Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0325/17.6BEBJA
Data do Acordão:11/08/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
II - Incumbe ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso de revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis), sob pena de não admissibilidade da revista, não sendo suficiente para o efeito a mera enunciação da lei e a afirmação conclusiva da sua verificação.
Nº Convencional:JSTA000P31542
Nº do Documento:SA2202311080325/17
Recorrente:ASSOCIAÇÃO DE BENEFICIÁRIOS DO ...
Recorrido 1:A..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 325/17.6BEBJA
Recorrente: “ASSOCIAÇÃO DE BENEFICIÁRIOS DO ...”
Recorrida: “A..., S.A.”

1. RELATÓRIO

1.1 A acima identificada Recorrente, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 20 de Abril de 2023 – que, concedendo provimento ao recurso interposto pela ora Recorrida, revogou a sentença e, em substituição, julgou procedente a impugnação e anulou as liquidações de taxa de conservação e exploração (TCE) para actividades não agrícolas efectuadas pela ora Recorrente e das quais consta como sujeito passivo a ora Recorrida –, dele recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 285.º do CPPT, apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«a) A presente acção de impugnação judicial foi instaurada pela aqui recorrida, peticionando a nulidade ou a anulação das liquidações de taxa de conservação e exploração para actividades não agrícolas, emitidas pela recorrente ao abrigo do regime jurídico das obras de aproveitamento hidroagrícola, instituído pelo Dec. Lei n.º 269/82, de 10/07, de legislação vária conexa com esta e, ainda, conforme o clausulado no “contrato de concessão para a gestão do aproveitamento hidroagrícola do ...”.

b) As então Impugnante e Impugnada deduziram nos respectivos articulados os factos e argumentos que entenderam por relevantes e procederam à junção de prova documental, atendendo-se a cada uma das posições defendidas.

c) Analisados os factos, argumentos e documentos juntos, confrontou-se estes em Tribunal de 1.ª Instância com o quadro legal aplicável e foi proferida a respectiva Sentença que, perante os factos considerados provados e submetidos ao crivo da legislação e contratos celebrados pelas partes, proferiu decisão considerando a impugnação improcedente por não provada, com a consequente manutenção dos actos impugnados.

d) Inconformada com a decisão, foi interposto recurso de apelação pela recorrida para o Tribunal Central Administrativo Sul, tendo nesta formulado as conclusões que entendeu por relevantes, para procedência do seu pedido ou seja, que a Sentença recorrida viesse a substituída por outra que confirmasse que os actos de liquidação praticados não podiam subsistir na ordem jurídica, pelo que deveriam ser anulados.

e) Nas suas alegações, a recorrida explana facto anterior à instauração da demanda, de que tinha conhecimento, embora em sede de conclusões não o tenha referenciado.

f) Entendeu a 2.ª Instância recorrer ao art. 662.º, n.º 1, do CPC para aditar novos factos aos considerados pela 1.ª Instância, constando nestes o acima indicado ou seja, o agora mencionado em Acórdão na alínea Q) de fundamentação de facto, com o seguinte teor: “O empreendimento hidroagrícola do ... é classificado pela Agência Portuguesa do Ambiente como um “Empreendimento de fins múltiplos” (http://apambiente.pt/agua/empreendimentos-de-fins-multiplos)”;

g) O aditamento deste facto, pelo atrás exposto, viola o disposto no art. 662.º do CPC, porque não superveniente à Sentença da 1.ª Instância, e não contemplar matéria por esta considerada e então acarretada pelas partes para os autos;

h) De igual forma, porque extemporâneo, também não é admissível face ao preceituado no art. 425.º do CPC;

i) Acresce que o mencionado sob a alínea Q) da fundamentação de facto no Acórdão recorrido não consta das conclusões formuladas pela recorrida em alegações e que determinam o objecto do recurso segundo a lei processual como se dispõe, por exemplo, nos arts. 635.º, n.º 4, 679.º e 608.º do CPC;

j) Em súmula quanto a este ponto, deve ser eliminado o aditamento feito pela 2.ª Instância, constante na mencionada alínea;

k) Por outro lado, o Tribunal de 2.ª Instância não se pronunciou sobre a junção feita pela Recorrente de documento superveniente junto aos autos – despacho do Senhor Secretário de Estado da Agricultura e Desenvolvimento Rural e informação produzida pela Direcção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural –, quanto à sua admissibilidade.

l) Também o teor deste não é tomado em consideração pela 2.ª Instância, quando do aditamento de factos provados feito, ao arrepio do critério então seguido, pelo que se procede agora à sua junção, sem prejuízo de vir a ser sanada a omissão supra nos termos conjugados dos arts. 679.º, 652.º n.º 1, alínea e), 680.º n.º 2 e 674.º, n.º 3, todos do CPC;

m) Entendeu o Tribunal de 2.ª Instância pronunciar-se apenas sobre um dos fundamentos indicados pela ora Recorrida no recurso de apelação: “Erro de julgamento porquanto a taxa de conservação e exploração da obra hidroagrícola em causa viola o princípio da proporcionalidade dado que é cobrada a quem utiliza a mesma no mesmo “Plano de Água”” e, face à decisão tomada quanto a este, considerar prejudicada a resposta a outros alegados erros de julgamento indicados pela Recorrida;

n) A aplicação do direito substantivo e consequente decisão, parte do facto considerado provado sob a alínea Q), aditado pela 2.ª Instância.

o) Entendeu o Tribunal de 2.ª Instância que, por o aproveitamento hidroagrícola estar classificado como empreendimento de fins múltiplos, seria aplicável ao caso “sub judice” o respectivo regime legal, previsto, nomeadamente, no Decreto-Lei n.º 311/2007, que estabelece o regime de constituição e gestão dos fins múltiplos, bem como o seu regime económico e financeiro;

p) Não cuidou a 2.ª Instância de verificar no documento que suporta a classificação da equiparação do aproveitamento hidroagrícola a empreendimento de fins múltiplos, proposta apresentada pela APA e DGADR, homologada pelas respectivas tutelas, se haviam sido desencadeados, e finalizados, os procedimentos necessários à escolha de concessionário, requisito essencial para que a gestão do aproveitamento se processe como previsto no Dec. Lei n.º 311/2007, de 17/09;

q) Ao não terem sido desencadeados aqueles procedimentos, não pode o Tribunal de 2.ª Instância subsumir a gestão do aproveitamento ao regime legal supra referido, pelo que estamos perante errónea aplicação da lei substantiva pelo Acórdão recorrido;

r) Entende-se no Acórdão recorrido que a falta de proporcionalidade da TCE liquidada à recorrida decorre de se ter utilizado como parâmetro a volumetria de água captada na albufeira, embora este critério seja defendido pelas concedentes primitiva e actual da recorrida, como se viu, ser a única possível face à actividade não agrícola praticada pela recorrida no AH…, e estar prevista no art. 69.º-A, n.º 2, e 67.º do RJOAH, entre outros diplomas;

s) Salvo melhor opinião, não é argumento bastante para se aferir da falta daquela, nem a recorrida adianta qualquer facto ou argumento, com excepção que apenas utiliza a infra-estrutura barragem, para se constatar a não proporcionalidade do tributo;

t) A que acresce que o adjectivo utilizado não pode ser entendido de forma estrita;

u) Face à violação de preceitos processuais e errónea aplicação da lei substantiva, deverá o Acórdão proferido pela 2.ª Instância ser substituído por douto Acórdão que confirme a Sentença da 1.ª Instância, confirmando assim os actos de liquidação praticados pela recorrida, subsistindo estes na ordem jurídica, com o que se fará JUSTIÇA».

1.2 A Recorrida apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:

«A. A TEC liquidada pela AB…, tem a sua fonte legal no Decreto-Lei 269/82 de 10/07, na redacção conferida pelo Decreto-Lei 86/2002, de 06/04, advindo a legitimidade daquela Associação, para a sua liquidação, do Contrato de Concessão para a Gestão do Aproveitamento Hidroagrícola do ..., firmado com Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural em 22/07/2009.

B. O art. 69.º-A do Decreto-Lei 269/82 de 10/07, na redacção conferida pelo Decreto-Lei 86/2002, de 06/04, determina que pela utilização da obra hidroagrícola para fins não agrícolas é devida uma taxa de conservação e exploração nos termos a fixar pelo Ministro da Agricultura sob proposta do IHERA – ora DGADR.

C. As diversas taxas previstas no regime jurídico das obras de aproveitamento hidroagrícola (entre as quais se inclui a TEC para actividades não agrícolas) têm o seu âmbito subjectivo de aplicação delimitado em torno dos diversos beneficiários das obras hidroagrícolas, seja em virtude da sua qualidade proprietários ou de usufrutuários de prédios beneficiados por tais obras (caso em que serão sujeitos passivos de uma taxa de conservação devida por hectare beneficiado), seja em resultado da sua qualidade de regantes beneficiários ou de utentes precários (situação em que se qualificarão como sujeitos passivos de uma taxa de exploração devida em razão do volume de água utilizado).

D. Assim, apenas são abrangidas pelo âmbito subjectivo de aplicação das taxas previstas no Decreto-Lei 269/82, as entidades que beneficiem da respectiva obra de aproveitamento hidroagrícola, na qualidade de utilizadores finais de recursos hídricos.

E. No caso concreto do Aproveitamento Hidroagrícola do ..., as taxas previstas no Decreto-Lei n.º 269/82, de 10 de Julho, serão devidas pelos utilizadores que recorram ou beneficiem dos serviços prestados pela recorrente, na sua qualidade de entidade gestora da totalidade das infra-estruturas que constituem tal obra, nos termos definidos no seu contrato de concessão celebrado em 22 de Julho de 2009, pelo que as mesmas não se mostram devidas por utilizadores principais de recursos hídricos, como é o caso da ora recorrida.

F. Também a impugnante e ora recorrida é titular de um contrato de concessão para a captação de água na albufeira do ..., para o abastecimento às populações, o qual tem o número 4/CSP/SD/2012.

G. A Barragem do ... tem assim, em simultâneo duas utilizações distintas e concorrentes, uma destinada à captação de água para rega (a prosseguida pela recorrente) e a captação de água para abastecimento público (a prosseguida pela recorrida), sendo que os títulos conferidos a recorrente e recorrida (os respectivos contratos de concessão) lhes conferem a qualidade de utilizador principal, nos termos definidos na Lei da Água (Cfr. n.º 4 do art. 64.º da Lei 58/2005).

H. Os custos das infra-estruturas que são objecto de repercussão nos beneficiários dos serviços tipicamente prestados pela recorrente são bastante mais extensos que os custos suportados, apenas, com a conservação e a reabilitação da Barragem do ..., uma vez que aqueles, ao contrário destes, estendem-se aos necessários para explorar e manter em bom estado de funcionamento todas as infra-estruturas incluídas no Aproveitamento Hidroagrícola do ....

I. A Taxa de Conservação (sendo que a liquidada à ora recorrente também inclui a componente de exploração), definida no âmbito especial dos Aproveitamentos Hidroagrícolas, tem em consideração toda a obra hidráulica, que na maior parte dos casos, vai muito além da barragem em si, sendo que os custos de manutenção e conservação dos canais de rega e infra-estruturas afins são bem mais onerosos que os despendidos na conservação da barragem.

J. Não é adequado nem justo que utilizações que se localizem no plano de água de uma albufeira de aproveitamento hidroagrícola, e que apenas beneficiam da existência da barragem, paguem uma taxa de engloba a conservação de toda a obra hidroagrícola (Cfr. informação do Instituto da Água, I.P., prestada em 28 de Outubro de 2010, sob a referência ...80... Class. 1.2, p. 3.).

K. Esta é, claramente, a situação dos presentes autos, onde a ora recorrente capta directamente no plano de água da albufeira, através de meios exclusivamente próprios, água nos termos do respectivo título de utilização privativa de recursos hídricos (TURH), beneficiando, portanto, da barragem.

L. Todos os meios necessários a essa captação são próprios da recorrente – torre de captação, bombas, quadros eléctricos, tubagens, etc.

M. No entanto, existe uma clara desproporção entre aquilo que a ora recorrente liquidou a título de TEC à recorrida e aquilo que foi cobrado aos utilizadores finais em contrapartida da conservação e reabilitação de todas as infra-estruturas inseridas no aproveitamento hidroagrícola, da captação, da distribuição e do efectivo fornecimento de água.

N. Pelo exposto, resulta que os actos de liquidação da TEC, tal como praticados pela recorrida, são ilegais, por assentarem no errado pressuposto que poderiam validamente comutar as despesas suportadas com a exploração e a conservação do aproveitamento hidroagrícola.

O. A recorrente não pode ser qualificada como utilizadora final do aproveitamento hidroagrícola – o que a exclui liminarmente do âmbito subjectivo de aplicação do tributo.

P. A sujeição a este tributo, por força da discriminação promovida, é incompatível com o princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Q. O Despacho proferido pelo Senhor Secretário de Estado da Agricultura e Desenvolvimento Rural, em 07/05/2021, junto aos autos pela ora recorrente, implicitamente reconhece a incompetência da AB… para fixar as taxas de conservação e exploração para actividades não agrícolas.

R. Só assim se pode compreender e interpretar o acto de ratificação produzido, embora sem efeitos práticos, pelas razões já escalpelizadas na sentença proferida no processo n.º 477/18.8BEBJA, nomeadamente, (i) por ausência de norma habilitante que atribua ao órgão competente a faculdade para delegar noutro órgão a sua competência, (ii) por o Despacho 203/2021, de 7 de Janeiro, da Senhora Ministra da Agricultura não delegar no Senhor Secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural quaisquer competências para definir os termos de qualquer tributo, designadamente, os respectivos à TEC para actividades não agrícolas, prevista no art. 69.º-A do Decreto-Lei 269/82 de 10/07/1982 e (iii) por se limitar a aprovar e ratificar os valores propostos pela impugnada, enquanto o que está em causa é a definição da base de incidência, objectiva e subjectiva do tributo e não apenas a taxa a aplicar à matéria tributável.

S. Se a AB… fosse competente para a fixação da taxa, então a ratificação seria inútil e a administração não deve praticar actos inúteis.

T. Ainda que assim não se entendesse, nunca a ora recorrida poderia ser sujeito passivo da aplicação da taxa em causa.

U. Por decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., e da Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, de 30 de Abril de 2015, devidamente homologada pelo Sr. Secretário de Estado do Ambiente e pela Sra. Ministra da Agricultura e do Mar, o aproveitamento hidroagrícola do ... foi classificado como equiparado a empreendimentos de fins múltiplos.

V. Nos termos do disposto na alínea n) do art. 9.º do Decreto-Lei 311/2007, de 17 de Setembro, compete à entidade gestora de um EFM (ou equiparado), “(…) fazer reverter sobre os utilizadores de usos principais os custos resultantes dos actos de gestão e exploração, repartindo-os na proporção das respectivas utilizações, de acordo com a fórmula definida no anexo ao presente decreto-lei (…)”.

W. Este é o regime jurídico aplicável ao caso concreto (e não o dos empreendimentos hidroagrícolas), como é reconhecido pelo acórdão recorrido, o qual é coerente com a cláusula 13.ª do contrato de concessão que a ora impugnante possui para a captação de água na albufeira do ....

X. Logo, não estivesse a TEC liquidada ferida de nulidade, a mesma não seria de todo devida, fruto da classificação operada do aproveitamento hidroagrícola gerido pela impugnada, como equiparado a fins múltiplos, o que afasta a aplicação do regime jurídico dos empreendimentos hidroagrícolas, como, aliás, bem decidiu o acórdão agora recorrido».

1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Sul ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta tomou posição no sentido de que «não compete ao Ministério Público, nesta fase, pronunciar-se quanto à admissibilidade ou não do Recurso de Revista».

1.5 Cumpre apreciar e decidir, preliminar e sumariamente, da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo – que deve estar bem delimitada – assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental, ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista [cfr. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis].

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» ( Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Cumpre também ter presente que, em sede de recurso excepcional de revista e nos termos do disposto no n.º 4 do art. 285.º do CPPT, as questões de facto, designadamente o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos, estão arredadas do âmbito do recurso, a menos que haja «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

2.1.5 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, uniforme e repetidamente, atento o carácter extraordinário da revista excepcional prevista no art. 285.º do CPPT (e no art. 150.º do CPTA), não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades do acórdão recorrido, devendo tais nulidades ser arguidas perante o tribunal recorrido mediante reclamação, nos termos do art. 615.º, n.º 4, do CPC.

2.1.6 Referidos que ficaram os pressupostos da admissibilidade da revista excepcional e o seu âmbito abstracto, passemos a verificar, preliminar e sumariamente (cfr. art. 285.º, n.º 6, do CPPT), se o recurso pode ser admitido.

2.2 O CASO SUB JUDICE

Estamos perante uma impugnação judicial de liquidações de TCE para actividades não agrícolas, que foram liquidadas à aqui Recorrida pela ora Recorrente.
Apesar de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja ter julgado improcedente a impugnação judicial, o Tribunal Central Administrativo Sul, decidindo o recurso interposto pela ora Recorrida, revogou essa sentença e anulou as liquidações impugnadas.
É desse acórdão que vem interposto o presente recurso, interposto ao abrigo do art. 285.º do CPPT.
Lidas as alegações de recurso e respectivas conclusões, se bem as interpretamos, os motivos de discordância com o acórdão apresentados pela Recorrente são os seguintes:

i) o Tribunal Central Administrativo Sul, invocando a faculdade que lhe é concedida pelo art. 662.º do CPC, aditou aos factos dados como assentes em 1.ª instância, sob a alínea Q), um facto («O empreendimento hidroagrícola do ... é classificado pela Agência Portuguesa do Ambiente como um “Empreendimento de fins múltiplos” (http://apambiente.pt/agua/empreendimentos-de-fins-multiplos)»), sendo que tal aditamento viola o disposto no referido preceito legal, bem como no art. 425.º do CPC, porque não é superveniente à sentença proferida em 1.ª instância, porque não contempla matéria que a sentença tenha considerado e porque não se refere a matéria alegada pelas partes e, ademais, viola também o disposto nos arts. 635.º, n.º 4, 679.º e 608.º do CPC, pois nem sequer consta das alegações formuladas pela então Recorrente junto do Tribunal Central Administrativo Sul, motivos por que tal aditamento deve ser eliminado [cfr. conclusões b) a j)];

ii) o Tribunal Central Administrativo Sul não se pronunciou sobre a admissibilidade da junção aos autos do documento («despacho do Senhor Secretário de Estado da Agricultura e Desenvolvimento Rural e informação produzida pela Direcção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural») apresentado, como superveniente e ao abrigo do disposto no art. 425.º do CPC, pela então Recorrida, ora Recorrente, nem tomou em consideração o respectivo teor, pelo que se requer agora essa junção [cfr. conclusões k) e l)];

iii) o Tribunal Central Administrativo Sul apenas se pronunciou sobre um dos fundamentos do recurso que lhe foi apresentado – e que apreciou sob a epígrafe «Erro de julgamento porquanto a taxa de conservação e exploração da obra hidroagrícola em causa viola o princípio da proporcionalidade dado que é cobrada a quem utiliza a mesma no mesmo “Plano de Água”» – e considerou prejudicada a resposta aos demais erros de julgamento invocados pela então Recorrente [cfr. conclusão m)];

iv) o Tribunal Central Administrativo Sul não fez correcto julgamento, na medida em que parte do facto considerado provado na alínea Q), que aditou, e descurou a indagação sobre «se haviam sido desencadeados, e finalizados, os procedimentos necessários à escolha de concessionário, requisito essencial para que a gestão do aproveitamento se processe como previsto no Dec. Lei n.º 311/2007, de 17/09», sendo que «[a]o não terem sido desencadeados aqueles procedimentos, não pode o Tribunal de 2.ª Instância subsumir a gestão do aproveitamento ao regime legal supra referido, pelo que estamos perante errónea aplicação da lei substantiva pelo Acórdão recorrido» [cfr. conclusões n) a q)];

v) o Tribunal Central Administrativo Sul fez errado julgamento no que respeita à invocada falta de proporcionalidade da TCE liquidada à ora Recorrente, que considerou verificada por «se ter utilizado como parâmetro a volumetria de água captada na albufeira», pois «embora este critério seja defendido pelas concedentes primitiva e actual da recorrida, como se viu, ser a única possível face à actividade não agrícola praticada pela recorrida no AH…, e estar prevista no art. 69-A, n.º 2, e 67.º do RJOAH, entre outros diplomas» [cfr. conclusões r) a t)].

Em face do teor das alegações não se revela tarefa fácil saber quais as concretas questões que a Recorrente pretende sujeitar à apreciação deste Supremo Tribunal, pois, ao invés de identificá-las e delimitá-las precisamente, enunciando as questões que «pela sua relevância jurídica ou social» considera assumirem «importância fundamental» ou por que a admissão do recurso se mostra «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito», limitou-se a enunciar os motivos por que discorda do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.
De igual modo, quanto os requisitos de admissibilidade da revista, que acima deixámos enunciados, não pode considerar-se que a Recorrente se tenha desincumbido do ónus que sobre ela recai. Apesar de na motivação do recurso ter dedicado três parágrafos (sob a epígrafe “Da verificação dos pressupostos do recurso de revisão, previstos no art. 285.º do CPPT”) à tentativa de demonstrar a verificação desses requisitos, afigura-se-nos manifesto que a alegação aduzida pela Recorrente não serve esse propósito.
Recordemos o que a esse propósito alegou a Recorrente em dois dos referidos três parágrafos (no primeiro limitou-se a enunciar o regime legal consagrado nos n.ºs 1 e 2 do art. 285.º do CPPT): «Como decorre do exposto, entende a recorrente que, no Acórdão proferido pela 2.ª Instância, se verifica violação de vários preceitos processuais, nomeadamente dos arts. 662.º, n.º 1, 635.º, n.º 4, 679.º e 608.º do C.P.C., bem como, quanto à lei substantiva, errónea aplicação no caso vertente do regime previsto no Dec. Lei n.º 311/2007, de 17/09» e «[d]aqui decorre a necessidade de, pelo presente recurso, se conseguir uma melhor aplicação do direito. Acresce que, a manter-se a decisão tomada pela 2.ª Instância, não será possível à recorrente cumprir com as obrigações que lhe foram acometidas pelo contrato de concessão para a gestão do AH…, celebrado como Estado, com os inerentes prejuízos sociais e económicos para a agricultura de regadio e outros beneficiários do aproveitamento com actividades não agrícolas».
Salvo o devido respeito, a Recorrente parece não ter atentado devidamente no carácter excepcional do recurso de revista. A alegação aduzida em ordem a demonstrar a verificação dos respectivos requisitos de admissibilidade – e que vimos de reproduzir – resume-se, por um lado à invocada violação de preceitos processuais e substantivos e, por outro lado, a uma alegada “impossibilidade” de cumprimento das obrigações contratuais em decorrência da interpretação sufragada pelo acórdão recorrido.
Ou seja, é manifestamente insuficiente para integrar a previsão legal dos pressupostos de admissibilidade do recurso de revista.
Ora, como esta formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT tem vindo a afirmar inúmeras vezes, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis), sob pena de não admissibilidade do recurso, não sendo suficiente para o efeito a mera enunciação da lei e a afirmação conclusiva da sua verificação.
O presente recurso é apresentado, afinal, como se o mesmo constituísse um modo de impugnar o julgamento efectuado pelo Tribunal Central Administrativo Sul acórdão recorrido.
Ora, dissemo-lo já, a revista não constitui um terceiro grau de jurisdição – há muito eliminado do regime de recursos em processo tributário ( A possibilidade de recurso em terceiro grau de jurisdição, que estava prevista na redacção inicial do art. 32.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, foi abolida pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro.) –, mas tem como função trazer à apreciação do Supremo Tribunal Administrativo, enquanto órgão de cúpula da jurisdição tributária, uma concreta questão relativamente à qual estejam verificados os requisitos do n.º 1 do art. 285.º do CPPT acima enunciados.
É na alegação e demonstração desses requisitos que a Recorrente falhou.
Tanto basta para que o recurso não seja admitido.

2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

II - Incumbe ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso de revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis), sob pena de não admissibilidade da revista, não sendo suficiente para o efeito a mera enunciação da lei e a afirmação conclusiva da sua verificação.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.

Custas pela Recorrente.


*
Lisboa, 8 de Novembro de 2023. - Francisco Rothes (relator) - Isabel Marques da Silva - Aragão Seia.