Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0252/12.3BEBRG
Data do Acordão:11/08/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:Não se justifica a admissão da revista se, contrariamente ao alegado, a questão não oferece complexidade jurídica superior à comum nem a solução sufragada se revela manifestamente errada ou juridicamente insustentável.
Nº Convencional:JSTA000P31541
Nº do Documento:SA2202311080252/12
Recorrente:AGERE – EMPRESA DE ÁGUAS, EFLUENTES E RESÍDUOS DE BRAGA, E.M.
Recorrido 1:A..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório –

1 – AGERE – EMPRESA DE ÁGUAS, EFLUENTES E RESÍDUOS DE BRAGA, E.M., com os sinais dos autos, vem, ao abrigo do disposto no artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 11 de maio de 2023, que concedeu provimento ao recurso interposto por A..., S.A., melhor identificada nos autos, revogando a sentença recorrida e julgando procedente a impugnação de taxa de ligação do saneamento do imóvel de que esta é proprietária.
A recorrente conclui as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

Com o presente recurso de revista pretende a Recorrente obter uma melhor aplicação do direito, bem como obter pronúncia sobre uma questão com relevância jurídica, pois está em causa a anulação de um acto administrativo em matéria tributária por efeito de aplicação de um princípio constitucional ou princípios da actividade administrativa, que regem a actividade discricionária da Administração.

Numa matéria estritamente vinculada (aplicação de uma tarifa por parte de uma empresa municipal, na sequência de delegação (por constituição) do Município), o acórdão recorrido fundamenta-se em princípios gerais para anulação da liquidação quando tem sido entendimento constante e maioritário da jurisprudência e da doutrina que não é anulável por efeito de princípios da actividade administrativa o acto praticado ao abrigo de poderes vinculados, motivo pelo qual se entende que a relevância jurídica da questão e a melhor aplicação do direito se explica pelo facto do acórdão recorrido constituir uma derrogação de entendimento constante dos tribunais e contrariar posição dominante sobre uma matéria estruturante da actividade administrativa.

O presente recurso preenche os requisitos previstos no nº 1 do artigo 285º do CPPT, pelo que se encontra em condições de ser recebido na apreciação liminar sumária prevista no nº 6 do mesmo normativo.

A Recorrente emitiu a liquidação no uso de poderes vinculados e estava obrigada a cumprir a deliberação da Assembleia Geral que aprovou a tarifa (cfr. factos provados 17 e 18), constituindo, tal como foi identificado na sentença da 1ª instância, esta deliberação a norma de incidência.

Como resulta do artigo 8º da LGT, estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência e a liquidação da taxa e nos termos do artigo 266º/nº 2 da CRP a Recorrente está obrigada a cumprir com a lei, isto é, obrigada a liquidar a taxa de acordo com a deliberação, motivo pelo qual não é a informação errada na página na internet que pode legitimar a violação do princípio da legalidade tributária.

O acórdão recorrido acaba por responsabilizar a Recorrente por ter fornecido uma informação errada à Recorrida, considerando injusto que se liquide a tarifa à área bruta e não à área útil (como estava publicitado) e é contra este entendimento que a Recorrente se manifesta, pois esta injustiça podia relevar em sede de responsabilidade civil extracontratual (em teoria), mas não pode conduzir à anulação do acto impugnado.

A Recorrente terá induzido a Recorrida em erro de forma não intencional, pelo que a violação da boa-fé e da colaboração entre Administração e particulares (a situação de facto não permite qualquer colaboração entre as partes) se afigura desajustada.

Considera a Recorrente que a informação errada constante da página na internet não constitui violação de nenhum dos princípios indicados pelo acórdão recorrido, não afectando a validade da liquidação impugnada, que respeitou a deliberação que a aprovou.

O acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento de Direito, concretamente dos artigos 8º da LGT e 266º/nº 2 da CRP, e do princípio da confiança no Estado de Direito e dos princípios da boa-fé e da colaboração na actividade administrativa.

TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o douto acórdão recorrido e substituindo-o por outro que julgue a impugnação totalmente improcedente, assim se fazendo inteira JUSTIÇA.

2 – Contra-alegou a recorrida concluindo nos seguintes termos:

I. Para sustentar a admissibilidade do recurso, a Recorrente aponta a relevância jurídica da questão e a necessidade de uma melhor aplicação do Direito, fundamentos previstos no artigo 285º/1 do CPPT (réplica do art.º 150º do CPTA).

II. Entende a Recorrida que nenhum dos fundamentos erigidos pela Recorrente se subsumem aos requisitos de admissibilidade do Recurso de Revista, explanados no art.º 285º/1 do CPPT, porquanto, sendo a revista um recurso excecional, deve funcionar como uma “válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.”
III. A questão em apreciação não se afigura como um tema de elevada complexidade jurídica ou que demande a conexão entre diferentes regimes e institutos jurídicos, de modo que justifique a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo.
IV. Acresce que, não obstante a Recorrente ter alegado no seu recurso que o douto acórdão contraria a posição dominante “há muitos e muitos anos” sobre a fiscalização da atuação vinculada e discricionária da Administração Pública, o certo é que, tampouco, elenca jurisprudência nesse sentido.
V. Além de que, a questão que a Recorrente pretende ver reapreciada foi decidida pelas instâncias em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal, como se entendeu no Acórdão do STA, de 25/06/2008 (recurso n.º 0291/08)
VI. Por tudo o que foi demonstrado, o presente recurso de revista não deve, salvo o respeito por entendimento diverso, ser admitido por não se verificarem as condições de admissibilidade do artigo 285.º do CPPT e do artigo 150.º do CPTA.
Sem prejuízo,
VII. A apreciação do Tribunal Central Administrativo teve por base a matéria e facto dada como provada na primeira instância, à qual entendeu aditar, nos termos do art.º 662º do CPC, um facto alegado pela Recorrida e provado por não contestado, mediante o doc. n.º 7 da PI, que se reproduz:
“19. À data da emissão da factura e da nota de crédito acima referidas, a página da Recorrida na Internet ostentava a informação cujo teor no doc. 7 da PI aqui se dá por reproduzido, transcrevendo-se a seguinte “Nota: a tarifa é calculada pela aplicação dos coeficientes à área útil e liquidada pelo proprietário do prédio.”
VIII. Com este aditamento, pretendeu o tribunal a quo destacar o princípio da tutela da confiança no Estado de Direito, sob o fundamento de que a norma, que constitui fundamento legal da quantificação do tributo, foi publicitada em termos diversos do efetivamente deliberado e aprovado pelo sujeito emissor.
IX. A referida norma foi publicitada pela Recorrente na sua página da Internet (www.agere.pt), através da apresentação da tabela de “Tarifa de Ligação de Saneamento 2011” (fls 46 – doc. 7 PI) onde constava a menção de que a tarifa de ligação de saneamento é “calculada pela aplicação dos coeficientes à área útil do prédio”.
X. Em cumprimento de despacho judicial, veio a impugnante juntar aos autos (já após o encerramento da discussão) uma ata da assembleia geral, datada de 30/12/2010, alegando não existir qualquer Regulamento de Tarifas de Ligação de Saneamento, mas apenas a sobredita ata…
XI. Não podendo, porém, deixar de se estranhar que o teor dessa ata corresponda ipsis verbis ao mesmo teor da informação de fls. 46 (Doc. 7 PI) com a única diferença (cirúrgica, claro está) de que na nota de rodapé de um é feita a menção a “área útil” e na mesma nota de rodapé do outro é feita a menção a “área bruta”.
XII. É manifesta a desconformidade entre a informação veiculada e publicitada no site da Recorrente na internet e o teor da deliberação de 30.12.2010, face a esta matéria.
XIII. Não obstante, apesar da desconformidade de informação ter sido gerada unicamente pela Recorrente, o erro, porém, foi diretamente imputado ao sujeito passivo, a Recorrida, responsável pelo pagamento do tributo em apreço.
XIV. Cenário que se agrava atenta a entidade emissora é uma empresa local de natureza municipal.
XV. As empresas locais são uma das manifestações do princípio da descentralização administrativa, consagrado no artigo 237.º da CRP, e muito embora sejam dotadas de autonomia administrativa, financeira e organizacional, elas encontram-se sujeitas aos princípios norteadores da Administração Pública, que determinam, entre outros, que essas empresas prossigam o interesse público, a transparência de sua atuação e a não discriminação dos munícipes.
XVI. In casu, além dos princípios norteadores da Administração Pública que ganham destaque pelo enquadramento legal da Recorrente enquanto empresa municipal, merecerão igualmente ênfase os princípios constitucionais da boa-fé, da proteção da confiança e da justiça. Pois, a aplicar-se a área bruta para efeito de calculo da taxa de ligação do saneamento, estaríamos perante uma situação de flagrante injustiça e de violação dos princípios basilares que devem nortear a ação da Administração Pública.
XVII. É inegável que a atuação da atividade administrativa se encontra em toda a sua amplitude balizada pelos princípios constitucionais e jus administrativos, devendo, em especial entender-se que princípios como o da justiça e da boa fé são aplicáveis mesmo no exercício de poderes vinculados, sobrepondo-se a outros deveres legais.
XVIII. E, embora a jurisprudência do STA acentuasse, em tempos, a impossibilidade de o princípio da boa-fé ser aplicável em caso de atos praticados no exercício de poderes vinculados, sob a justificação de que, nessa concreta circunstância, o princípio da legalidade se sobrepõe a quaisquer outros princípios – cfr. Acórdão de 26/10/94, recurso n.º 17626 -, o entendimento que tem sido sufragado pela jurisprudência do STA vai no sentido de que a relevância deste princípio não se esgota nos atos praticados no exercício de poderes discricionários e que a aplicação do princípio da boa-fé pode atuar mesmo em caso de atos praticados, ainda, que no exercício de poderes vinculados.
XIX. Neste sentido veja-se o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do STA, de 17/05/2000, recurso n.º 024382, assim como o acórdão do STA de 28-1-2009, processo n.º 0699/08.
XX. Contraria-se, por conseguinte, o entendimento da Recorrente na medida em que não se trata de uma “entrada” do poder judicial na atividade vinculada da Administração, mas antes um correto julgamento para obstar a uma atuação da administração que conduziria a uma situação flagrantemente injusta, colocando-se, por isso, a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.
XXI. No caso subjudice assume, ainda, especial contorno o princípio da tutela da confiança.
XXII. Este princípio encontra expressão nas disposições legais que consagram o princípio da boa-fé (art.º 10.º, n.º 2 do CPA) e «visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.»
XXIII. A tutela de confiança, no âmbito da atividade administrativa, pressupõe a verificação de diversas circunstâncias, entre elas: uma atuação de um sujeito de direito que crie confiança; a existência de uma situação de confiança, ou seja, uma convicção, por parte do destinatário da actuação em causa; a efetivação de um investimento de confiança e a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou.
XXIV. No caso, a Recorrida entendeu como fidedigna e válida a informação publicitada na página da Recorrente na internet, tendo assumido, sem qualquer possibilidade para duvidar ou questionar, que a área que serviria de calculo para a aplicação da tarifa de ligação de saneamento era a “área útil”, com exclusão de qualquer outra.
XXV. A ponderação dos custos expectáveis em face do projeto desenvolvido, foi efetuada pela Recorrida tendo por referência a informação previamente obtida (no site da Recorrente na internet). Informação esta, em nada coincidente com a liquidação final apurada pela Recorrente.
XXVI. A Recorrida confiou (sem possibilidade para desconfiar) na informação disponibilizada na página da internet da empresa pública municipal.
XXVII. A bem da verdade depositou uma confiança acrescida na medida em que as Empresas Municipais tomam parte na administração autónoma do Estado, sob régie dos municípios.
XXVIII. Todavia, a atuação da Recorrente não denota boa-fé e tampouco é digna da confiança que a Recorrida, enquanto, contribuinte lhe depositou.
XXIX. Perante o exposto, e salvo entendimento contrário, entendemos que andou bem o TCAN na decisão proferida, pois não só a decisão de anulação de um ato administrativo proferido no âmbito do poder vinculado da Administração, por aplicação de um princípio constitucional ou princípios jus administrativos, não é uma decisão atípica e, tampouco, errada, como alega a Recorrente, mas antes uma decisão com um acento cada vez mais vincado no seio da jurisprudência, como se encontram reunidas as circunstancias para fazer operar a tutela da confiança, como propósito de evitar uma situação de flagrante injustiça para o contribuinte, acarretando-lhe um desproporcionado e intolerável prejuízo.
XXX. Sufraga-se, sem mais, a decisão proferida pelo douto acórdão, reforçando que o caso sub judice não merece melhor aplicação do Direito além da alcançada.
Sem prescindir do exposto,
XXXI. A verdade é que mesmo considerando irrelevante a dita divergência entre a ata e a informação publicitada pela própria Impugnada, o certo é que ainda assim não assiste qualquer razão à Recorrente.
XXXII. Nestes em que se discorda do julgamento do TCAN quando refere: “…a ter sido correctamente publicitada aquela norma, nada haveria a apontar quer á liquidação quer à sentença recorrida.”
XXXIII. A questão que cumpre também apreciar é se a área destinada a garagens deve ou não ser contabilizada para efeitos de liquidação da tarifa de ligação de saneamento.
XXXIV. As garagens em causa correspondem a uma área de 1.918,43 m2 situadas na cave do edifício (piso – 1), não possuindo qualquer infraestrutura de ligação à rede de saneamento pública (instalações sanitárias ou outras equivalentes).
XXXV. Nos termos do art.º 40º do CIMI, as áreas brutas dependentes “São as áreas cobertas de uso exclusivo, ainda que constituam partes comuns, mesmo que situadas no exterior do edifício ou da fracção, cujas utilizações são acessórias relativamente ao uso a que se destina o edifício ou fracção, considerando-se para esse efeito, locais acessórios as garagens e parqueamentos, as arrecadações, as instalações para animais, os sótãos ou caves acessíveis, desde que não integrados na área bruta privativa, e ainda outros locais privativos de função distinta das anteriores”.
XXXVI. A tabela 4 da ata da assembleia geral da Impugnada (coincidente com a informação de fls. 46), que determina os coeficientes de valorização das tarifas de ligação de saneamento, não distingue os prédios de acordo com a natureza da área, mas sim de acordo com a sua afetação.
XXXVII. Assim, são aí distinguidos (i) os prédios destinados a habitação, (ii) os prédios não destinados a habitação e (iii) os armazéns exclusivamente destinados a arrecadação de bens e equipamentos.
XXXVIII. Ora, o parque de estacionamento situado na cave do edifício (piso -1) não se destina a armazéns destinados à arrecadação de bens e equipamentos, nem possui quaisquer infraestruturas de ligação à rede de saneamento pública (instalações sanitárias ou outras equivalentes).
XXXIX. A área bruta de construção divide-se em área bruta privativa e área bruta independente. Correspondendo, grosso-modo, a área bruta privativa à também designada “área útil” do prédio, e a área bruta dependente às “… áreas cobertas e fechadas de uso exclusivo, ainda que constituam partes comuns, mesmo que situadas no exterior do edifício a que se destina o edifício ou fração, considerando-se para esse efeito, locais acessórios as garagens, os parqueamentos, as arrecadações, as instalações para animais, os sótãos ou caves acessível.
XL. Ora, conforme resulta do doc. de fls 46 e da ata da assembleia geral da Impugnada, a única área, de entre as áreas integrantes da área bruta dependente, que a Impugnada deliberou que deveria ser taxada foram os “armazéns exclusivamente destinados a arrecadação de bens e equipamentos”.
XLI. Assim, com exceção das áreas de armazéns destinados a arrecadação (taxados a uma tarifa mais reduzida) nenhuma outra área integrante da área bruta dependente (área não útil) deve ser objeto de taxação.
XLII. O que, de resto, bem se entende. Pois, para além de a área destinada a garagens estar in casu situada na cave do edifício (piso – 1), e como tal, não possuir qualquer infraestrutura (WC ou outro equivalente) que tenha qualquer ligação às condutas ou rede de saneamento publica, as quais se situam exclusivamente nos pisos acima da cota soleira.
XLIII. Entendimento diverso ofende o princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 7.º do Código do Procedimento Administrativo, na medida em que admite que seja tributado um serviço através da aplicação de uma tarifa a uma área que não tem nem precisa do serviço que é objeto dessa tributação.
XLIV. Por tudo o exposto se conclui que as garagens, situadas na cave do edifício (piso – 1), com uma área total de 1.918,43 m2, constituem área bruta dependente que, de acordo com a tabela de liquidação da Impugnada de fls. 46 e da ata da assembleia geral da Impugnada ora junta aos autos, não deve ser considerada para efeitos de liquidação da tarifa de ligação de saneamento.
XLV. Como tal, é ilegal a liquidação calculada sobre a área que integra as garagens, por não se tratar de área bruta dependente qualificada para efeitos de tributação.is e as varandas…”.

TERMOS EM QUE,

Não deve ser admitido o presente recurso de revista por não se verificarem as condições de admissibilidade do artigo 285.º do CPPT e do artigo 150.º do CPTA.

Caso assim não se entenda, deve ser NEGADO provimento ao mesmo, impondo-se a confirmação da douta decisão recorrida.

3 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA não emitiu parecer sobre a admissão da revista.

4 – Dá-se por reproduzido o probatório fixado no acórdão sindicado e respectiva motivação (fls. 12 a 17 da respectiva numeração autónoma).

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.


- Fundamentação –

5 – Apreciando.

Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, na redacção vigente, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.

6 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.

O acórdão do TCA sob escrutínio concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão de 1.ª instância que julgara improcedente a impugnação da taxa de ligação de saneamento com a seguinte motivação específica:

«(…) Não há dúvida, em face dos factos provados, que a norma que constitui o fundamento legal da quantificação do tributo dispõe que a área do prédio a ter em conta para o cálculo da taxa é a área bruta.

Nesse sentido, a ter sido correctamente publicitada aquela norma, nada haveria a apontar quer à liquidação quer à sentença recorrida.

Porém, também está provado que a norma se encontrava publicitada em termos diversos do efectivamente deliberado e aprovado pelo sujeito emissor da mesma, na medida em que na página oficial da Recorrida na internet figurava que seria a área útil, aquela que se teria em conta para aplicar os coeficientes deliberados.

A Mª Juiz a qua entendeu que isso era irrelevante, pois este instrumento de publicitação não é, em si mesmo, “fonte idónea dos pressupostos da taxa, não se sobrepondo, por isso, ao teor da referida deliberação”.

Mas será isso bastante para uma liquidação que ignorou os termos daquela publicitação ser válida e legal?

A recorrente invoca o artigo 232º do CC e louva-se na teoria do negócio jurídico para vincular a Recorrida à versão publicitada. A teoria do negócio jurídico não se presta à apreciação de um acto de mera publicitação de um regulamento, que, por sua vez, é um acto normativo. Por outro lado, na liquidação de um tributo, a vontade do autor da liquidação é irrelevante. O que releva é a adequação legal da liquidação.

Julgamos que é o Direito Constitucional que aqui é chamado a intervir, directamente.

Na verdade, ao entendimento do Mº Juiz recorrido opõe-se, antes de mais, o direito fundamental à tutela da confiança no Estado de Direito (artigo 2º da Constituição), direito da ordem dos direitos liberdades e garantias a que se refere o artigo 18º nº 1 da Constituição, directamente invocáveis e aplicáveis, isto é, aplicáveis sem necessidade de mediação legislativa.

No nosso caso, o contribuinte vê publicitado um certo modo, plausível e proporcional, de determinar uma taxa de valor não despiciendo, confia, justamente, em que a norma emitida corresponde em tudo ao teor publicitado, conclui e pressupõe, na sua actividade económica, que a taxa a pagar será, consequentemente, de determinado valor, mas a Administração, após consumado um facto tributário que envolve um investimento considerável (a construção ou a aquisição de um edifício de consideráveis proporções) vem exigir-lhe valor sensivelmente superior, por aplicação de uma norma de quantificação contraditória com o que fora publicado. Note-se: do ponto de vista do contribuinte o erro não era evidente nem perto disso, nada permitia, ao contribuinte, antevê-lo.

Neste contexto a injustiça da aplicação do coeficiente à área bruta, como efectivamente previsto na deliberação, mostra-se flagrante.

Importava e importa, por isso, fazer intervir o princípio da confiança no Estado de Direito, o qual impõe que a entidade fiscal, possa exigir do contribuinte apenas o valor resultante da aplicação do coeficiente à área útil – a que constava da publicação.

Para quem não encontrar razão neste nosso entendimento, dir-se-á que ao mesmo resultado terá de chegar por aplicação dos princípios jus administrativos da boa fé e da colaboração com os contribuintes, que norteiam e condicionam toda a actividade da administração, mesmo a tributária (cf. artigos 48º do CPPT, e 6º-A, maxime nºs 1 e 2 a)3 e 7º, maxime o nº 24.
Não ignoramos que os princípios do procedimento administrativo e do procedimento tributário se prestam, antes de mais e em regra, a nortear a actividade discricionária da administração.
Contudo, quando da aplicação de determinada norma tributária, sem mais, isto é, sem a consideração de um de terminado princípio jus administrativo ou tributário, resultar flagrante injustiça que só a sua intervenção pode suprir, a unidade da ordem jurídica impõe a intervenção desse princípio.
Assim, in casu, se não operasse directamente o princípio da confiança no Estado de Direito, conforme supra expusemos, sempre os princípios da colaboração e da boa-fé imporiam apenas poder, a Recorrida, liquidar, da taxa em causa, o valor resultante da área útil do imóvel. (…)» (destacados nossos).
Desta decisão requer a recorrente revista, alegando que esta se justifica para obter uma melhor aplicação do direito, bem como obter pronúncia sobre uma questão com relevância jurídica, pois está em causa a anulação de um acto administrativo em matéria tributária por efeito de aplicação de um princípio constitucional ou princípios da actividade administrativa, que regem a actividade discricionária da Administração e em causa nos autos está uma matéria estritamente vinculada (aplicação de uma tarifa por parte de uma empresa municipal – cf. conclusões 1.º e 2.º das suas alegações de recurso.

Não nos convence a alegação da recorrente quanto à necessidade da revista.

O entendimento segundo o qual é o do exercício de “poderes discricionários” o campo primacial de aplicação directa dos princípios constitucionais em detrimento da legalidade estrita não é posto em causa, antes reafirmado, pelo acórdão do TCA recorrido, que entendeu contudo - num juízo que não reputamos de manifestamente errado ou juridicamente insustentável – ser necessário, no caso concreto, sob pena de “flagrante injustiça”, apelar aos princípios fundamentais jusadministrativos para obviar a que se sancione decisão contrária ao Direito.

Esta linha de pensamento e de fundamentação não é, aliás, estranha à jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, como bem demonstra a recorrida nas suas contra-alegações.

Não se vê, pois, como justificada a admissão da revista, porquanto a questão não oferece complexidade jurídica superior à comum nem a solução sufragada se revela manifestamente errada ou juridicamente insustentável.

Concluindo:

Não se justifica a admissão da revista se, contrariamente ao alegado, a questão não oferece complexidade jurídica superior à comum nem a solução sufragada se revela manifestamente errada ou juridicamente insustentável.

Termos em que, face ao exposto, a revista não será admitida.


- Decisão -


6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista.

Custas do incidente pela recorrente.

Lisboa, 8 de Novembro de 2023. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.