Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0240/25.0BEPRT
Data do Acordão:07/10/2025
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
PROCESSO CONTRA-ORDENACIONAL
MATÉRIA AMBIENTAL
Sumário:Compete aos Tribunais Judiciais conhecer de contra-ordenação que não respeita a violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, pelo que a impugnação deste ilícito de mera ordenação social está excluída da competência dos tribunais administrativos, cabendo a sua apreciação aos tribunais comuns.
Nº Convencional:JSTA000P34107
Nº do Documento:SAC202507100240
Recorrente:AA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº 240/25.0BEPRT

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, identificado nos autos, deduziu recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 59º do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, da decisão da Vereadora do pelouro do Ambiente da Câmara Municipal da Póvoa do Varzim que, no processo de contra-ordenação nº ...23, lhe aplicou uma coima no montante de €2.250,00, acrescida de custas no montante de €51,00, por violação do disposto nos artigos arts. 36.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 87º do Regulamento nº 594/2018, de 4 de Setembro e no artigo 69º, nº 9 do DL nº 194/2009, de 20 de Agosto, e punida pela alínea c) do nº 2 do artigo 72º deste último diploma.
Remetidos os autos ao Ministério Público da Comarca do Porto, Procuradoria do Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim, este fez os autos presentes ao Tribunal, nos termos do artigo 62º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, mas suscitou a incompetência material do Tribunal para o julgamento.
Por decisão proferida em 5.12.2024 pelo Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto [proc. nº 2018/24....], foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação do recurso interposto pelo arguido.
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAF do Porto.
Por decisão de 06.02.2025, o TAF do Porto também se julgou incompetente em razão da matéria para conhecer do recurso de impugnação.
Suscitada a resolução do conflito de jurisdição pelo TAF do Porto, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material à jurisdição comum, concretamente ao Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Porto, Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim, e o TAF do Porto.
O Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim considerou-se materialmente incompetente por entender que a contra-ordenação em causa nos autos integra matéria de direito do urbanismo, pelo que a apreciação da sua impugnação judicial competiria aos tribunais administrativos, de acordo com o disposto na alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Por sua vez o TAF do Porto, fundamentando-se na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, considerou que o ilícito em causa não está incluído no âmbito da alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF, por entender que: “(…) estando em causa a ligação aos sistemas de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais, a infracção respeita aos bens jurídicos ambiente e saúde pública, colocando-se, por conseguinte, fora do âmbito estabelecido por aquela norma. Na realidade, na hipótese trazida a juízo, não estamos perante a violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo – o que efectivamente nos remeteria para o âmbito definido por aquela alínea l); ao invés, trata-se de normas a que subjazem preocupações associadas à prevenção da poluição e à saúde e bem-estar das populações”.
Vejamos.
Dispõe o artigo 4º, nº 1, alínea l) do ETAF, na redacção introduzida pelo DL nº 114 /2019, de 12 de Setembro, que:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo (…);
Nos termos deste normativo o legislador previu, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
No caso dos autos está em causa a aplicação de uma coima pela prática de uma contra-ordenação por violação do disposto nos arts. 36º, nº 1, alíneas a) e b) e 87º do Regulamento nº 594/2018, de 4 de Setembro e no art. 69º, nº 9 do DL nº 194/2009, de 20 de Agosto, e punida pela alínea c) do nº 2 do art. 72º deste último diploma.
O Regulamento nº 594/2018, publicado no DR, II série de 4 de Agosto de 2018, (Regulamento de Relações Comerciais dos Serviços de Águas e Resíduos) determina no art. 36º, nº 1, alíneas a) e b): “1 - Constituem deveres dos utilizadores dos serviços de águas, nos termos da legislação aplicável e das boas práticas do setor, designadamente: a) Não fazer uso indevido ou danificar qualquer componente dos sistemas públicos de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, abstendo-se, nomeadamente de manobrar a válvula de seccionamento do ramal de ligação e as válvulas de seccionamento a montante e a jusante do contador; b) Não fazer uso indevido ou danificar as redes prediais e assegurar a sua conservação e manutenção;
E o art. 87º do mesmo Regulamento estabelece que:
“1 - O contador fica à guarda e fiscalização imediata do utilizador, o qual deve comunicar à entidade gestora todas as anomalias que verificar, nomeadamente, não fornecimento de água, fornecimento sem contagem, contagem deficiente, rotura e deficiências na selagem, entre outros. 2 - Com exceção dos danos resultantes da normal utilização, o utilizador responde por todos os danos, deterioração ou perda do contador, salvo se provocados por causa que não lhe seja imputável e desde que dê conhecimento imediato à entidade gestora. 3 - Para além da responsabilidade criminal que daí resultar, o utilizador responde ainda pelos prejuízos causados em consequência do emprego de qualquer meio capaz de interferir com o funcionamento ou marcação do contador, salvo se provar que aqueles prejuízos não lhe são imputáveis.”.
Por sua vez, o DL nº 194/2009, de 20 de Agosto, (Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, Saneamento e Resíduos Urbanos) dispõe no art. 69º, nº 9: “A execução de ligações aos sistemas públicos ou a alteração das existentes compete à entidade gestora, não podendo ser executada por terceiros sem a respectiva autorização.
Estatuindo o artigo 72º, nº 2 do mesmo diploma que: “Constitui contraordenação, punível com coima de (euro) 1.500,00 a (euro) 3.740,00, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 7.500,00 a (euro) 44.890,00, no caso de pessoas coletivas, a prática dos seguintes atos ou omissões por parte dos proprietários de edifícios abrangidos por sistemas públicos ou dos utilizadores dos serviços:
c) Execução de ligações aos sistemas públicos ou alteração das existentes sem a respectiva autorização da entidade gestora, nos termos previstos no n.º 9 do artigo 69.º;”
A propósito da opção legislativa tomada na reforma de 2015 ao ETAF, quanto ao alargamento do âmbito da jurisdição administrativa na área do ilícito de mera ordenação social, escreveu-se no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 27.09.2018, Proc. 023/18:
«Daí que a opção tenha passado, nos termos da alínea l) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF, pela atribuição da competência aos tribunais administrativos apenas das impugnações contenciosas de decisões que hajam aplicado coimas fundadas na violação de normas de Direito Administrativo em matéria de urbanismo [aqui entendido num âmbito que não abarca as regras relativas à ocupação, uso e transformação do solo (planos/instrumentos de gestão territorial), nem as regras relativas ao direito e política de solos, mas que inclui, mormente, as regras respeitantes à disciplina do direito administrativo da construção e à dos instrumentos de execução dos planos (v.g., reparcelamento, licenciamento e autorização de operações de loteamento urbano e de obras de urbanização e edificação)], ficando excluídas, salvo expressa disposição em contrário, todas as impugnações contenciosas relativas aos demais domínios/matérias tipificados em sede de ilícito de mera ordenação social e, assim, por este abrangidos.»
Em situação semelhante à dos autos, já se pronunciou o Tribunal dos Conflitos, nos acórdãos de 21.03.2019, Proc. 037/18, de 19.06.2024, Proc. 0172/23.6T8MLG.S1, de 11.09.2024, Procs. 0395/23.8BECBR-A.C1.S1 e 0437/23.7BECBR-B.C1.S1 e de 20.02.2025, Proc. 01463/24.4BEPRT (todos disponíveis em www.dgsi.pt), no sentido de que não está em causa uma contra-ordenação em matéria de urbanismo.
Afirmou-se no acórdão de 21.03.2019, Proc. 037/18: “O diploma onde estas normas se inserem (DL 194/2009) constitui mais uma emanação da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que se assume como a lei-quadro definidora da política de ambiente, cujos princípios são integrados por um elenco de técnicas básicas de protecção, pelo estabelecimento de uma planificação directamente dirigida à defesa do meio e do ambiente (necessariamente em coordenação com outras espécies de planificação, como a urbanística (Só nesta relação de complementaridade se pode compreender a referência feita no acórdão acima citado (cfr. relatório) de que a infracção se insere no “amplo âmbito do direito do urbanismo”, salientando-se, por outro lado, que aí se teve em consideração a anterior redacção da norma da alínea l) do n.º 1, do artigo 4º do ETAF.) e a económica) e por um conjunto de medidas informais de actuação. O objectivo último é a criação de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento social e cultural das comunidades, em sintonia com a fundamentalidade material e formal do direito ao ambiente e à qualidade de vida consagrado no artigo 66° da Constituição.
O preâmbulo do DL 194/2009 reafirma esse objectivo, na área específica a que se dirige: “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.”
A imposição da ligação dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais aos respectivos sistemas públicos surge assim, ao mesmo tempo, como medida inibidora de poluição de componentes ambientais naturais (água e solo) e como fonte de melhor saúde pública, segurança e bem-estar das populações.
Sendo uma norma de cariz eminentemente ambiental está excluída do âmbito de actuação da alínea l) do n.º 4 do ETAF, na medida em que esta atribui à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.”.
Assim, tal como foi entendido nos citados acórdãos, também a contra-ordenação em causa nos autos não respeita a violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, pelo que a impugnação deste ilícito de mera ordenação social está excluída da competência dos tribunais administrativos, cabendo a sua apreciação aos tribunais comuns.
Pelo exposto, acordam em julgar que a competência material para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca de Porto, Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim.
Sem custas.


Lisboa, 10 de Julho de 2025. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Nuno António Gonçalves.