Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 0442/17.2BEPNF-CP |
| Data do Acordão: | 06/18/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | TERESA DE SOUSA |
| Descritores: | CONSULTA DE JURISDIÇÃO DOMÍNIO PÚBLICO PASSAGEM DE NÍVEL |
| Sumário: | É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer de litígio respeitante à possibilidade de atravessamento, por passagem de nível particular, de uma linha férrea, de natureza dominial e gerida por entidade munida de poderes públicos. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33887 |
| Nº do Documento: | SAC202506180442 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | A..., SA (A..., SA) |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Consulta Prejudicial nº 442/17.2BEPNF Acordam no Tribunal dos Conflitos Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel (doravante TAF de Penafiel) de 06.03.2025, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15º, nº 1, da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que a questão da jurisdição competente para conhecer da causa suscita fundadas dúvidas. Na presente acção intentada por AA e esposa, BB, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, contra A..., A..., foi peticionado: “1) Seja declarado, que os AA são donos e legítimos possuidores do imóvel sito na freguesia ..., descrito na CRPredial ... sob o nº. ...8/...19 2) Que a R seja condenada a reconhecer aos AA o direito à passagem de nível particular ao Km 31.852 3) Que a R. seja condenada a fazer as obras no sentido de repor a passagem de nível particular ao Km 31.852. 4) Que a R seja condenada a pagar aos AA o montante a título de prejuízos causada na exploração a quinta, por impedimento no acesso à parcela encravada, a quantia de € 10.726,38 anuais desde o ano de 2009 5) Que a R seja condenada pagar aos AA o prejuízo anual futuro, enquanto se mantiver o impedimento dessa passagem de nível, a liquidar em execução de sentença”. Os Autores alegam, em síntese, que são donos e legítimos possuidores de um prédio misto, que identificam, que é atravessado na zona sudoeste pela linha férrea, cuja gestão cabe à Ré. Esse atravessamento deixou encravada uma parcela de terreno com a área de 6,30ha, que fica limitada pela linha férrea e pelo rio Ave, situação que perdura há mais de 100 anos. Desde então os Autores, e ante possuidores, usaram uma passagem de nível particular para acesso à parte encravada do seu prédio, o que sempre fizeram de forma pública, sem oposição de ninguém, e sem o pagamento de qualquer taxa ou emolumento. Sustentam ainda os Autores que, no ano de 2000, acordaram na expropriação amigável de duas parcelas de terreno para alargamento da via férrea, mas na condição de manterem a passagem de nível particular nas condições que até aí usavam, tendo, nessa data, a Ré entregue aos Autores as chaves dos respectivos portões. Porém, em 2008, sem qualquer justificação ou aviso prévio, a Ré obstruiu essa passagem de nível particular mediante a colocação de um muro em betão e de uma rede de vedação, pelo que, e desde então, estão impedidos de aceder ao seu terreno, bem como de ter acesso a água de rega para a restante quinta a norte da linha férrea, uma vez que a casa do motor se encontra situada nessa parte do terreno encravado, o que lhes está a provocar prejuízos na sua actividade agrícola, que pretendem ver ressarcidos. Em sede de contestação, a Ré defendeu-se por excepção, arguindo a incompetência material do Tribunal, e por impugnação. Requereu ainda a intervenção principal provocada de B..., SA. Em 21.04.2017, no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim foi proferida sentença em que se decidiu declarar a incompetência dos Tribunais Comuns para conhecer da acção e, em consequência, absolver a Ré da instância. A requerimento dos Autores foram os autos remetidos ao TAF de Penafiel. No TAF de Penafiel foi admitida a intervenção principal provocada da B... SA, requerida pela Ré na contestação. Esta empresa apresentou contestação e os Autores replicaram. Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, nos termos do nº 1 do art. 15º da Lei 91/2019, face ao pedido de consulta prejudicial, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material à jurisdição administrativa e fiscal, mais precisamente ao TAF de Penafiel. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF]. A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal é questão que se resolve face ao modo como o autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo mas, sendo certo que o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos, não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência (cfr., por todos, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 01.10.2015, Proc. 08/14). Os Autores invocam que são donos e legítimos proprietários do prédio rústico atravessado pela linha de caminho de ferro, cuja gestão cabe à Ré. Alegam que essa travessia deixa encravada uma parcela do prédio entre a linha férrea e o rio. Em consequência, pedem a condenação da Ré a reconhecer o direito à passagem de nível particular, que identificam, e a fazer obras no sentido de repor a dita passagem de nível, de modo a permitir o seu acesso àquela parcela e ao abastecimento de água para efeitos de rega da quinta. Pedem ainda indemnizações pelos prejuízos já causados e os que se vierem a causar enquanto se mantiver o impedimento dessa passagem de nível. A invocação da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em causa, que nem se mostra controvertida no essencial, serve para os Autores fundamentarem a pretensão principal que é o pedido de condenação da Ré no reconhecimento do direito à passagem de nível particular. O pedido de declaração do direito de propriedade dos Autores sobre o imóvel é, no caso concreto, um pedido instrumental e pressuposto do pedido principal, o reconhecimento do direito à passagem de nível. Ora, segundo o art. 84º, nº 1, alínea e) da CRP pertencem ao domínio público “As linhas férreas nacionais”. Os bens do domínio público estão sujeitos a um regime de direito público e estão subtraídos ao comércio jurídico privado. Nos termos do DL nº 91/2015, de 29 de Maio, a Ré A..., S.A. tem a natureza de empresa pública sob a forma de sociedade anónima, rege-se “pelo presente decreto-lei, pelos seus estatutos, pelo regime jurídico do sector público empresarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, pelo Código das Sociedades Comerciais, pelos seus regulamentos internos e pelas normas especiais que lhe sejam aplicáveis” (n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º) e tem como objecto “(…) a conceção, projeto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação, alargamento e modernização das redes rodoviária e ferroviária nacionais, incluindo-se nesta última o comando e o controlo da circulação”, assumindo “a posição de gestor de infraestruturas, nos termos do contrato de concessão geral da rede rodoviária nacional celebrado com o Estado e dos contratos de concessão que com o mesmo venham a ser celebrados, bem como a gestão das demais infraestruturas sob sua administração.” (nºs 1 e 2 do art. 6º). Do art. 12º do mesmo DL nº 91/2015, cuja epígrafe é “poderes de autoridade”, resulta que “1- Compete à A..., S.A., relativamente às infraestruturas rodoviárias e ferroviárias nacionais sob sua administração (…) zelar pela manutenção permanente das condições de infraestruturação e conservação e pela segurança da circulação ferroviária e rodoviária”; 2 - Para o desenvolvimento da sua atividade principal, a A..., S.A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis, designadamente no que respeita: (…) b) Ao licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável, da exploração, da utilização, da ocupação ou do exercício de quaisquer atividades nos terrenos, edificações e outras infraestruturas do domínio público ferroviário e rodoviário, integrados ou afetos às respetivas redes nacionais”. As passagens de nível, públicas ou particulares, encontram-se reguladas pelo DL nº 568/99, de 23 de Dezembro, que, relativamente às passagens de nível particulares prescreve, no n.º 1 do art. 24º, poderem resultar “a) De licença de atravessamento passada pela entidade gestora da infra-estrutura ferroviária; b) De compromisso assumido por ocasião da construção da via férrea, cujo direito de servidão tenha sido comprovado”. Na presente acção está em causa a possibilidade do atravessamento, por particulares para acesso a um prédio dos mesmos, de uma linha férrea que, dada a sua natureza dominial, não pode ser objecto de direitos privados. Por outro lado, e como se viu, as passagens de nível são disciplinadas por regulamento administrativo e o seu licenciamento, supressão ou reabertura competem à entidade gestora da infra-estrutura, no âmbito dos seus poderes de autoridade. Como se disse, os tribunais administrativos e fiscais são competentes para apreciar os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais que, como referem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5ª ed., pág. 26 deve ser “entendida como uma relação regulada por normas de direito administrativo ou fiscal, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada (…)”. Assim, podemos concluir que o litígio respeitante à possibilidade de atravessamento, por passagem de nível particular, de uma linha férrea, de natureza dominial e gerida por entidade munida de poderes públicos, emerge de uma relação jurídica administrativa, para cuja apreciação é competente a jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea o), do ETAF: “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”. Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 17º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe à Jurisdição administrativa e fiscal, no caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, a competência para conhecer da presente acção. Lisboa, 18 de Junho de 2025. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |