-se o procedimento concursal a partir do indicado momento, a Entidade Adjudicante não vai, obviamente, proceder a uma fundamentação “a posteriori”, mas sim a uma fundamentação contemporânea do ato a renovar – isto é, da fixação do preço-base.

Assim, no presente caso, o interesse em agir da Autora/Recorrida mostra-se direto, pessoal e atual, no que respeita ao vício de violação da fundamentação da fixação do preço-base, pois que este interferiu com os interesses dos concorrentes – designadamente da Autora/Recorrida – no presente procedimento, pelo que o seu interesse em agir se apresenta, quanto a este vício, como um interesse claramente subjetivo, e não de simples reposição da legalidade, como decorreria apenas do vício de violação do dever de fundamentação da decisão de contratar (ainda que este pudesse ser, só por si, relevante, à luz da aludida jurisprudência do TJUE).

13. A questão do “abuso de direito”, alegadamente praticado pela Autora/Recorrida, enquanto matéria de conhecimento oficioso.

13.1 A Recorrente/Contrainteressada alega, neste seu recurso de revista, que o Ac.TCAS recorrido julgou mal ao ter entendido não poder conhecer, por se tratar de “questão nova”, do “abuso de direito” que a mesma, no seu recurso de apelação, assacara à conduta da Autora/Recorrida ao intentar a presente ação impugnatória.

O Ac.TCAS recorrido julgou, a este propósito:
«Quanto à alegação de que a autora/recorrida procura no processo uma tutela objetiva da legalidade, em abuso de direito, verifica-se que a recorrente nunca antes havia invocado qualquer atuação abusiva da autora até ao presente momento, precludindo, assim, a sua possibilidade ou legitimidade para o fazer.
Os recursos jurisdicionais são meios de impugnação de decisões judiciais, não devem ser utilizados como meio de julgamento de questões que não tenham sido oportunamente invocadas (e, portanto, debatidas e decididas). Significa isto que depois de proferida a decisão em primeira instância não pode ser apreciada, designadamente em sede de recurso jurisdicional, qualquer questão nova, exceto se for de conhecimento oficioso.
Assim, por a enunciada questão constituir questão nova, está dela este tribunal de recurso impedido de conhecer».

Sucede, porém, que a Recorrente/Contrainteressada tem razão quando invoca que, contrariamente ao julgado, o abuso de direito constitui questão de conhecimento oficioso. Como tem sido jurisprudência firme quer deste STA quer do STJ.

Veja-se o Acórdão deste STA, citado nos autos, de 4/12/2001 (proc. 047550):
«Os recursos destinam-se a rever as decisões recorridas e não a criar decisões novas. Por isso, o recorrente não pode recorrer de questões que não foram decididas na sentença revidenda.
Excetua-se o caso de conhecimento oficioso pelo próprio Tribunal, como é no do abuso de direito, por ser determinado pelo conhecimento dos limites internos desse direito».

Também o Acórdão deste STA de 27/10/2004 (proc. 01214/02):
«(…) Trata-se de matéria de conhecimento oficioso».

Igualmente, o Acórdão deste STA de 16/1/2008 (proc. 0853/07):
«A apreciação da existência de abuso do direito, reconduzindo-se à determinação dos limites internos de um direito, consubstancia matéria de indagação do direito, em que o Tribunal tem poderes de cognição não dependentes das alegações das partes (art. 664.º do C.P.C.) [atualmente, art. 5º nº 3], pelo que é matéria de conhecimento oficioso».

E, neste Acórdão se explana:
«(…) 8 – O Réu invoca ainda o abuso do direito, como obstáculo à pretensão dos Autores.
A questão do abuso do direito não foi suscitada perante o Tribunal recorrido mas não há obstáculo à apreciação da questão neste recurso jurisdicional.
Na verdade, os recursos jurisdicionais têm por objeto a decisão recorrida, pelo que, em regra, não podem ser neles apreciadas questões que não tenham sido submetidas à apreciação das instâncias. Mas, esta restrição aos poderes de cognição dos tribunais de recurso não abrange as questões de conhecimento oficioso, pois, se estas podem ser conhecidas por iniciativa do Tribunal, mesmo sem terem sido suscitadas pelas partes, também poderão sê-lo quando estas as suscitam em recurso jurisdicional, sem as terem suscitado perante as instâncias, pois, como é óbvio, o facto de as questões serem suscitadas pode ter como efeito uma ampliação dos poderes de cognição dos tribunais de recurso e não uma diminuição.
Ora, o conhecimento do abuso do direito, reconduzindo-se à determinação dos limites internos de um direito, consubstancia matéria de indagação do direito, em que o Tribunal tem poderes de cognição não dependentes das alegações das partes (art. 664.º do C.P.C.).
Assim, na esteira do defendido pelo Prof. VAZ SERRA, tem vindo a ser reconhecido, uniformemente a nível do Supremo Tribunal de Justiça, nas últimas décadas, que é de conhecer oficiosamente o abuso do direito. (VAZ SERRA em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 112, página 131, Abuso do Direito publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 85, página 334, e em Revista de Legislação e Jurisprudência ano 113, página 300).
Após a crítica que, neste último número da Revista, foi feita ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-78, que decidira no sentido da impossibilidade de conhecimento oficioso do abuso do direito, supõe-se que não exista qualquer decisão deste Supremo Tribunal sobre o conhecimento do abuso do direito que não tenha aderido à tese do conhecimento oficioso.
Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, alguns dos quais sustentam a posição na afirmação de a proibição do abuso do direito corresponder a um princípio de interesse e ordem pública:
– de 21-6-86, proferido no recurso nº 72819, publicado no BMJ nº 353, página 475;
– de 25-6-86, proferido no recurso nº 1344, publicado no BMJ nº 358, página 470;
– de 5-2-87, proferido no recurso nº 73777, publicado no BMJ nº 364, página 787;
– de 26-10-89, proferido no recurso nº 76856, publicado no BMJ nº 390, página 398;
– de 10-12-91, proferido no recurso nº 80295, publicado no BMJ nº 412, página 459;
– de 21-9-93, proferido no recurso nº 83983, publicado na CJ – Acs. do STJ, ano I, t. III, pág. 19;
– de 22-11-94, recurso nº 85879, publicado na CJ – Acs. do STJ, ano II, t. III, pág. 157;
– de 14-10-97, recurso nº 540/97, publicado na CJ – Acs. do STJ, ano V, t. III, pág. 71;
– de 4-11-97, recurso nº 207/96;
– de 1-10-98, recurso nº 336/98;
– de 4-11-99, nº 744/99, publicado na CJ – Acs. do STJustiça, ano VII, t. III, pág. 78;
– de 25-1-99, recurso nº 602/99, publicado na CJ – Acs. do STJ, ano VII, t. III, pág. 124;
– de 6-4-2000, recurso nº 105/99; e
– de 10-5-2000, recurso nº 887/99.
Também neste sentido, pode ver-se o recente Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 4-12-2001, proferido no recurso n.º 47550.
Em sintonia com esta jurisprudência, entende-se que não há obstáculo ao conhecimento da questão de abuso do direito colocada pelo Município recorrente no presente recurso jurisdicional».

Também no Acórdão do STJ de 11/1/2011 (proc. 801/06) se julgou:
«(…) Trata-se de matéria nova que não foi conhecida, por não invocada, quer na 1ª instância, quer na Relação (onde nem sequer insinuada nas conclusões da apelação).
Só agora e no corpo da alegação se diz “in cauda” que “os argumentos acima expendidos são claramente demonstrativos do abuso de direito com que o Recorrido litigou”.
(…) Daí que, sendo este instituto de conhecimento oficioso, se aborde a questão nas suas várias perspetivas (…)».

Tratando-se, pois, de questão de conhecimento oficioso, pode/deve ser conhecida quer pelo tribunal de apelação quer pelo tribunal de revista, ainda que só tenha sido invocada após o julgamento em 1ª instância, ou mesmo que não tivesse, sequer, sido invocada pelas partes.

13.2. Entende-se, porém, que não procede a alegação da Recorrente/Contrainteressada quanto ao invocado “abuso de direito” relativamente à iniciativa impugnatória da Autora/Recorrida.

Desde logo porque, da mesma forma que no Acórdão de 30/1/2002 deste STA (proc. 048093) já se julgou – em decisão perfeitamente adaptável ao presente caso:
«A denúncia de que a ora recorrida teria agido com abuso do direito confina com a questão da sua legitimidade, já que esse abuso vem apresentado como exclusivamente advindo de ela carecer de qualquer interesse real e sério no provimento do recurso contencioso. Contudo, e estando assente que a aqui recorrida tinha legitimidade para interpor o recurso, assente está também, e de um modo necessário, que ela tinha um interesse (aliás qualificado – cfr. o art. 46º, n.º 1º, do RSTA) na supressão dos atos que impugnara – pois a aceitação da conveniência de um qualquer predicado envolve sempre a aceitação da conveniência dos elementos constitutivos da sua definição. Assim, soçobra claramente a denúncia de que haveria abuso do direito».

Assim, paralelamente no caso dos presentes autos, tendo-se concluído pela legitimidade da Autora/Recorrida e, especificamente, pela detenção de um relevante e atendível interesse em agir impugnatório, tal conclusão faz soçobrar a denúncia de abuso de direito.

E é de salientar, ademais, que a argumentação utilizada pela Recorrente/Contrainteressada para sustentar a alegação do abuso de direito impugnatório por parte da Autora/Recorrida, coincide plenamente com os pressupostos em que a jurisprudência do TJUE abriga o atendível interesse impugnatório dos concorrentes em procedimentos de pré-contratação pública.

Veja-se: A Recorrente alega que a atuação da Autora/recorrida configura “abuso de direito” porque:
«A única vantagem que a Recorrida obtém com a anulação dos atos de adjudicação com os vícios apontados é a possibilidade – eventual e incerta – de apresentar uma nova proposta, num distinto procedimento» (conclusão OO)
«O acesso aos Tribunais não pode servir para obter uma nova e segunda oportunidade de apresentar uma diferente proposta» (concussão PP)
«Acresce que, este direito a apresentar uma nova proposta é um “interesse longínquo, eventual e hipotético”, “só passível de se tornar real” se a Entidade adjudicante decidir lançar um novo procedimento» (conclusão QQ)
«O STA deverá concluir pela atuação em abuso de direito de um concorrente que: (i) invoca vícios de decisões iniciais do procedimento, como forma de invalidade derivada no ato de adjudicação, mas que em nada afetaram a sua esfera jurídica, não o tendo impedido de concorrer; (ii) que obtém, como única vantagem com a anulação desse ato de adjudicação, a possibilidade de apresentar uma nova proposta, depois de conhecido o resultado obtido no concurso com a apresentação da sua primitiva proposta; (iii) ignora as consequências para o interesse público desta “segunda oportunidade”, bem como para a sã e leal concorrência entre os operadores económicos» (conclusão NNN)
«Tal exercício do direito de anulação do ato de adjudicação – para que a Recorrida possa apresentar uma nova proposta, depois de conhecer o resultado obtido no concurso com a apresentação da sua primitiva proposta, para tentar ganhar o contrato numa “segunda volta” – revela-se contrário à boa-fé e manifestamente abusivo, em particular, quando comparados os benefícios que o concorrente obtém e os prejuízos que causa ao interesse público e à concorrência» (conclusão OOO)

Como se vê, é toda esta argumentação que é frontalmente contrariada pela jurisprudência do TJUE (Acórdão “Lombardi” e demais arestos acima referidos).

Por isso, tem inteira razão A Autora/Recorrida quando observa, nas suas contra-alegações que:
«A procedência do suposto abuso de direito teria como efeito que se ignorasse toda a jurisprudência do TJUE sobre a matéria» (conclusão XXXI)
«Se a procedência dos vícios invocados implica a abertura de novo procedimento e o renascimento da sua hipótese de vir a ser adjudicatária em tais lotes para, desse modo, celebrar e executar os contratos tidos em vista, tal é quanto baste para que se reconheça o direito processual exercido, tal como propugnado pela jurisprudência do TJUE» (conclusão XXXIII).

Note-se, porém, que o interesse em agir da Autora/Recorrida, tal como configurado no caso dos presentes autos – e no que se refere à específica violação do dever de fundamentação da fixação do preço-base -, nem sequer se configura, como acima ficou dito, como um interesse de um concorrente excluído, meramente dirigido à participação num eventual futuro concurso. Diferentemente, o interesse aqui em causa, detido por um concorrente não excluído (embora preterido na adjudicação), dirige-se, de modo mais próximo e direto, à “chance” de que a adjudicação ainda lhe venha a ser conferida no presente procedimento concursal, na sequência da peticionada anulação contenciosa do ato adjudicatório que impugna.


*

IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Negar provimento ao presente recurso de revista interposto pela Recorrente/Contrainteressada “A……….., S.A.”, mantendo, assim, o Acórdão do TCAS recorrido, ainda que com diferente fundamentação.

Custas a cargo da Recorrente/Contrainteressada.

D.N.

Lisboa, 7 de abril de 2022 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.