Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
I. Relatório
1. A…………… - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º, n.º 1 do CPTA, do Acórdão do TCA Norte, de 10.2.2017, que confirmou a sentença proferida pelo TAF do Porto, de 30.5.2016, que julgou improcedente a ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM instaurada contra o MUNICÍPIO DE GONDOMAR, onde pedia que fosse declarado sem termo o seu contrato de trabalho e fosse considerado ilícito o seu despedimento.
Nas suas alegações formulou, com relevo para esta decisão, as seguintes conclusões:
« 1) Salvo o devido respeito por opinião contrária, é inequívoco que a decisão enferma na violação na lei substantiva ou processual, nomeadamente, na Diretiva comunitária 1999/70/CE;
(…)
3) Deverá aplicar-se, no presente caso, a Directiva comunitária 1999/70/CE pelo deverá o presente contrato de trabalho a termo resolutivo certo celebrado entre a Recorrente e a Recorrida ser convertido em contrato de trabalho por tempo indeterminado, na medida em que o limite máximo de renovações já foi ultrapassado;
4) Na Diretiva Comunitária 1999/70/CE não se fez qualquer distinção quanto à natureza pública ou privado do empregador, pelo que deverá aplicar-se ao presente caso.
5) Mesmo que exista dissonância entre o ordenamento nacional e o comunitário, deve sempre prevalecer o primado do regime jurídico europeu, incluindo Diretivas, sobre o estatuído em normas de direito interno, incluindo normas constitucionais, sem prejuízo da reserva constitucional de respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, estipulada no Art.º 8.º, n.º 4 da C.R.P.;
6) No caso da não aplicação da referida Directiva no âmbito do direito público, deve ser enviado o referido processo para o Tribunal de Justiça da União Europeia.»
2. O Recorrido contra-alegou, concluindo, no que ao mérito da causa diz respeito, que:
« (…)
2. O Acórdão recorrido não viola a lei substantiva nomeadamente a não transposição da directiva comunitária 199/70/CE;
3. Todos estes contratos foram celebrados ao abrigo da lei 59/2008, que impede que esses contratos sejam convertidos em contrato sem termo;
4. Pelo que a directiva que a autora pretende ver aplicada à situação em apreço viola a Constituição da República.»
3. O recurso de revista foi admitido por este Supremo Tribunal em 8.6.2017 «(...) tendo em vista uma melhor interpretação e aplicação do direito, designadamente a possibilidade de colocar a questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia (...)».
4. Por Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, este Tribunal decidiu submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais:
1. «O Direito da União Europeia, nomeadamente o art. 5.º do Acordo-Quadro anexo à Diretiva n.º 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que proíbe em absoluto a conversão de contratos de trabalho a termo certo celebrados por entidades públicas em contratos de trabalho por tempo indeterminado?
2. A Diretiva n.º 1999/70/CE deve ser interpretada no sentido de que impõe a conversão dos contratos como a única forma de evitar os abusos decorrentes do recurso sucessivo a contratos de trabalho a termo certo?»
5. Por Despacho do Tribunal de Justiça (Oitava Secção), de 30 de setembro de 2020, proferido no Processo C-135/20, aquelas questões foram respondidas nos seguintes termos:
«O artigo 5.º do acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo, celebrado em 18 de março de 1999, que figura no anexo da Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um Estado-Membro que proíbe de forma absoluta, no setor público, a conversão de uma sucessão contratos de trabalho a termo certo num contrato por tempo indeterminado, desde que essa legislação não preveja, para o referido setor, outra medida efetiva para evitar e, sendo caso disso, punir a conclusão abusiva de sucessivos contratos a termo certo.»
6. Notificadas para se pronunciarem sobre o referido despacho, as partes nada disseram.
7. Sem necessidade de novos vistos, cumpre decidir.
II. Matéria de facto
8. As instâncias deram como provados os seguintes factos:
«1. Em Novembro de 2000 a autora celebrou com a ré “contrato de trabalho a termo certo”, em que se estipulava que a primeira exerceria as funções de “bilheteiro” inserida na carreira profissional de “auxiliar da Administração Local”, pelo período de doze meses, com início a 06.11.2000, “por urgente conveniência de serviço” — cfr. doc. 1 junto com a PI, a fis. 20 e ss. dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
2. A autora exerceu as suas funções, no âmbito do contrato referido em “1.”, na Piscina Municipal de …………, pertencente à ré.
3. Em 06.11.2001 a ré renovou o contrato referido em “1.” até ao limite de dois anos — cfr. doc. 2 junto com a PI, a fls.. 22 dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
4. Em 07.11.2002 a autora celebrou com a ré “contrato de trabalho a termo certo”, em que se estipulava que a primeira exerceria as funções correspondentes à categoria de “fiel de armazém”, pelo período de seis meses, com início a 07.11.2002 e termo em 07.05.2003, “podendo ser renovado até ao limite de dois anos”— cfr. doc. 3 junto com a PI, a fls.. 23 e ss. dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
5. A autora exerceu as suas funções, no âmbito do contrato referido em “4.”, na Piscina Municipal de ………….., pertencente à ré.
6. Em 19.11.2003 a autora celebrou com a ré “contrato de trabalho a termo certo”, em que se estipulava que a primeira exerceria as funções correspondentes à categoria de “assistente administrativo”, pelo período de seis meses, com início a 19.11.2003 e termo em 19.05.2004, “podendo ser renovado até ao limite de dois anos” — cfr. doc. 4 junto com a PI, a fls. 25 e ss. dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
7. A autora exerceu as suas funções, no âmbito do contrato referido em “6.”, na Piscina Municipal de …………, pertencente à ré.
8. Em 21.11.2005 a autora celebrou com a ré “contrato de trabalho a termo resolutivo certo”, em que se estipulava que a primeira exerceria as funções correspondentes à categoria de “auxiliar técnico de turismo”, pelo período de um ano, com início a 21.11.2005 e termo em 21.11.2006. podendo “ser objeto de renovação” — cfr. doc. 5 junto com a PI, a fls. 27 e ss. dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
9. A autora exerceu as suas funções, no âmbito do contrato referido em “8.”, na Piscina Municipal de …………, pertencente à ré.
10. Em 22.11.2007 a autora celebrou com a ré “contrato de trabalho a termo resolutivo certo”, em que se estipulava que a primeira exerceria as funções correspondentes à categoria de “assistente administrativo”, pelo período de seis meses, com início a 22.11.2007 a termo em 22.05.2008, podendo “ser objeto de renovação”— cfr. doc. 6 junto com a PI, a fls. 38 e ss. dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
11. A autora exerceu as suas funções, no âmbito do contrato referido em “10.”, na Piscina Municipal de ………….., pertencente à ré.
12. O contrato referido em “10” foi renovado por despacho de 30.04.2008, até ao limite de um ano — cfr. doc. 1 junto com a contestação, a fls. 152 dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
13. O contrato referido em “10” foi objeto de nova renovação, por despacho de 21.10.2010, por um período de 3 anos — cfr. doc. 2 junto com a contestação, a fls. 153 dos autos físicos, cujo teor se dá por reproduzido.
14. A autora trabalhou ao serviço da Ré até Novembro de 2013, desempenhando sempre, desde Novembro de 2000 a Novembro de 2013, as seguintes funções: atendimento ao público, efetuar inscrições dos utentes, receber dinheiro relativo ao pagamento das quotas dos utentes, entregar e receber as chaves dos cacifos.
15. A autora foi surpreendida e ficou triste com a comunicação da cessação do contrato de trabalho.»
III. Matéria de Direito
9. A questão central que se discute no presente recurso é a da eventual violação da Diretiva Europeia 1999/70/CE pela legislação nacional relativa a contratos de trabalho a termo celebrados por pessoas coletivas de direito público, mais concretamente pelo número 2 do artigo 92.º da Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), que proíbe expressamente a conversão daqueles contratos, no termo máximo do seu prazo de duração, em contratos por tempo indeterminado.
A questão vem suscitada a propósito daquela disposição legal, porque era ela que vigorava à data da cessação do último contrato celebrado entre a Recorrente e o Recorrido, mas a questão de direito mantém-se substantivamente inalterada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, que aprovou a nova Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), cujo número 2 do artigo 63.º reproduz a mesma solução, e que, no essencial, era também a solução legal estabelecida pelos diplomas legais precedentes sobre a mesma matéria, nomeadamente pelo número 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 218/98, de 17 de Julho, e pelo artigo número 2 do 10.º da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho.
Conformando-se com o entendimento expresso pelas instâncias, de que, à luz do direito interno português, o seu contrato de trabalho a termo certo com o recorrido caducaria no termo da sua última renovação, não se convertendo num contrato de trabalho por tempo indeterminado, a recorrente considera, não obstante, que essa solução é desconforme com o regime quadro estabelecido pela Diretiva Europeia 1999/70/CE que, visando evitar abusos decorrentes da excessiva utilização de contratos a termo sucessivos, deve aplicar-se também ao sector público. E conclui, assim, que aquela diretiva deve ser diretamente aplicada ao caso sub judice, desaplicando-se, em consequência, o regime legal estabelecido pelo número 2 do artigo 92.º do RCTFP.
Em abono da sua alegação, a recorrente invoca, além do mais, o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 4 de julho de 2006, proferido no Processo C.212/04 (Adeneler), que sobre esta mesma questão decidiu o seguinte:
«(…) o acordo-quadro se opõe à aplicação de uma legislação nacional que proíbe de modo absoluto, apenas no setor público, a conversão em contratos sem termo de contratos a termo sucessivos que, de facto, se destinaram a satisfazer “necessidades estáveis e duradouras” da entidade patronal e devem ser considerados abusivos (…)».
10. Em face desta alegação, este Supremo Tribunal Administrativo decidiu, por Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais:
1. «O Direito da União Europeia, nomeadamente o art. 5.º do Acordo-Quadro anexo à Diretiva n.º 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que proíbe em absoluto a conversão de contratos de trabalho a termo certo celebrados por entidades públicas em contratos de trabalho por tempo indeterminado?
2. A Diretiva n.º 1999/70/CE deve ser interpretada no sentido de que impõe a conversão dos contratos como a única forma de evitar os abusos decorrentes do recurso sucessivo a contratos de trabalho a termo certo?»
11. O Tribunal de Justiça da União Europeia respondeu àquelas duas questões de forma unitária, nos seguintes termos:
«O artigo 5.º do acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo, celebrado em 18 de março de 1999, que figura no anexo da Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um Estado-Membro que proíbe de forma absoluta, no setor público, a conversão de uma sucessão contratos de trabalho a termo certo num contrato por tempo indeterminado, desde que essa legislação não preveja, para o referido setor, outra medida efetiva para evitar e, sendo caso disso, punir a conclusão abusiva de sucessivos contratos a termo certo».
Na fundamentação da sua resposta, que foi dada através do Despacho da Oitava Secção, de 30 de setembro de 2020, proferido no Processo C-135/20, o Tribunal de Justiça esclareceu que
«(...) 18. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou de forma constante que o acordo-quadro não estabelece uma obrigação geral de os Estados-Membros preverem a conversão dos contratos de trabalho a termo certo num contrato por tempo indeterminado. Com efeito, o artigo 5.º, n.º 2, do acordo-quadro deixa, em princípio, aos Estados-membros a incumbência de definir em que condições os contratos ou as relações laborais a termo certo são considerados celebrados por tempo indeterminado. Daqui resulta que o acordo-quadro não estabelece as condições em que se pode fazer uso dos contratos a termo certo (Acórdãos de 4 de julho de 2006, Adeneler e o., C-214/04, EU:C:2006:443, n.º 91, e de 25 de outubro de 2018, Sciotto, C-331/17, EU:C:2018:859, n.º 59 e jurisprudência referida).
19. Contudo, o artigo 5.º, n.º 1 do acordo-quadro impõe aos Estados-Membro, para evitar a conclusão abusiva de sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo, a adoção efetiva e vinculativa de pelo menos uma das medidas que este artigo enumera, quando o seu direito interno não preveja medidas legais equivalentes (Acórdãos de 4 de julho de 2006, Adeneler e o., C-214/04, EU:C:2006:443, n.º 92, e de 19 de março de 2020, Sánchez Ruiz e o., C-103/18 e C-429/18, EU:C:2020:2019, n.º 55 e jurisprudência referida).
20. As medidas assim enumeradas no n.º 1, alíneas a) a c), do artigo 5.º do acordo-quadro, no total de três, referem-se, respetivamente, a razões objetivas que justificam a renovação de tais contratos de trabalho ou daquelas relações laborais e ao número máximo de renovações destes (Acórdão de 19 de março de 2020, Sánchez Ruiz e o., C-103/18 e C-429/18, EU:C:2020:2019, n.º 83 e jurisprudência referida).
21. Além disso, quando, como sucede no presente caso, o direito da União não preveja sanções específicas na hipótese de, não obstante, terem sido constatados abusos, incumbe às autoridades nacionais adotarem medidas que devem revestir um carácter não apenas proporcionado mas também suficientemente efetivo e dissuasivo para garantir a plena eficácia das normas adotadas em aplicação do acordo-quadro (Acórdãos de 4 de julho de 2006, Adeneler e o., C-214/04, EU:C:2006:443, n.º 94, e de 7 de março de 2018, Santoro, C-494/16, EU:C:2018:166, n.º 29 e jurisprudência referida).
22. Embora, na falta de regulamentação da União na matéria, as modalidades de transposição daquelas normas façam parte da ordem jurídica interna dos Estados-membros por força do princípio da autonomia processual destes últimos, aquelas modalidades não devem no entanto ser menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (Acórdãos de 4 de julho de 2006, Adeneler e o., C-214/04, EU:C:2006:443, n.º 95, e de 7 de março de 2018, Santoro, C-494/16, EU:C:2018:166, n.º 30 e jurisprudência referida).
23. Quando se tenha verificado que houve um recurso abusivo a sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo certo, deve assim poder ser aplicada uma medida que apresente garantias efetivas e equivalentes de proteção dos trabalhadores para punir devidamente esse abuso e eliminar as consequências da violação do direito da União. Com efeito, de acordo com a própria redação do artigo 2.º, primeiro parágrafo, da Diretiva 1999/70, os Estados-Membros devem «tomar qualquer disposição necessária para, em qualquer momento, poderem garantir os resultados impostos [por esta] diretiva» (Acórdãos de 4 de julho de 2006, Adeneler e o., C-214/04, EU:C:2006:443, n.º 102, e de 19 de março de 2020, Sánchez Ruiz e o., C-103/18 e C-429/18, EU:C:2020:2019, n.º 88 e jurisprudência referida).
24. Daqui resulta que, para que uma regulamentação nacional que proíbe, no setor público, a conversão num contrato de trabalho por tempo indeterminado de uma sucessão de contratos de trabalho a termo certo possa ser considerada conforme com o acordo-quadro, a ordem jurídica interna do Estado-Membro em causa deve prever, para o referido setor, outra medida efetiva para evitar e, sendo caso disso, punir a conclusão abusiva de sucessivos contratos a termo certo (Acórdão de 7 de março de 2018, Santoro, C-494/16, EU:C:2018:166, n.º 34 e jurisprudência referida).
25. Por conseguinte, se o órgão jurisdicional de reenvio vier a constatar que não existe, na regulamentação nacional em causa no processo principal, nenhuma outra medida efetiva para evitar e punir os abusos eventualmente constatados em relação aos trabalhadores do setor público, tal situação é suscetível de prejudicar o objetivo e o efeito útil do artigo 5.º do acordo-quadro e é, por conseguinte, contrária a este artigo (Acórdãos de 4 de julho de 2006, Adeneler e o., C-214/04, EU:C:2006:443, n.ºs 103 e 104, e, por analogia, Acórdão de 25 de outubro de 2018, Sciotto, C-331/17, EU:C:2018:859, n.º 66 e jurisprudência referida). (...)»
12. Daquela decisão retira-se que cabe a este Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito da sua autonomia processual, avaliar se as medidas adotadas pelo direito interno português para prevenir e punir a celebração abusiva de sucessivos contratos a termo podem considerar-se equivalentes e efetivas, sob pena de, não o sendo, impor-se a desaplicação das respetivas normas e a conversão do contrato da Recorrente num contrato por tempo indeterminado, nos termos previstos na alínea b) do número 2 do artigo 5.º do Acordo-Quadro anexo à Diretiva n.º 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP.
Isso implica formular um juízo que, sem se afastar das circunstâncias do caso concreto, confronte as disposições do artigo 92.º do RCTFP com o disposto naquela diretiva, ponderando, entre outros aspetos, as diferenças de regime existentes entre os setores público e privado (princípio da equivalência) e os efeitos práticos da aplicação das medidas nela estabelecidas para prevenir a contratação abusiva (princípio da efetividade).
Este Tribunal, aliás, já havia reconhecido anteriormente, a propósito de uma questão de direito análoga, «que a liberdade de definição das medidas por parte do legislador interno não pode pôr em causa o resultado final pretendido pelo legislador europeu, ou seja, prevenir os abusos decorrentes da conclusão de sucessivos contratos de trabalho a termo» - cfr. Acórdão do STA 1S, de 7 de dezembro de 2016, proferido no Processo n.º 1009/16.
No caso de se concluir que aquelas medidas não previnem os referidos abusos, e que o direito interno deve ceder perante o direito europeu, será ainda necessário avaliar se, como alega o Recorrido, o regime de acesso à função pública estabelecido no número 2 do artigo 47.º da Constituição da República constitui um obstáculo à aplicação direta da alínea b) do número 2 do artigo 5.º da Diretiva Europeia 1999/70/CE.
Vejamos então.
13. À data da verificação dos factos assentes nos autos, as medidas adotadas pelo direito interno português para prevenir e punir a celebração abusiva de sucessivos contratos a termo constavam do número 3 do artigo 92.º do RCTFP, que dispõe que, «sem prejuízo da produção plena dos seus efeitos durante o tempo em que tenham estado em execução, a celebração ou a renovação de contratos a termo resolutivo com violação do disposto no presente Regime implica a sua nulidade e gera responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos dirigentes máximos dos órgãos ou serviços que os tenham celebrado ou renovado».
Da mesma forma que em relação à regra da proibição da conversão dos contratos a termo prevista, no número antecedente, estas medidas são substancialmente idênticas às que vigoram na atualidade, nos termos do número 1 do artigo 63.º da LGTFP.
Ora, essas medidas não são equivalentes àquelas que se encontram previstas para o setor privado nem, muito menos, previnem efetivamente a celebração abusiva de sucessivos contratos a termo.
14. Desde logo, a solução adotada para os contratos a termo no setor público é radicalmente oposta à do setor privado, que na alínea a) do número 3 do artigo 147.º do Código do Trabalho impõe expressamente a conversão em contratos de trabalho sem termo de todos os contratos a termo «em que seja excedido o prazo de duração ou o número de renovações».
Não é evidente, à luz dos objetivos estabelecidos pela legislação europeia, de melhoria da qualidade do trabalho a termo, de garantia da aplicação do princípio da não discriminação, e da prevenção dos abusos decorrente da utilização de sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo, a razão de ser do tratamento diferenciado do setor público.
A existir, a razão de ser da diferenciação entre setores estaria, não na proteção dos interesses dos trabalhadores contratados, mas na salvaguarda do princípio da igualdade no acesso à função pública por quaisquer interessados, o que, como melhor veremos adiante, a propósito da questão de constitucionalidade suscitada, não é verdadeiramente posto em causa pela conversão dos contratos a termo no setor público.
Significa isto, portanto, que a diferenciação estabelecida pelo direito interno português, não só não tem fundamento na legislação europeia, cuja diretiva não distingue os setores público e privado, como também não se justifica por qualquer razão relacionada com a prevenção de abusos na contratação a termo e no combate à precariedade no emprego público.
Pelo contrário, ao impedir a conversão dos contratos em contratos sem termo, aquela diferenciação favorece os abusos na contratação, na medida em que facilita a constituição de vínculos precários, que não geram obrigações permanentes para os serviços públicos, colocando os trabalhadores contratados a termo no setor público numa situação de ainda maior fragilidade e dependência económica em relação à sua entidade empregadora.
Como refere Maria João Machado, «o sistema sancionatório do RCTFP constitui uma vantagem clara do empregador público relativamente ao empregador privado, porventura injustificada, e, mais grave ainda, coloca os trabalhadores contratados a termo em funções públicas em situação mais penosa ainda do que os seus congéneres privados» - cfr. O contrato de trabalho a termo, Vida Imobiliária, Porto, 2009, p. 337.
15. Na verdade, quer a sanção da nulidade dos contratos, quer o regime de responsabilidade civil, disciplinar e financeira estabelecidos no número 3 do artigo 92.º do RCTFP, protegem o empregador público, mas não o trabalhador.
Nenhum trabalhador trocará a estabilidade do seu emprego por uma compensação financeira, pelo que não tem interesse em invocar a nulidade do seu próprio contrato, enquanto o mesmo se encontrar em execução. E ainda que o fizesse, isso não o colocaria na mesma posição em que estaria se pudesse manter o seu vínculo laboral.
Mas a verdade é que, aquela disposição legal, ao limitar-se a prever a «responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos dirigentes máximos dos órgãos ou serviços» das entidades empregadoras, não lhe confere, a ele, trabalhador, uma compensação pelas perdas e danos que sofrerá com a cessação do seu contrato, tanto mais que a mesma disposição comina o contrato com a sanção da nulidade.
A responsabilidade civil a que aquela disposição legal se refere é, afinal, tal como a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade financeira nela previstas, aquela que se constitui na esfera dos dirigentes máximos dos órgãos ou serviços que tenham celebrado ou renovado ilicitamente os contratos a termo entretanto declarados nulos, perante as respetivas entidades públicas empregadoras.
Dir-se-á que é precisamente aqui que reside o carácter preventivo das medidas previstas na lei, porque o espectro da responsabilização inibirá aqueles dirigentes de celebrarem ou renovarem ilicitamente quaisquer contratos a termo. Mas, para que essa inibição fosse efetiva, era preciso que as entidades públicas empregadoras sofressem realmente um dano indemnizável que pudessem exigir aos respetivos dirigentes. Mas não sofrem, porque os contratos entretanto declarados nulos deixam de produzir efeitos financeiros para o futuro, e os efeitos financeiros produzidos no passado foram compensados pela contraprestação laboral efetiva do trabalhador, sem que se possa falar, com rigor, em prejuízo para o empregador.
A verdade, como afirmou Susana Sousa Machado, «é que prevenir e compensar são realidades bem diferentes», e a compensação prevista na lei, mesmo que fosse realmente exigível aos dirigentes máximos dos órgãos ou serviços públicos empregadores, não previne efetivamente os abusos na celebração de sucessivos contratos a termo - cfr. Contrato de trabalho a termo. A transposição da Directiva 1997/70/CE para o ordenamento jurídico português: (In)compatibilidades, Coimbra Editora, 2009, p. 324.
16. A prova de que aquelas medidas não são efetivas, é que, ao fim de quase duas décadas de vigência do regime, não se conhece, em qualquer uma das jurisdições implicadas, nenhuma decisão judicial publicada em que aquela responsabilidade – em qualquer um dos seus três planos de atuação – tenha sido assacada aos dirigentes em questão. Ao contrário das dezenas de casos julgados – tanto na jurisdição comum, como na administrativa – em ações propostas por trabalhadores a termo que pretendem a conversão do seu contrato a termo num contrato sem termo – v., entre outros, na jurisdição administrativa e fiscal, Acórdãos do TCAN, de 2.3.2012 (Proc. n.º 02637/09.3BEPRT), de 29.5.2014 (Proc. n.º 03260/105BEPRT), de 2.7.2015 (Proc. n.º 00450/11.7BEVIS), de 21.4.2016 (Proc. n.º 01678/13.0BEPRT), de 5.5.2016 (Proc. n.º 13057/16), de 10.2.2017 (Proc. n.º 00939/15.9BEPRT), de 15.6.2018 (Proc. n.º 00829/15.5BEPRT), de 2.7.2021 (Proc. n.º 02536/16.0BEPRT), de 5.2.2021 (Proc. n.º 00691/14.5BEPNF), e na jurisdição comum, Acórdãos do TRP, de 9.11.2009 (Proc. n.º 734/08.1TTVNG.P1), de 3.5.2010 (Proc. n.º 734/08.1TTVNG.P1), de 22.10.2010 (Proc. n.º 375/08.3TTVNG.P1), de 17.6.2013 (Proc. n.º 1834/08.3TTPRT.P3), de 20.1.2014 (Proc. n.º 372/09.1TTVRL.P1), de 19.3.2018 (Proc. n.º 2250/16.978PNF.1), e de 4.11.2019 (Proc. n.º 1358/18.0T8PNF.P1), e do STJ, de 18.6.2008 (Proc. n.º 06S2445) e de 13.7.2017 (Proc. nº 723/14.7TTPRT.P1.S1).
Em contrapartida, é sabido que as entidades públicas continuam a recorrer abusivamente à contratação a termo para satisfazer as suas necessidades permanentes de serviço, além de prolongarem ilicitamente os respetivos vínculos para além do número máximo de renovações permitidas por lei, o que é evidenciado, quer por aquelas demandas judiciais, quer, sobretudo, pelos cíclicos processos de integração de trabalhadores precários de que o Estado tem lançado mão nos últimos anos, como aquele que ainda hoje decorre ao abrigo do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública criado pela Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro.
Mas nem é preciso ir tão longe. Basta olhar para a matéria de facto provada nos autos para se perceber a facilidade com que, ficcionando funções que não correspondem àquelas que são realmente exercidas pelo trabalhador, é possível celebrar um contrato a termo e “renová-lo” sete (!) vezes ao longo de treze anos, para satisfazer uma necessidade de serviço que, obviamente, é permanente. Sendo que, tanto quanto se pode apurar pela matéria de facto trazida aos autos, ninguém na estrutura dirigente do Município de Gondomar foi responsabilizado civil, disciplinar ou financeiramente pela contratação ilícita da Recorrente.
17. Poderá argumentar-se que a própria jurisprudência do TJUE, no seu Acórdão de 7 de setembro de 2006, Marrosu e Sardino, proferido no Processo n.º C-53/04, admitiu, pelo menos em tese geral, que a atribuição, ao trabalhador, de uma indemnização pelos danos causados pelo abuso na sua contratação a termo, poderia constituir uma medida alternativa à conversão dos contratos.
Mas atente-se no que se afirmou naquele acórdão:
«55. A esse respeito, há que assinalar que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que prevê regras imperativas relativamente à duração e à renovação de contratos a termo, bem como o direito à reparação do prejuízo sofrido pelo trabalhador resultante do recurso abusivo, pela Administração Pública, a contratos ou relações de trabalho a termo sucessivos, parece, à primeira vista, satisfazer as exigências recordadas nos n. os 51 a 53 do presente acórdão.
56. Todavia, compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar em que medida é que as condições de aplicação bem como a execução efectiva do artigo 36.°, n.° 2, primeira frase, do Decreto Legislativo n.° 165/2001 fazem com que esta disposição constitua uma medida adequada para evitar e, sendo caso disso, punir a utilização abusiva, pela Administração Pública, de contratos ou relações de trabalho a termo sucessivos».
Ora, no direito interno português, contrariamente ao que prevê o direito italiano, não se atribui verdadeiramente uma compensação ao trabalhador pelo prejuízo causado pela cessação do vínculo, estabelecendo-se antes um princípio geral de responsabilização – civil, disciplinar e financeira - dos dirigentes máximos dos órgãos ou serviços públicos perante as entidades que representam, o que, como vimos, está muito longe de ser adequado para evitar ou punir a utilização abusiva, pela Administração Pública, de contratos ou relações de trabalho a termo sucessivos.
18. Do exposto resulta, com segurança, que o regime sancionatório estabelecido no número 3 do artigo 92.º do RCTFP não previne, nem reprime de forma efetiva, os abusos decorrentes da celebração de sucessivos contratos de trabalho a termo, para além do prazo ou do número máximo de renovações legalmente permitidas.
Não se prevendo no direito interno português «outra medida efetiva para evitar e, sendo caso disso, punir a conclusão abusiva de sucessivos contratos a termo certo», conclui-se inevitavelmente que o disposto no número 2 do artigo 92.º do mesmo diploma legal, que proíbe em absoluto a conversão de contratos de trabalho a termo celebrados por entidades públicas em contratos de trabalho por tempo indeterminado, viola o Direito da União Europeia, nomeadamente o artigo 5.º do Acordo-Quadro anexo à Diretiva n.º 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP.
19. Suscita-se agora a questão de saber se a conversão de um contrato a termo num contrato por tempo indeterminado, por efeito da aplicação direta da alínea b) do número 2 do artigo 5.º da citada Diretiva n.º 1999/70/CE, ofende o regime constitucional de acesso à função pública estabelecido no número 2 do artigo 47.º da CRP, como alega o Recorrido.
A discussão sobre a constitucionalidade da conversão dos contratos a termo celebrados pelo Estado em contratos sem termo foi feita, essencialmente, a propósito da interpretação do número 3 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de dezembro, que definia então o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública, e permitia, por remissão para a lei geral do trabalho, aquela conversão. Pelo menos, até que aquele diploma legal fosse alterado pelo Decreto-Lei n.º 218/98, de 17 de Julho, que passou a proibi-la expressamente.
Sobre a referida disposição legal, interpretada naqueles termos, se pronunciaram, no sentido da sua inconstitucionalidade, diversos acórdãos do Tribunal Constitucional, primeiro em sede de fiscalização concreta – cfr. Acórdãos n.ºs 683/99, 73/2000 e 82/2000, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt -, e finalmente, através do Acórdão n.º 368/00, de 11 de julho de 2000, relatado pelo Juiz Conselheiro Paulo Mota Pinto, em sede de fiscalização sucessiva abstrata.
Deve dizer-se, antes do mais, que o referido acórdão, tirado por uma maioria tangencial de sete votos a favor e seis contra, não vincula este Supremo Tribunal Administrativo na decisão da presente causa, não obstante ter força obrigatória geral, dado que a norma então julgada inconstitucional não é a mesma que resulta da aplicação direta da alínea b) do número 2 da Diretiva n.º 1999/70/CE.
É certo que a solução jurídica determinada por uma e outra são idênticas, mas além da diferença na sua forma, que não é despicienda na delimitação dos efeitos do caso julgado, o quadro normativo no âmbito do qual as duas devem ser interpretadas são muito distintos, mesmo sem entrar em linha de conta com o impacto da própria Diretiva n.º 1999/70/CE, cujo prazo de transposição terminou em momento posterior ao da prolação do Acórdão n.º 368/00, e com a evolução da natureza das relações entre os ordenamentos jurídicos nacional e europeu, e da crescente afirmação do «princípio do primado» do direito europeu, por efeito da revisão constitucional de 2004 e, principalmente, da aprovação da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
Na verdade, aquele acórdão assentou a sua argumentação, principalmente, na especificidade da relação jurídica de emprego público, especificidade essa que, ao longo dos últimos vinte anos se esbateu, substancialmente, pelo movimento contínuo de laboralização, ou de privatização, a que o regime da função pública tem sido sujeito.
É certo que continua a fazer sentido falar-se em função pública, ou pelo menos num regime de emprego público, por oposição ao regime de emprego privado, e que o mesmo não pode deixar de estar sujeito a especificidades impostas pela prossecução do interesse público, nomeadamente no que se refere ao respetivo regime de acesso. Mas o parâmetro constitucional em que o Tribunal Constitucional assentou a sua pronúncia – o da violação do número 2 do artigo 47.º da CRP – é hoje, no essencial, respeitado por aquele regime, que no número 5 do artigo 56.º da LGTFP determina que «a constituição do vínculo de trabalho em funções públicas a termo resolutivo deve obedecer a um procedimento concursal (...)».
Aquela decisão é, pois, uma decisão datada, sem nenhuma correspondência com o quadro normativo atualmente em vigor, e sem conteúdo útil. Além do mais, não dá resposta às preocupações entretanto trazidas ao domínio da contratação laboral a termo pelo direito europeu.
20. Acresce, por outro lado, que, independentemente do regime de acesso e da forma de constituição dos contratos de trabalho em funções públicas a termo resolutivo, hoje, como então, o princípio da igualdade no acesso à função pública não se pode sobrepor cegamente ao direito à estabilidade no emprego consagrado no artigo 53.º da CRP.
O entendimento em que assenta o Acórdão n.º 368/00, que reduz aquele direito, no âmbito das relações de trabalho a termo, a uma mera garantia indemnizatória, parte de um preconceito injustificado sobre as modalidades de recrutamento dos contratados a termo no setor público, ignora o interesse e a responsabilidade dos empregadores públicos na consolidação das relações laborais a termo, e não pondera de forma proporcional os diversos valores constitucionais em presença.
Como salientou de forma expressiva Liberal Fernandes, «este entendimento da segurança no emprego parece-nos altamente redutor do âmbito de uma regra estruturante do nosso ordenamento laboral; admitir, como tese geral, a redutibilidade daquele princípio a um direito de indemnização significa amputar o seu conteúdo e restringir de forma desproporcionada as garantias contra a violação do seu conteúdo essencial, uma vez que a regra da conversão constitui o meio que verdadeiramente lhe confere eficácia jurídica» - cfr. Relações de tensão entre o ordenamento português e comunitário na disciplina do contrato de trabalho a termo, in Revista Electrónica de Direito, 2013, n.º 1, p. 19.
21. Na verdade, e ao contrário do que se afirma naquele acórdão, um eventual desvio ao princípio do concurso público para assegurar a integração nos quadros de trabalhadores contratados a termo que, manifestamente, asseguram necessidades permanentes dos serviços públicos, também se justifica por princípios materiais, nomeadamente os princípios da boa fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade, e responde igualmente a «um interesse institucional, da própria Administração Pública, na promoção da sua capacidade funcional e de prestação».
Não é por acaso que, no regime de recrutamento de trabalhadores em funções públicas atualmente em vigor, se estabelece uma preferência na admissão de trabalhadores contratados a termo para ocupação, por tempo indeterminado, de um posto de trabalho com características idênticas às daquele para que foi contratado – cfr. artigo 66.º da LGTFP.
Do mesmo modo que, nos procedimentos concursais previstos no âmbito do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública, criado pela Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro, apenas podem ser opositores «as pessoas que exerçam ou tenham exercido funções que correspondam ao conteúdo funcional de carreiras gerais ou especiais e que satisfaçam necessidades permanentes dos órgãos ou serviços abrangidos pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP)».
Em ambos os casos, se reconhece que há um ganho de eficiência para o serviço público em aproveitar a experiência daqueles trabalhadores, ao invés de recrutar novos trabalhadores que necessitam de um período de formação, e de adaptação, até estarem em condições de atingir o mesmo nível de produtividade.
Essa experiência, por vezes adquirida ao longo de anos de exercício das exatas mesmas funções, não pode deixar de relevar para efeitos de recrutamento, assim como o tempo decorrido, que cria nos trabalhadores uma expectativa fundada de que a sua relação laboral, pela sua essencialidade ao funcionamento do serviço, se prolongará no tempo.
Desde que Marcello Caetano enunciou a doutrina dos funcionários putativos que a doutrina e a jurisprudência administrativas vêm admitindo que a consolidação, pelo decurso do tempo, de situações de facto constituídas invalidamente, opõe-se à própria legalidade, de harmonia com os princípios fundamentais da boa fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade, o que, aliás, está atualmente expressamente previsto na lei no regime dos atos administrativos nulos – cfr. artigo 162.º, n.º 3 do CPA.
No caso dos autos, concretamente, não obstante a Recorrente não ter sido admitida por concurso público, mas por «urgente conveniência de serviço», não há razões para duvidar da sua boa-fé, nem tão pouco, para frustrar a confiança que ela depositou na manutenção do seu vínculo laboral, tanto mais que ela satisfazia necessidades permanentes do serviço, e foi a própria entidade empregadora que, no seu interesse, celebrou ou renovou ilicitamente o seu contrato. Sendo que ela esteve ao serviço do Recorrido por treze anos consecutivos, i.e., mais de um quarto da sua vida profissional útil.
22. Ou seja, há muitas e boas razões para admitir que a conversão de contratos de trabalho a termo celebrados por entidades públicas em contratos de trabalho por tempo indeterminado convive bem com o princípio do concurso público no acesso à função publica, quer porque, na atualidade, a celebração de contratos a termo é, ela própria, sujeita a concurso público, quer, em qualquer caso, porque aquela conversão não constitui uma restrição arbitrária do referido princípio, justificando-se, tanto pela garantia da estabilidade no emprego consagrada no artigo 53.º da CRP, com a qual aquele princípio tem necessariamente de se conciliar, como pela salvaguarda de outros princípios fundamentais da atividade administrativa, nomeadamente os princípios da boa fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade.
Pelo que, e em conclusão, a conversão de um contrato a termo num contrato por tempo indeterminado, por efeito da aplicação direta da alínea b) do número 2 do artigo 5.º da citada Diretiva n.º 1999/70/CE, não ofende o regime constitucional de acesso à função pública estabelecido no número 2 do artigo 47.º da CRP, não sendo, por isso, necessário invocar o princípio do primado do direito europeu para justificar a aplicação daquela norma ao caso dos autos.
IV. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e, em consequência, em julgar totalmente procedente a presente ação.
Custas pelo Recorrido. Notifique-se
Lisboa, 8 de Setembro de 2022. - Cláudio Ramos Monteiro (relator) - José Augusto Araújo Veloso - Ana Paula Soares Leite Martins Portela.
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