Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02035/24.9BEPRT
Data do Acordão:04/30/2025
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio emergente de uma relação de consumo relativa à prestação de um serviço público essencial, cuja apreciação se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos da alínea e) do nº 4 do art 4.º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P33682
Nº do Documento:SAC2025043002035
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:A..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA e BB, com os sinais dos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Gondomar, acção declarativa de condenação contra A..., S.A., formulando os seguintes pedidos:
a) Ser a Ré condenada a pagar aos AA. a quantia de €812,25, correspondentes aos custos suportados com deslocações de técnicos, vistorias e remessas postais, e substituição dos equipamentos danificados no sinistro dos autos;
b) Ser a Ré condenada ao pagamento aos AA. do montante de € 2.000,00 a título de danos não patrimoniais e pelo dano da privação do uso e fruição dos equipamentos danificados e identificados nos autos, bem como dos incómodos e transtornos causados com o sinistro;
d) Ser a Ré condenada ao pagamento dos juros de mora que se vencerem sobre as quantias peticionada nas alíneas anteriores, à taxa de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento;
e) Ser a Ré condenada nas custas e demais encargos da presente ação.”.
Em síntese, os Autores alegam que, desde 23.12.2014, contrataram com a B..., S.A. a comercialização, instalação e fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão no imóvel onde residem. A Ré A... é a sociedade que exerce a actividade de operador de rede de distribuição, no território continental de Portugal, sendo titular da concessão para a exploração da Rede Nacional de Distribuição de Energia Eléctrica em Média e Alta Tensão e da concessão municipal de distribuição de energia eléctrica em Baixa Tensão no concelho de Gondomar.
Alegam, ainda, que no dia 17.10.2021 constataram que alguns equipamentos electrodomésticos de cozinha deixaram de funcionar, tendo apurado que tal se deveu à ocorrência de variação inusitada e débito excessivo de corrente eléctrica, que determinou a queima de dois discos da placa de vitrocerâmica e a danificação do módulo electrónico da máquina de lavar a loiça.
Consideram, portanto, que a Ré tem obrigação de reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais causados aos Autores, nos termos do artigo 493º, nº 2 e, bem assim, do estatuído nos artigos 483º, 496º e 562º e seguintes do Código Civil (CC).
A Ré A... apresentou contestação sustentando a improcedência da acção.
As partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a excepção de incompetência material dos tribunais judiciais, suscitada oficiosamente, mas nada disseram.
Por sentença proferida em 21.06.2024, o Juízo Local Cível de Gondomar, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência material e absolveu a Ré da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto) foi aí proferida sentença em 03.10.2024 a julgar materialmente incompetente o Tribunal.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Gondomar.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Gondomar, e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Entendeu o Juízo Local Cível de Gondomar que (…) as pessoas coletivas de direito privado passam a estar sujeitas ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, sempre que esteja em causa responsabilidade civil extracontratual por ações ou omissões reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, sendo que este regime, que integra o direito substantivo e não o adjetivo, tem como consequência que a responsabilidade aquiliana (que inclui a responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco) desses entes privados, apesar de o serem, passa a ser regulada como se de entes públicos se tratasse.
Assim, a jurisdição administrativa passou a ser competente para dirimir esse tipo de conflitos, tal como tem vindo a entender a jurisprudência uniforme ou, pelo menos, largamente maioritária.
(…) Está em causa a efetivação de responsabilidade civil extracontratual por danos causados por perturbações na rede de fornecimento de energia elétrica.
(…) Não parece haver dúvida de que a Ré é demandada na qualidade de concessionária da Rede Nacional de Distribuição de Energia Elétrica, sujeita a regulamentação específica, pois que, como reconhecem, não celebraram com a Ré qualquer contrato.”.
Por sua vez, o TAF do Porto considerou que “Desde já se adianta que, independentemente da questão de saber se a relação jurídica entre Autores e a Ré se poderia ou não localizar no plano do direito administrativo, o certo é que não deve haver dúvidas de que esta é efectivamente uma relação jurídica de consumo que diz respeito à prestação de serviços públicos essenciais.
Isto, porque está em causa o “serviço de fornecimento de energia elétrica” (artigo 1.º, n.º 2, alínea b) da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho) prestado a um utente (os Autores) para efeitos da referida Lei, ou seja, “a pessoa (…) colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo” (artigo 1.º, n.º 3 da Lei n.º 23/96, de 26/07), por um prestador privado, a B... (artigo 1.º, n.º 4 da Lei n.º 23/96, de 26/07).
Ora, a A..., por concessão do Estado, é o operador das redes de distribuição em Alta e Média Tensão, e, por concessões das autarquias, em Baixa Tensão, cabendo-lhe aplicar, gerir e executar os processos de acesso às redes, nomeadamente a ligação, manutenção ou intervenção, e desligação.
E, embora em causa não esteja directamente um contrato de fornecimento de energia celebrado entre as partes, já que esse contrato foi celebrado entre Autores e B..., certo é que nos encontramos perante uma relação comercial prevista no Regulamento das Relações Comerciais aprovado pelo Regulamento n.º 1129/2020, de 30 de Dezembro no âmbito da qual a Ré, enquanto operadora de rede, assume a responsabilidade, além do mais, em matéria de “ligações às redes, avarias, emergências” [artigo 7.º, n.º 4; sublinhado nosso].”.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP, 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF).
Por seu turno, a competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste preceito importa reter o disposto na alínea e) do n.º 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios «emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva» (redacção introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12.09).
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019, consta o seguinte:
«A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.» (disponível em DetalheIniciativa (parlamento.pt).
A Lei nº 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente. De acordo com o artigo 1º, nº 2, alínea b) da referida Lei, de entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de energia eléctrica.
Nos termos do nº 4 daquele art. 1º, “Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.
Na presente acção, os Autores alegam que, no âmbito do contrato de fornecimento de energia eléctrica que celebraram com B..., S.A., a Ré A..., na qualidade de operadora da rede de distribuição, é a responsável pelos picos de corrente que alegadamente causaram danos patrimoniais e não patrimoniais, que pretendem ver ressarcidos.
A organização e funcionamento do sistema eléctrico nacional encontra-se actualmente regulada pelo DL nº 15/2022, de 14 de Janeiro, que procedeu à revogação do DL nº 29/2006, de 15 de Fevereiro, vigente à data dos factos alegados pelos Autores.
No preâmbulo do DL nº 29/2006 lia-se: “A actividade de transporte de electricidade é exercida mediante a exploração da rede nacional de transporte, a que corresponde uma única concessão exercida em exclusivo e em regime de serviço público. Esta actividade é separada jurídica e patrimonialmente das demais actividades desenvolvidas no âmbito do sistema eléctrico nacional, assegurando-se a independência e a transparência do exercício da actividade e do seu relacionamento com as demais. (…)
A distribuição de electricidade processa-se através da exploração da rede nacional de distribuição, que corresponde à rede em média e alta tensões, e da exploração das redes de distribuição em baixa tensão. A rede nacional de distribuição é explorada mediante uma única concessão do Estado, exercida em exclusivo e em regime de serviço público (…). Esta actividade é juridicamente separada das actividades do transporte e das demais actividades não relacionadas com a distribuição. (…)
A actividade de comercialização de electricidade é livre, ficando, contudo, sujeita a atribuição de licença pela entidade administrativa competente, definindo-se, claramente, o elenco dos direitos e dos deveres na perspectiva de um exercício transparente da actividade. No exercício da sua actividade, os comercializadores podem livremente comprar e vender electricidade. Para o efeito, têm o direito de acesso às redes de transporte e de distribuição de electricidade, mediante o pagamento de tarifas reguladas. Os consumidores, destinatários dos serviços de electricidade, podem, nas condições do mercado, escolher livremente o seu comercializador, não sendo a mudança onerada do ponto de vista contratual. Para o efeito, os consumidores são os titulares do direito de acesso às redes”.
E dispunha no seu art. 4º: (…) “3 - O exercício das actividades previstas no presente decreto-lei processa-se com observância dos princípios da concorrência, sem prejuízo do cumprimento das obrigações de serviço público.
4 - O exercício das actividades de produção e de comercialização de electricidade processa-se em regime de livre concorrência.
5 - O exercício das actividades de transporte e de distribuição de electricidade processa-se em regime de concessão de serviço público, em exclusivo, nos termos definidos em diploma específico.
E, nos termos do respectivo art. 5º, sob a epígrafe “obrigações de serviço público”:
“1 - Sem prejuízo do exercício das atividades em regime livre e concorrencial, são estabelecidas obrigações de serviço público.
2 - As obrigações de serviço público são da responsabilidade dos intervenientes no SEN, nos termos previstos no presente decreto-lei e na legislação complementar.
3 - São obrigações de serviço público, nomeadamente:
a) A segurança, a regularidade e a qualidade do abastecimento;
b) A garantia de universalidade de prestação do serviço;
c) A garantia da ligação de todos os clientes às redes;
d) A proteção dos consumidores de eletricidade, designadamente quanto a tarifas e preços; (…)”.
Estas obrigações eram reproduzidas no art. 5º do Regulamento nº 1129/2020, de 30 de Dezembro - Aprova o Regulamento das Relações Comerciais dos Sectores Eléctrico e do Gás - (entretanto revogado pelo Regulamento nº 827/2023, de 28 de Julho).
Dispunha o seu artigo 7.º:
1 - A relação comercial estabelece-se entre o comercializador de energia elétrica ou de gás e o cliente com quem foi celebrado o contrato de fornecimento.
2 - O comercializador é responsável pelo tratamento de quaisquer questões relacionadas com o fornecimento de energia elétrica ou de gás.
3 - Excetua-se do disposto no número anterior o tratamento de questões que são da responsabilidade do operador da rede.
4 - São da responsabilidade do operador de rede, designadamente, as matérias de ligações às redes, avarias, emergências, leituras, verificação ou substituição dos equipamentos de medição e reposição de fornecimento quando a interrupção não tiver sido solicitada pelo comercializador que assegura o fornecimento à instalação.
5 - O comercializador deve informar os seus clientes das matérias a tratar diretamente junto do operador da rede competente, indicando os meios de contacto adequados para o efeito.”.
Por sua vez, o art. 343º do mesmo diploma prescrevia:
“1 - As atividades de distribuição de energia elétrica ou de gás devem assegurar a operação das redes de distribuição de energia elétrica ou de gás em condições técnicas e económicas adequadas.”.
A Ré A..., por concessão do Estado, é o operador das redes de distribuição em Alta e Média Tensão, e, por concessões das autarquias, em Baixa Tensão, cabendo-lhe aplicar, gerir e executar os processos de acesso às redes, nomeadamente a ligação, manutenção ou intervenção, e desligação (in https://www.....pt/pt-pt/clientes-e- parceiros/comercializadores/gestao-de-processos).
Ora, por força da separação obrigatória das actividades de distribuição e comercialização, o contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado entre o comercializador e o utente implica não só a prestação de serviço do comercializador, mas também a do operador de redes de distribuição, nomeadamente, nas ligações às redes, avarias, emergências, leituras, verificação ou substituição dos equipamentos de medição.
Considerando a Lei nº 23/96 que o serviço de fornecimento de energia eléctrica é um serviço público essencial, esse fornecimento envolve necessariamente tanto a distribuição como a comercialização, pelo que o operador da rede de distribuição, para este efeito, é também um prestador de serviços, ainda que mediato.
Tal como os Autores configuram a acção, alegando que no âmbito da prestação do serviço de fornecimento de electricidade, a Ré, na qualidade de operadora de rede, é responsável pelo pico de corrente que alegadamente lhes provocou os prejuízos que pretendem ver ressarcidos, pelo que, o litígio tem por base uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial - o serviço de fornecimento de energia eléctrica.
Assim, estando em causa um litígio emergente de uma relação de consumo relativa à prestação de um serviço público essencial, a apreciação da presente acção encontra-se excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos da alínea e) do nº 4 do art 4.º do ETAF.
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Porto, Juízo Local Cível de Gondomar, Juiz 3.
Sem custas.

Lisboa, 30 de Abril de 2025. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.