Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0200/13.3BEPDL
Data do Acordão:03/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
ADMISSÃO
Sumário:Justifica-se a admissão de revista, no sentido de dissipar dúvidas e assegurar a uniformidade da jurisprudência, de acórdão do TCA que decidiu a questão da tributação em IRS das “bolsas de formação pagas a médicos internos em regime de vagas preferenciais em sentido ao menos aparentemente discordante com o entendimento mais recentemente adoptado pela jurisprudência deste STA.
Nº Convencional:JSTA000P27295
Nº do Documento:SA2202103100200/13
Data de Entrada:01/18/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -

1 – A Autoridade Tributária e Aduaneira - AT, vem, ao abrigo do disposto no artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) interpor para este Supremo Tribunal recurso excecional de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28 de fevereiro de 2019, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do TAF de Ponta Delgada que julgara procedente a impugnação judicial deduzida por A………… contra liquidação de IRS relativa ao ano de 2009, respeitante à tributação de bolsa de formação paga a médico interno em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto.

Termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

a) Entende, a FP, que o acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e subsunção dos factos e do direito - em clara violação de lei substantiva -, o que afeta e vicia a decisão proferida, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto ou de um equívoco;

b) In casu, o presente recurso é absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito, porquanto, em face das características do caso concreto, existe a possibilidade de este ser visto como um caso-tipo, não só porque contém uma questão bem caracterizada e passível de se repetir no futuro, como a decisão da questão suscita fundadas dúvidas, o que gera incerteza e instabilidade na resolução dos litígios;

c) Desta forma, mostra-se fundamental a intervenção do STA, na qualidade de órgão de regulação do sistema vocacionado para a correção de erros na apreciação do direito por parte das instâncias inferiores, como condição para dissipar dúvidas;

d) Quanto ao mérito do presente recurso entende, a FP, que estamos perante uma “situação limite” que, pela sua gravidade e complexidade justifica a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa para uma melhor aplicação do direito,

vejamos porquê:

e) A questão que aqui se coloca, é a de saber se a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, deve, ou não, ser tributada em sede de IRS;

f) Para o acórdão recorrido, “Em resumo:

A bolsa de formação paga aos médicos internos em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, não tem natureza remuneratória mas meramente compensatória, não podendo ser tributada em sede de IRS.”;

g) Já para a FP, tendo em conta que a bolsa de formação paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial constitui um meio para obviar às carências de médicos em determinados serviços ou estabelecimentos, sem nexo direto com a formação médica e sem se encontrar exclusivamente relacionado com ela, deve ser tributada em sede de IRS como rendimento do trabalho;

h) Até porque, o seu propósito (da bolsa) confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-o – através da “bolsa” - pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico;

i) Todavia, o TCA Sul no acórdão recorrido pronunciou-se no sentido de negar provimento ao recurso, porquanto, entende que a FP:

«“(…), faz tabua rasa das desvantagens que a atribuição da mesma provoca na esfera jurídica do interessado e interpreta abusivamente, salvo o devido respeito, o acórdão do STA que cita, visto que neste não se tomou posição expressa sobre a questão, que nele é posta a título dubitativo. Tanto que a decisão é a de ordenar a baixa dos autos à primeira instância para ampliação da matéria de facto”.»;

j) Ora, como bem salienta o acórdão do STA de 31/01/2018 (proferido no processo n.º 01331/16), apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial não deve ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com ações de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS;

k) Até porque, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de medicina em regime de internato, compensando-o pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico;

l) Como bem salientou o STA no supra referido acórdão n.º 01331/16, a única diferença entre os médicos internos em regime de vaga normal e os médicos internos em regime de vaga preferencial, é que os médicos em regime de vaga preferencial recebem um acréscimo remuneratório a que se convencionou chamar de “bolsa” e, como contrapartida, ficam obrigados a permanecer no serviço por determinado lapso de tempo;

m) Ou seja, quer os médicos internos em regime de vaga normal quer os médicos internos em regime de vaga preferencial, celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada, bem como, recebem a mesma formação especializada de cariz teórico e prático;

n) No entanto, para o TCA Sul, os médicos internos em regime de vaga preferencial não devem ser tributados pela totalidade dos rendimentos;

o) In casu, o TCA Sul tratou a questão aqui em crise de forma pouco consistente, resultante de ter considerado, nomeadamente, que o incumprimento do dever de permanência leva ao afastamento da natureza remuneratória da “bolsa”; mas

p) também, por ter considerado que os médicos internos em regime de vaga normal devem ter um tratamento fiscal diferente do dos médicos internos em regime de vaga preferencial, apesar de ambos celebrarem contratos iguais e receberem a mesma formação;

q) Em suma e salvo o devido respeito, poderemos afirmar que o acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e subsunção dos factos e do direito, em clara violação de lei substantiva, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto ou de um equívoco, razão pela qual, no nosso entendimento, não deve manter-se, sendo, o presente recurso, absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito;

r) In casu, estamos perante uma “situação limite” que, pela sua gravidade e complexidade justifica a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa para uma melhor aplicação do direito.

Por todo o exposto, e o mais que o colendo tribunal suprirá, deve o presente recurso de revista ser admitido e, analisado o mérito ser dado provimento ao mesmo, revogando-se, em conformidade, o acórdão recorrido, com todas as legais consequências, assim se cumprindo, por VOSSAS EXCELÊNCIAS, com o DIREITO e a JUSTIÇA!

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 - O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal emitiu douto parecer desde logo no sentido da admissão da revista com a seguinte fundamentação específica:

Em face dos termos das alegações de recurso, afigura-se-nos que se mostram reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso de revista.

Com efeito, resulta manifesto que a questão é passível de gerar controvérsia noutros casos futuros e a posição adotada na jurisprudência do TCA Sul é contrária à assumida no citado acórdão do STA de 31/01/2018, proferido no processo nº 01331/16, e noutros arestos que lhe seguiram - Acórdãos de 2019/05/08, Proc. nº 02553/14.7BELRS, de 2019/05/22, Proc. nº 01744/13.2BELRS e Proc. nº 015/15.4BEPDL, de 2019/05/29, Proc. nº 017/15.0BEPDL, de 2019/09/25, Proc. nº 0401/15.0BEAVR e de 2019/11/21, Proc. nº 016/15.2BEPDL. Adotando esta jurisprudência do STA pronunciou-se o TCA Sul nos acórdãos de 2020/05/07, Proc. nº 521/15.0BELRS, e de 2020/12/03, Proc. 2659/14.2BELR -, cujos termos poderão não ter sido corretamente apreendidos - o sumário do acórdão de 29/05/2019, proferido no proc. 017/15.0BEPDL, revela um pouco essa ambiguidade dos termos utilizados.

Assim sendo, afigura-se-nos que há fundamento para a intervenção do STA, como órgão de cúpula, ao abrigo do disposto no artigo 150º do CPTA. Ou, caso assim não se entenda, atentas as diversas pronúncias desse tribunal no sentido adotado no acórdão de 31/01/2018, afigura-se-nos que o recurso sempre poderá ser convolado para o recurso de oposição de acórdãos previsto, à data da sua interposição, no artigo 284º do CPPT (na redação então em vigor), entendendo-se a referência ao citado acórdão do STA como acórdão fundamento.

4 – Dá-se por reproduzido, para todos os efeitos legais – o probatório fixado no acórdão recorrido (fls. 7 e 8 da respectiva numeração autónoma)

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir da admissibilidade do recurso.


- Fundamentação -

5 – Apreciando.

5.1 Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi ainda interposto e admitido como recurso de revista excepcional ao abrigo do artigo 150.º do CPTA, sendo este o regime aplicável atento a data em que foi proferido o acórdão do TCA sindicado.

Dispõe o artigo 150.º do CPTA, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue mais adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da secção de contencioso administrativo.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito preceito legal a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.

O acórdão do TCA Sul em relação ao qual a recorrente AT solicita recurso excepcional de revista negou provimento ao recurso interposto pela AT da sentença do TAF de Ponta Delgada que julgara procedente a impugnação deduzida pela ao recorrida contra liquidação de IRS relativa ao ano ao ano de 2009, respeitante à tributação de bolsa de formação paga a médico interno em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto.

A recorrente alega que a admissão do recurso de revista é absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito, porquanto, em face das características do caso concreto, existe a possibilidade de este ser visto como um caso-tipo, não só porque contem uma questão bem caracterizada e passível de se repetir no futuro, como a decisão da questão suscita fundadas dúvidas, o que gera incerteza e instabilidade na resolução dos litígios.

A questão da tributação em IRS das “bolsas de formação pagas a médicos internos em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto” tem sido decidida por este STA, desde janeiro de 2018 (Acórdão de 31 de janeiro, proferido no processo n.º 01331/16), em sentido diverso do que até então vinha sendo decidido pelo TCA-Sul, ou seja, no sentido de que tais prestações não estavam excluídas de tributação em IRS, ao menos ex vi do disposto na alínea d) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS – cfr. para além dos Acórdãos citados pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto deste STA no seu parecer, o recentíssimo Acórdão deste STA de 17 de fevereiro, proc. n.º 577/13.0BEAVR.

Ora, o acórdão do TCA sob escrutínio no presente recurso segue ainda a tradicional linha decisória do TCA-Sul sobre a matéria.

Como bem diz o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer há fundamento para a intervenção do STA, como órgão de cúpula, no sentido de dissipar dúvidas e assegurar um entendimento uniforme do Direito.

Não se justifica, porém, a convolação do presente recurso para “recurso por oposição de acórdãos”, pois esse recurso foi igualmente interposto pela AT e deverá prosseguir, terminada a revista, caso o acórdão sindicado se mantenha na ordem jurídica.

A revista será, pois, admitida.


- Decisão -


6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em admitir o presente recurso de revista.


Custas a final.

Lisboa, 10 de Março de 2021. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.