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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01340/23.6BELRA
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:REENVIO PREJUDICIAL
PEDIDO DE REVISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
GARANTIA
Sumário:I - A conclusão, no julgamento, de que não há desconformidade dos artigos 52.º da LGT e 169.º do CPPT com o Direito da União não obsta a que se conclua que não estão preenchidos os pressupostos de que está dependente o reenvio prejudicial.
II - Não estão preenchidos tais requisitos se a resolução da questão de mérito dos autos não passa pela interpretação e aplicação de normas de Direito da União Europeia mas, tão só, pela interpretação e aplicação de normas do ordenamento jurídico interno.
III - O pedido de revisão oficiosa efectuado ao abrigo do disposto no art. 78.º, n.º 1, 2.ª parte, da LGT, não tem o efeito suspensivo da cobrança da prestação tributária a que se refere o art. 52.º, n.º 1, da mesma lei e o art. 196.º do CPPT, ainda que o pagamento da dívida exequenda e do acrescido se encontre garantido, a menos que seja apresentado no prazo da reclamação graciosa, caso em que equivale a esta e, por isso, pode ser considerado como “reclamação” para efeitos de suspensão da execução fiscal.
IV - Esta solução legislativa – de não conferir efeito suspensivo ao pedido de revisão efectuado para além do referido prazo, mesmo que o pagamento da dívida exequenda e do acrescido esteja garantido – resulta da falta de previsão do pedido de revisão oficiosa no texto da lei (art. 52.º, n.º 1, da LGT e art. 196.º, n.º 1, do CPPT) e está conforme outras soluções legislativas, designadamente a que resulta da conjugação dos n.ºs 1 e 4, alínea b), do art. 49.º da LGT.
V - Por outro lado, essa solução não se mostra desajustada, na medida em que, enquanto os meios impugnatórios indicados no art. 52.º da LGT e no art. 196.º do CPPT têm de ser deduzidos dentro de prazos relativamente curtos, o pedido de revisão oficiosa pode ser apresentado até quatro anos após a liquidação ou até a qualquer momento, se não tiver havido pagamento do tributo (cfr. 2.ª parte do n.º 1 do art. 78.º da LGT), o que significa que, a ser-lhe concedido efeito suspensivo da execução fiscal, existiriam consequências negativas relevantes ao nível da segurança jurídica e da celeridade na cobrança das receitas tributárias prosseguida pela execução fiscal.
VI - Tal solução também não afecta a tutela judicial efectiva pois o legislador não deixa de ser livre de conformar aqueles meios, não sendo de todo o modo obrigado a prever meios iguais para situações diversas, considerando ainda que a identidade ou diversidade das situações em presença há-de resultar de uma perspectiva global que tenha em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre si.
VII - Nem tão pouco afronta o princípio da igualdade pois este reconduz-se a uma proibição de arbítrio, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais.
Nº Convencional:JSTA000P32094
Nº do Documento:SA22024041001340/23
Recorrente:A... SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. “A... SA”, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente a Reclamação por si deduzida da Decisão do Órgão de Execução Fiscal que indeferiu o pedido de manutenção da suspensão dos processos de Execução Fiscal contra si instaurados para cobrança coerciva de dívidas referentes a Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), relativo ao ano de 2019, no montante global de € 193.160,52, interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Tendo alegado, aí concluiu nos seguintes termos:

«a) A sentença recorrida encontra-se viciada em razão do não exercício, pelo Tribunal a quo, do seu poder de livre apreciação das regras de Direito perante a factualidade relevante subjacente ao caso sujeito a seu escrutínio, particularmente quando deixou de atender a determinado instituto ou regime jurídico efetivamente suscitado pelo Recorrente em sede de primeira instância, cuja aplicação permitia repor a legalidade no caso concreto, mediante anulação do ato tributário impugnado;

b) O Tribunal a quo indagou, recortou, interpretou e subsumiu deficientemente os comandos legais aplicáveis às circunstâncias do caso vertente, desconsiderando que, nos termos e para os efeitos do disposto n.º 1 do artigo 52.º da LGT e n.ºs 1 e 2 do artigo 169.º do CPPT, estando a Recorrente em prazo para contestar (e tendo mesmo contestado, no âmbito do processo n.º 1245/23.0BELRA) judicialmente a legalidade dos atos tributários subjacentes aos processos de execução fiscal sub judice, a Autoridade Tributária deveria ter mantido a sua suspensão, até que se consolidasse na ordem jurídica uma decisão judicial definitiva sobre o mérito da questão (in casu, no âmbito da impugnação judicial);

c) É o próprio Tribunal a quo que reconhece a suscetibilidade de a “impugnação judicial”, per se, poder suspender um processo de execução fiscal, mediante prestação de garantia, não fazendo qualquer distinção nos seus antecedentes (cf. a página 6 da sentença recorrida, negrito e sublinhado da Recorrente).

d) A ratio legis dos artigos 169.º do CPPT e 52.º da LGT é a de permitir a possibilidade de suspensão da execução sempre que esteja pendente a discussão da legalidade da liquidação, pelo que, sabendo-se que a impugnação judicial (ainda que subsequente à apresentação de uma revisão oficiosa) (i) permite discutir a legalidade dos atos tributários e, (ii) é um expediente que vem taxativamente previsto no n.º 1 do artigo 169.º do CPPT e no n.º 1 do artigo 52.º da LGT, deve o ato em matéria tributária em crise ser anulado e substituído por outro que efetive a suspensão dos processos de execução fiscal em apreço;

e) A suspensão da execução só é efetivada, quanto ao seu termo inicial, quando o contribuinte (i) preste garantia idónea e (ii) tenha diligenciado pela apresentação de um expediente que permita a discussão da dívida exequenda, pelo que, sabendo-se que, no caso concreto, a quantia exequenda se encontra garantida por uma fiança, em momento algum os cofres do estado ficam lesados pela circunstância da execução permanecer suspensa até que se consolide na ordem jurídica uma decisão sobre a impugnação judicial (ainda que seja subsequente à revisão oficiosa);

f) Quanto ao termo final da suspensão da execução, a não ser que o Tribunal a quo parta do pressuposto de que, em sede de impugnação judicial, nunca será proferida uma decisão final, carece de razoabilidade prática o argumento segundo o qual se verifica ad eternum a cobrança coerciva das dívidas tributárias;

g) Ao adotar o entendimento ora vertido, é o próprio Tribunal a quo que, nas suas palavras, contorna limitações legais, estendendo um efeito de impossibilidade de suspensão do processo de execução fiscal a um meio processual legalmente previsto (e consagrado) na lei como apto para o efeito: a impugnação judicial;

h) Ao negar o efeito suspensivo da execução fiscal na pendência da discussão da legalidade do ato tributário que incorpora da dívida exequenda, a Autoridade Tributária, com a chancela do Tribunal a quo, efetua uma interpretação ultra restritiva dos artigos 169.º do CPPT e 52.º da LGT, interpretação que afronta claramente as regras e princípios jurídicos constitucionalmente protegidos, como sejam os princípios da legalidade (cf. a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 103.º da CRP) e, bem assim da igualdade da atuação da Autoridade Tributária e do acesso ao direito (cf. o artigo 13.º da CRP) – violação cujos efeitos desde já se suscitam, de modo processualmente adequado, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional;

i) A possibilidade de suspensão de um processo de execução fiscal, corresponde a uma elementar garantia dos contribuintes, pelo que, se a lei não exclui, em qualquer circunstância, a impugnação judicial como meio capaz de fazer suspender o processo de execução fiscal, não poderá a Autoridade Tributária, numa atuação manifestamente discricionária adotar entendimento diferente, sob pena de manifesta violação do princípio da legalidade, nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 103.º, todos da CRP;

j) Ao indeferir o pedido de suspensão dos processos de execução fiscal, a Autoridade Tributária adotou um entendimento manifestamente contrário ao princípio da igualdade na vertente da sua atuação, impossibilitando o acesso da Recorrente ao direito (i.e., à suspensão dos processos de execução fiscal aqui em causa), não atuando de igual forma, na circunstância materialmente semelhante em que, em vez de ter sido apresentado pedido de revisão oficiosa, foi apresentada, por exemplo, uma reclamação graciosa;

k) Os argumentos avançados pela Autoridade Tributária e, bem assim, pelo Tribunal a quo, de perda de garantia de cobrança do crédito tributário, em virtude de uma eventual suspensão dos referidos processos de execução fiscal e de uma eternização da mesma, como pedra de toque para o tratamento de situações manifestamente semelhantes, apresentam-se, salvo melhor opinião, como falaciosos;

l) Quanto à desconformidade com o Direito da União Europeia da decisão reclamada, o entendimento vertido pelo Tribunal a quo é manifestamente contraditório, porquanto no capítulo III.II.iii) da sentença recorrida o referido Tribunal apreciou a questão controvertida à luz do Direito da União Europeia e concluiu que “inexist[ia], por conseguinte, qualquer desconformidade da decisão impugnada com o Direito da União Europeia” (cf. a página 12 da sentença recorrida); no entanto, no capítulo III.II.iv) da sentença recorrida fundamentou o indeferimento do pedido de reenvio prejudicial para o TJUE requerido justamente com o argumento de que “questões como a dos autos (…) respeitam apenas à interpretação e aplicação de normas internas”, inexistindo qualquer possibilidade de apreciar a questão à luz das normas comunitárias, por impossibilidade da sua convocação (cf. a página 15 da sentença recorrida);

m) Considerando que, subjacente aos referidos processos de execução fiscal, está um imposto de matriz comunitária (IVA) tem aplicabilidade, in casu, a CDFUE - a qual é hoje unanimemente reconhecida como um dos mais importantes instrumentos legais do direito comunitário, adquirindo o mesmo valor que o próprio Tratado da União Europeia, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 6.º deste mesmo diploma legal e sendo vinculativa para os Estados-Membros quando apliquem o referido direito comunitário;

n) A interpretação do CPPT e da LGT, nos termos que ora é efetuada pela Autoridade Tributária (in casu, a UCG) e sancionada pelo Tribunal a quo, imprime no sujeito passivo uma restrição desproporcional, injustificada, desnecessária e incapaz de respeitar o conteúdo dos direitos fundamentais da ora Recorrente, nomeadamente do seu direito de propriedade, tal como se encontra previsto na CDFUE;

o) Num caso como o presente - em que a legalidade da liquidação do imposto comunitário irá ser contestado mediante apresentação de impugnação judicial, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 52.º da LGT -, a cobrança coerciva da alegada dívida, sem possibilidade de suspensão dos referidos processos de execução fiscal, mediante prestação de garantia, configura uma restrição desproporcional ao direito de propriedade da Recorrente, o qual se apresenta, de igual forma, como um direito de matriz comunitária, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º da CDFUE;

p) Se de facto a questão controvertida levantava dúvidas e problemáticas relacionadas com o direito comunitário, como foi reconhecido no capítulo III.II.iii) da sentença recorrida, sempre teria o Tribunal a quo o dever de remeter os autos para o TJUE, em sede de reenvio prejudicial, para que esta instância comunitária se pronunciasse sobre a compatibilidade da interpretação proposta pela Autoridade Tributária portuguesa com os princípios e normas que constituem o sistema comum do IVA;

q) Caso assim não se considere, sempre terá o Tribunal ad quem de proceder à suspensão da instância e correspondente reenvio prejudicial para o TJUE, nos termos do § 3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia».

1.3. Admitido o recurso e notificada dessa admissão e para, querendo, contra-alegar, a parte contrária, optou a Recorrida, Autoridade Tributária e Aduaneira, por o não fazer.

1.4. O Excelentíssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso jurisdicional, sublinhando a reiterada e uniforme jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo no julgamento das questões que neste recurso nos são submetidas a apreciação.

1.5. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, são as conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determinam o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas por este Tribunal de recurso. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso, face aos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela Recorrente, são três as questões que nos cumpre apreciar, que passamos a enunciar pela ordem que aí foram colocadas:

1) O Tribunal errou ao julgar que o pedido de revisão oficiosa formulado ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1 in fine da LGT não tem a virtualidade de determinar, mesmo que associado à constituição, prestação ou manutenção de garantia idónea, a suspensão da execução fiscal, nem este efeito é alcançável através da impugnação da decisão de indeferimento desse mesmo pedido de revisão oficiosa?

2) A interpretação dos artigos 169.º do CPPT e 52.º da LGT perfilhada pela Administração Tributária, e validada pelo Tribunal recorrido, é ultra restritiva e viola os princípios da legalidade, da igualdade da actuação da Autoridade Tributária e do acesso ao direito, consagrados, respectivamente, nos artigos 165.º, n.º 1 al. d), 103.º, n.º 2 e 3 e 13.º, todos da Constituição da Republica Portuguesa (CRP)?

3) O julgamento é contraditório e padece de erro de julgamento no que respeita à desconformidade do direito nacional com o Direito da União Europeia e quanto ao pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)?

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

A. Correm termos na Autoridade Tributária e Aduaneira em nome da Reclamante os processos de execução fiscal n.º ...73 e apenso (n.º ...81), n.º ...90, n.º ...03, n.º ...11 e apensos (n.º ...38, n.º ...54, n.º ...70, n.º ...97 e n.º ...19), n.º ...62, n.º ...46, n.º ...20, n.º ...89, n.º ...00 e n.º ...27, todos por divida de IVA e respectivos Juros compensatórios do ano de 2019, no montante global de € 193.160,52 (cfr. documentos de fls. 50, 52, 54, 56, 58, 60, 62, 64, 66 e 68 dos autos).

B. Em 18-4-2023 a Reclamante apresentou junto da Autoridade Tributária e Aduaneira fianças prestadas pela sociedade «B..., S.A.», destinadas à suspensão dos processos de execução fiscal identificados no ponto antecedente, informando da intenção de apresentar procedimentos graciosos (cfr. documentos de fls. 70 a 76, 78 a 84, 86 a 92, 94 a 101, 103 a 109, 111 a 117, 119 a 125, 127 a 133, 135 a 141 e 143 a 149 dos autos).

C. Em 4-4-2023 a Reclamante deu entrada na Autoridade Tributária e Aduaneira de pedido de revisão dos actos de liquidação de IVA do ano de 2019 (cf. documento de fls. 181 dos autos).

D. Em 24-4-2023 a Autoridade Tributária e Aduaneira remeteu à Reclamante ofício de notificação da decisão de aceitação das fianças apresentadas (cf. documentos de fls. 152, 155, 158, 161, 164, 167, 170, 173, 176 e 179 dos autos).

E. Com data de 25-7-2023 a Autoridade Tributária e Aduaneira endereçou à Reclamante notificação de que, em 24-7-2023, tinha sido proferida decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (cfr. documento de fls. 183 dos autos).

F. Em 4-8-2023 foi remetido à Autoridade Tributária e Aduaneira (Divisão de Gestão de Créditos Tributários) requerimento a solicitar a manutenção da suspensão dos processos de execução fiscal identificados no ponto A. (cfr. documentos de fls. 205 a 210 dos autos).

G. Em 1-9-2023 a Autoridade Tributária e Aduaneira remeteu à Reclamante ofício de notificação da decisão de indeferimento do pedido referido no ponto precedente (cfr. documentos de fls. 212 a 218 dos autos).

H. Em 14-9-2023 deu entrada na Autoridade Tributária e Aduaneira a petição inicial da presente reclamação (cfr. informação de fls. 219 a 224 dos autos).

I. Em 31-10-2023 deu entrada neste Tribunal petição inicial de impugnação apresentada pela aqui Reclamante contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão identificado no ponto G., a que coube o processo n.º 1245/23.0BELRA (cfr. documentos de fls. 263 a 399 dos autos).

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria decidiu manter na ordem jurídica o acto da Administração Fiscal que indeferiu o pedido da Recorrente de que fosse mantida a suspensão de um conjunto de processos de Execução Fiscal (identificados na alínea A) do probatório). E indeferir o pedido da Recorrente de que fosse realizado um pedido de reenvio prejudicial para o TJUE.

3.2.2. Nuclearmente, subjacente a este julgamento estiveram três ordens de razões fáctico-jurídicas: (i) o pedido de revisão oficiosa formulado ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1 in fine da LGT não tem a virtualidade de determinar, mesmo que associado à constituição, prestação ou manutenção de garantia idónea, a suspensão da execução fiscal, nem este efeito é alcançável através da impugnação da decisão de indeferimento desse mesmo pedido de revisão oficiosa; (ii) o regime jurídico por referência ao qual a questão colocada ficara decidida, bem assim, a interpretação que dessas normas se acolhia (artigos 52.º e 78.º da LGT e 169.º do CPPT) nem viola os preceitos e princípios constitucionais nem o quadro jurídico da União Europeia; (iii) não se verificam, no caso, os pressupostos exigíveis para que deva ser deduzido pedido de reenvio prejudicial.

3.2.3. Vejamos, então, começando por enfrentar esta última questão, uma vez que a sua eventual procedência determinará a imediata suspensão da instância, com prejuízo de apreciação das demais questões suscitadas atento o impacto que para o seu julgamento decorrerá de uma eventual pronúncia do TJUE. Apenas se se decidir manter o julgado nesta parte avançaremos para a apreciação dos demais erros de julgamento.

3.2.3.1. Do pedido de reenvio prejudicial

A Recorrente, na petição inicial, suscitou a questão da desconformidade do regime consagrado no artigo 169.º do CPPT com o Direito da União Europeia, concretamente com o seu direito de propriedade e os limites à restrição deste, tal como consagrado e estabelecido nos artigos 17.º e 52.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE). E pediu, caso subsistissem dúvidas, que o Tribunal submete-se ao TJUE uma questão, relativa à alegada restrição de direitos pelo ordenamento jurídico português de direitos conexos com o IVA, invocando que este é um imposto de raiz comunitária.

O Tribunal julgou que não havia qualquer desconformidade do regime consagrado no artigo 169.º do CPPT com CDFUE em matéria de suspensão dos processos de execução fiscal. E que não havia fundamento para ser formulado reenvio prejudicial porque não estava em causa a interpretação de qualquer norma do Direito da União Europeia relevante para a decisão da causa mas apenas a interpretação do artigo 169.º do CPPT, isto é, uma norma interna do ordenamento jurídico português.

Contra este julgamento aduz a Recorrente em recurso ser o mesmo contraditório e padecer de erro de julgamento. Contraditório por o Tribunal ter afirmado expressamente que não havia desconformidade do artigo 169.º do CPPT com o Direito da União Europeia e posteriormente ter indeferido o pedido de reenvio com fundamento em estar apenas em causa a interpretação de norma legal nacional. Erro de julgamento, por, estando em causa nos processos de execução fiscal o pagamento coercivo de um imposto de raiz comunitária, ser evidente que estão verificados os pressupostos de formulação de reenvio prejudicial, o qual, nos termos do § 3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, se impõe que este Supremo Tribunal Administrativo realize.

Considerando que a Recorrente não invoca expressamente qualquer nulidade da sentença, e sendo evidente que o alegado também não é susceptível de preencher este tipo de vício, julgaremos o recurso nesta parte partindo da perspectiva que nos parece ter sido a da Recorrente, isto é, na perspectiva de erro de julgamento quer quanto à invocada desconformidade da ordem jurídica nacional com o Direito da União Europeia quer quanto à não verificação dos pressupostos para submissão de questão ao TJUE.

E, nesse sentido, adiantamos desde já, salvo o devido respeito, que nem um nem outro dos argumentos têm razão de ser. Tendo a Recorrente suscitado a questão da desconformidade das normas jurídicas que sustentam o indeferimento do pedido de manutenção do efeito suspensivo, cumpria ao Tribunal a quo apreciar essa questão, o que fez, concluindo não existir a desconformidade invocada. Tendo sido requerido que fosse deduzido pedido de reenvio prejudicial cumpria ao Tribunal aferir se estavam ou não verificados os pressupostos de que essa formulação está dependente, concluindo que não estavam.

Distintamente do que entende a Recorrente, as questões cujo julgamento foram convocadas são questões distintas, tal como distintos são os quadros jurídicos por recurso ao qual ficaram decididas, como, de resto, bem se vê dos pontos da sentença que identificou nas suas conclusões, o que, para além do que se dirá, inviabiliza logo qualquer possibilidade de se atender a uma pretensa contradição.

A inexistência de desconformidade de ordenamentos jurídicos foi realizada por referência ao preceituado na CDFUE, mais concretamente a uma «alegada restrição desproporcional, injustificada, desnecessária e incapaz de respeitar o conteúdo dos direitos fundamentais da Reclamante, nomeadamente do seu direito de propriedade, tal como se encontra previsto no artigo 52.° da CDFUE, que delimita a possibilidade de restrição de direitos fundamentais». Tendo o Tribunal concluído que o legislador pode «distinguir, com um fundamento racional, procedimentos diferenciados inseridos num sistema global, procurando assegurar o equilíbrio entre a eficácia na prossecução do interesse público de obtenção de receitas fiscais necessárias à satisfação das necessidades coletivas e as garantias dos direitos fundamentais dos contribuintes.» E que, «Existindo um fundamento material suficiente, razoável, objetivo e racional, para a diferenciação de efeitos e tendo em conta as características do procedimento e processo tributários, não é possível concluir que a solução tenha um caráter arbitrário ou que exista qualquer restrição de direitos fundamentais do sujeito passivo

No que respeita ao reenvio prejudicial, contrariamente ao que a Recorrente pretende fazer valer, o seu indeferimento não teve por referência qualquer questão de desconformidade de ordenamentos jurídicos. Antes teve por fundamento, o que não deixa de ser mais impressivo (e revelador de inexistência de qualquer contradição), o entendimento de não estava em causa nos autos a interpretação de qualquer norma do Direito da União Europeia.
Neste conspecto, o Tribunal a quo, após ter sublinhado que é jurisprudência pacífica (nacional e do TJUE), que o reenvio prejudicial só se justifica quando está em causa a interpretação e aplicação de uma norma de direito comunitário relevante para o julgamento da causa, «ou seja, quando o caso em apreço tenha de ser decidido de acordo com aquela regra, mostrando-se, por isso, necessária, a opinião do TJUE» conclui que não se justificava a submissão de qualquer questão ao TJUE por não estar em causa a aplicação de qualquer norma de Direito da União Europeia, mas, tão só, a interpretação e aplicação de uma norma de direito nacional, a saber, o artigo 169.º do CPPT.
Confirmado que a resposta dada a uma das questões não conflitua com a que foi dada à outra, a questão permanece: terá o Tribunal errado ao julgar que não existe desconformidade e ao não ter procedido ao reenvio prejudicial para o TJUE?
A nossa resposta é novamente negativa. Na verdade, sem prejuízo de se reconhecer o labor da Recorrente na construção de uma tese capaz de estabelecer uma relação entre as questões discutidas nestes autos e o Direito da União Europeia, é claro, pelo menos para nós, que a questão fundamental do processo não tem qualquer relação com o direito de propriedade ou com os limites que a este podem sem impostos, nos termos consagrados, respectivamente, nos artigos 17.º e 52.º da CDFUE. E ainda menor é a sua relação com a interpretação e aplicação de normas que regem o IVA, razão pela qual é incompreensível que se convoque a natureza, características ou raiz comunitária desse imposto para sustentar um pedido de reenvio prejudicial nestes autos.
A única questão relevante neste processo é a de saber se, sendo formulado um pedido de revisão e prestada garantia suficiente a assegurar o pagamento da dívida, deve, ou não, face ao regime jurídico português, ser determinada ou mantida a suspensão dos processos de execução fiscal em que aquela está a ser coercivamente exigida. E esta questão não contende com o direito de propriedade das Recorrente tal como definido no artigo 17.º da CDFUE [“Direito de propriedade 1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral”] ou com os limites à restrição do direito de propriedade tal como estabelecido no artigo 52.º da mesma Carta [“Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios 1. Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.”]. Aliás, como a Recorrente não deve desconhecer, a resposta ou julgamento proferido não é uma resposta reservada para os processos de execução fiscal em que esteja a ser cobrado IVA. A resposta dada vale qualquer que seja a natureza do imposto cujo pagamento está a ser exigido e prende-se exclusivamente com questões ou regras de natureza processual e de eficácia na cobrança de impostos instituídas pelo legislador nacional. Chamamos ainda a atenção, uma vez que a Recorrente convocou a CDFUE, que «As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados-Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados” (51.º, n.º 1 da CDFUE) e que «A presente Carta não torna o âmbito de aplicação do direito da União extensivo a competências que não sejam as da União, não cria quaisquer novas atribuições ou competências para a União, nem modifica as atribuições e competências definidas pelos Tratados» (n.º 2 do artigo 51.º da CDFUE).
Daí que, voltamos a salientar, pese embora a extensa argumentação da Recorrente, entendemos que a relação que pretende estabelecer entre a interpretação e aplicação do artigo 169.º do CPPT e a “ violação do Direito da União Europeia” é artificial, como, aliás, fica evidenciado pela circunstância de a Recorrente se ter limitado a alegações genéricas de violação do seu direito de propriedade e do sistema comum do IVA, sem em momento algum identificar uma única norma deste regime (CIVA) que tenha sido invocado na decisão e/ou para cuja aplicação seja necessário que o TJUE se pronuncie tendo em vista a questão de mérito dos autos.
Concluindo nesta parte: a conclusão, no julgamento, de que não há desconformidade dos artigos 52.º da LGT e 169.º do CPPT com o Direito da União não obsta a que se conclua que não estão preenchidos os pressupostos de que está dependente o reenvio prejudicial; não estão preenchidos tais requisitos se a resolução da questão de mérito dos autos não passa pela interpretação e aplicação de normas de Direito da União Europeia mas, tão só, pela interpretação e aplicação de normas do ordenamento jurídico interno.

Improcedem, pois, nesta parte, as alegações da Recorrente, o que significa que o sucesso da sua pretensão recursiva está dependente da resposta que este Supremo Tribunal entenda dar às duas outras questões enunciadas no ponto 2. deste acórdão, que se apreciarão conjuntamente.

3.2.3.2.Da ilegalidade do acto de indeferimento do pedido de manutenção do efeito suspensivo dos processos de execução fiscal e inconstitucionalidade do regime consagrado, conjugadamente, nos artigos 52.º e 78.º da LGT e 169.º do CPPT quando interpretados e aplicado no sentido de que a prestação de garantia e a impugnação judicial deduzida do indeferimento do pedido de revisão permitem obter o efeito suspensivo dos processos de execução fiscal activos para cobrança da dívida fiscal.

Para a Recorrente o Tribunal errou ao julgar que os processos de execução fiscal, nas situações em que o pedido de revisão é deduzido após o decurso do prazo legalmente previsto para apresentação de Reclamação Graciosa, não devem ser suspensos independentemente de a dívida estar ou não garantida. Porque estando a Recorrente, em prazo para contestar judicialmente a legalidade dos actos tributários subjacentes aos processos de execução fiscal, e tendo-o feito, a suspensão desses processos executivos deve manter-se até que se consolide na ordem jurídica uma decisão judicial definitiva sobre o mérito da questão da legalidade da dívida exequenda suscitada na Impugnação Judicial, por força do disposto nos artigos 52.º n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT) e 169.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT [conclusões a) a g) das alegações de recurso].

E a interpretação que perfilhada pelo Tribunal a quo quanto aos artigos 169.º do CPPT e 52.º da LGT, para além de ultra restritiva, afronta os princípios da legalidade, da igualdade da actuação da Autoridade Tributária e do acesso ao direito, consagrados, respectivamente, nos artigos 165.º, n.º 1 al. d), 103.º, n.º 2 e 3 e 13.º, todos da Constituição da Republica Portuguesa (CRP). Porque a possibilidade de suspensão de um processo de execução fiscal corresponde a uma elementar garantia dos contribuintes que, não estando legalmente vedada pelo legislador não o pode ser pela Autoridade Tributária, tanto mais que, em situação materialmente idêntica – apresentação de Reclamação Graciosa – essa suspensão, estando garantida a dívida, é admitida [conclusões h) a j) das alegações de recurso].

Como nos dá nota o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, quer uma quer outra das questões vêm sendo recorrentemente objecto de julgamento por este Supremo Tribunal Administrativo, que lhes têm dado resposta uniforme.

Assim, não tendo a Recorrente aduzido, nesta parte, argumentos que não tenham sido já ponderados por este Supremo Tribunal e não existindo motivos que justifiquem uma inversão da jurisprudência, antes se impondo, nos termos impostos pelo n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil, que seja dado neste processo às partes um tratamento igual ao que recorrentemente vem recebendo os demais contribuintes em idênticas circunstancias de facto e de direito, por razões de igualdade, justiça, certeza e segurança jurídicas, limitar-nos-emos a remeter para esses arestos, particularmente para o acórdão de 16 de Fevereiro de 2022, proferido no processo n.º 1474/21.1BELRS, integralmente disponível em www.dgsi.pt, fazendo nossa a sua fundamentação, que aqui se acolhe integralmente [idêntica solução foi adoptada nos acórdãos de 16-11-2011 (processo nº 460/11); de 12-12-2012 (processo nº 932/12); de 14-6-2012 (processo nº 816/11); de 19-1-2019 (processo nº 257/18.0BEVIS); de 5-12-2018 (processo nº 261/18.9BEVIS), de 30-1-2019 (processo nº 243/18.0BEVIS); de 9-1-2019 (processo nº 239/18.2BEVIS); de 16-1-2019 (processo nº 241/18.4BEVIS); de 16-1-2019 (processo nº 242/19.2BEVIS) e de 23-1-2019 (processo nº 240/18.6BEVIS, todos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt].

3.3. As custas serão integralmente suportadas pela Recorrente, integralmente vencida, (conforme artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo, negando provimento ao recurso jurisdicional, em confirmar integralmente na ordem jurídica a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 10 de Abril de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Fernanda de Fátima Esteves.