Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 079534/24.2YIPRT.P1.S1 |
| Data do Acordão: | 05/08/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | NUNO GONÇALVES |
| Descritores: | RECURSO |
| Sumário: | I - A concessionária da gestão e exploração do serviço público de estacionamento nas vias municipais, mediante contrato de concessão de serviços públicos, nesse âmbito, atua em substituição da autarquia, munida dos poderes que a esta são legalmente atribuídos nesse domínio. II - As relações que estabelece com os utilizadores do estacionamento naquelas zonas consubstancia uma relação jurídica administrativa/tributária, subsumível ao disposto nas al.ªs e) e o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF. III - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada pela empresa a que o Município adjudicou a gestão e exploração do estacionamento de veículos em ZEDL, requerendo de particular o pagamento da contraprestação devida pela utilização do referido estacionamento. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33736 |
| Nº do Documento: | SAC20250508079534 |
| Recorrente: | DATA REDE, S.A. |
| Recorrido 1: | AA |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | *
Recurso ** O Tribunal dos Conflitos acorda: ---------------------- ** a. Relatório: Data Rede, S. A., em 19/06/2024 apresentou no Balcão Nacional de Injunções, injunção exigindo de: ----- - AA, com os sinais dos autos ---- o pagamento de € 8.302,79 (sendo € 7.822 de capital, € 327,79 de juros de mora vencidos e € 153 de taxa de justiça paga). Para demonstrar a obrigação pecuniária de onde emerge a quantia reclamada alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade de exploração e prestação de serviços de parqueamento automóvel colocou, em vários locais de Matosinhos, máquinas para pagamento de estacionamento, com a indicação dos preços e respetivas condições de utilização. Que o requerido, estacionou o seu veículo automóvel com a matrícula ..-TJ-.. nos vários parques que a requerente explora naquela cidade, mas não efetuou o pagamento devido pelo parqueamento. O Requerido deduziu oposição à injunção. Oposição que foi recusada por extemporânea. O Requerido, inconformado, reclamou para o tribunal, deduzido ainda a exceção da incompetência material do tribunal. Recebido o processo com distribuição ao Juízo Local Cível de Matosinhos -Juiz ..., o tribunal, por sentença de 16/10/2024, julgou verificada a exceção dilatória da sua incompetência material e absolveu o requerido da instância. A requerente não se conformando, interpôs recurso para a 2.ª instância. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 11/12/2024, atribuindo a competência à jurisdição administrativa, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida. A requerente, inconformada, interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos, pugnando pela atribuição da competência para conhecer da causa ao juízo local cível de Matosinhos. b. parecer do Ministério Público: O Digno Procurador-Geral Adjunto na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, entendendo que “enquanto concessionária da exploração do estacionamento tarifado a recorrente prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, motivo por que a relação em causa consubstancia uma relação jurídica administrativa/tributária, subsumível na al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF”, conclui que “nos termos do art.º 4º, nº 1, al. o), do ETAF, são os tribunais administrativos e fiscais os competentes para conhecer da ação objeto dos presentes autos” pronunciando-se pela improcedência do recurso. c. exame preliminar: O recurso é o próprio - art. 101.º n.º 2 do CPC. Está admitido. Este Tribunal dos Conflitos é o competente para julgar o recurso no que respeita à questionada incompetência jurisdicional material dos tribunais da jurisdição como para conhecer a causa – art. 3.º alínea c) da Lei n.º 91/2019 de 4 de setembro. Não existem questões processuais que devam conhecer-se previamente à apreciação do mérito e que pudessem impedir o prosseguimento do recurso para julgamento. d. objeto do recurso: Consiste em definir que jurisdição – comum ou administrativa – é compete, em razão da matéria, para conhecer da ação que a Requerente intentou contra o Requerido a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000,00. e. Fundamentação: i. da competência: 1. pressuposto: A competência do tribunal é um pressuposto indispensável para que o juiz possa conhecer do mérito de uma causa. Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”2. E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza jurídica dos sujeitos processuais. Sendo questão “a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”3. 2. fixação: Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 -, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”. Norma que o ETAF praticamente reproduz (“A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.) Acrescentando o n.º 2 que Existindo, no mesmo processo, decisões divergentes sobre questão de competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior.”. 3. repartição: Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Resulta ainda que, na ordem dos tribunais judiciais comuns, aos juízos cíveis compete conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”. Assim, não cabendo uma causa na competência legal e especificamente atribuída a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum. E que, na ordem dos tribunais administrativos e fiscais, a competência residual para “dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” recai nos tribunais administrativos. Os tribunais administrativos, “são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição»4. O âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alínea o) que lhes cabe, (no que para aqui poderia convocar-se) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:-------- o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. (…)”. ii. relações jurídicas administrativas: Relação jurídica administrativa é a “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…”) “É aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”5 Considerando-se como tal para efeitos de delimitação da competência da jurisdição as “relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) (…) em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”6. iii. natureza jurídica da Requerente: A Data Rede, S. A. é a empresa privada que tem por objeto a exploração de áreas delimitadas do espaço público, devidamente sinalizadas, para estacionamento por períodos limitados. A Câmara Municipal de Matosinhos, mediante contrato, concessionou à Requerente a “gestão, exploração, manutenção, em regime de concessão de serviço público, de lugares de estacionamento pago na via pública, nas cidades de ... e ...”. Estacionamento que é disciplinado pelo Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada (ZEDL) no concelho de Matosinhos, aprovado pela Câmara e Assembleia Municipal e publicado no Diário da República, em 8 de março de 2016, que, com alterações, continua em vigor. No artigo 4.º, n.º 1 estatui que “A ocupação de lugares de estacionamento fica sujeita ao pagamento de uma taxa dentro dos limites horários fixados, de acordo com o Anexo I”. Taxa horária devida que é a que consta do Regulamento de Taxas e Outras Receitas Municipais (RTORM). E no artigo 7.º n.º 1 que “Os utilizadores não isentos só poderão estacionar nas ZEDL se forem detentores de título de estacionamento horário válido.” f. apreciação: No caso, pelo pedido e pela arquitetura da causa de pedir verifica-se que a Requerente exige do Requerido o pagamento da contraprestação devida pela utilização de estacionamentos do seu veículo automóvel em ZEDL cuja exploração foi adjudicada pela Câmara Municipal de Matosinhos à requerente mediante contrato de concessão de serviços públicos celebrado entre ambas. Versando sobre situação idêntica, o STJ, no acórdão de 12/10/2010, tirado no processo n.º 1984/09.9TBPDL.L1.S17, sustentou que “No caso concreto sabemos que a A. é a concessionária de um serviço público, por via dos contratos de concessão que celebrou com o Município. Assim, o direito da A. a cobrar determinado montante pela utilização dos parques de estacionamento de que é concessionária, advém-lhe de um contrato claramente administrativo que versa sobre questão do interesse público que o Município de (…) deliberou concessionar-lhe. Essa importância corresponde a uma taxa fixada em Regulamento da Câmara Municipal e pode até ter carácter sancionatório, (…). No fundo, a A. exerce determinadas funções de carácter e interesse público que pertencem às funções do Município, mas que este deliberou concessionar à A. Consequentemente, a cobrança do crédito em causa nesta acção só é possível porque a recorrente está investida em poderes de autoridade, que se impõem aos particulares. De contrário, jamais a A. podia cobrar, de quem quer que fosse, uma taxa pela ocupação temporária de um espaço público. Portanto, embora a relação estabelecida entre a A. e os particulares que usam o espaço de estacionamento concessionado seja diferente do que existe entre a A. e o Município (…), o certo é que, (…) «os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados, susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de actos de gestão pública», por isso que, «na relação jurídica que estabelece com o recorrido, surge investida de prorrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas ». Ora o recorrido ao utilizar os parques de estacionamento sabe que está a utilizar um espaço público concessionado à A. e aceita as condições em que pode fazê-lo, ao menos tacitamente. Mas, como se disse, essas condições são as que constam do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada de (…), que é um Regulamento Municipal devidamente aprovado e publicitado, contendo, como é evidente, normas de direito público, que obrigam, quer a concessionária, quer os utentes dos parques de estacionamento concessionados. Portanto o R., ao contratar com a A. a utilização dos espaços de estacionamento que a esta foram concessionados sabe que esse contrato ou acordo tácito está submetido a um regime substantivo de direito público. (…). Daí que, para além do que acima se referiu quanto aos poderes exercidos pela A., na qualidade de concessionária de um serviço de natureza pública, o dito acordo ou contrato cabe perfeitamente no âmbito do disposto no Art. 4 f) do ETAF. Tanto basta para concluir, como as instâncias, que o litígio que opõe as partes nesta acção deve ser dirimido pelo Tribunal Administrativo, que é o competente em razão da matéria.”. No mesmo sentido, decidiu o STA no acórdão do de 25/10/2017, prolatado no processo n.º 0167/178, assim sumariado: ------ “O requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa acção cujo conhecimento é da competência dos TAFs.”. E, como bem nota o Digno Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “(…) a responsabilidade para definir o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos é de natureza pública, constituindo atribuição das Câmaras (cfr. art.º 33º nº 1, al. rr) da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro - Regime Jurídico das Autarquias Locais) podendo, em contrapartida, exigir dos utentes o pagamento de uma taxa previamente determinada. A Câmara Municipal, por via do contrato de concessão em causa, transferiu para a concessionária o direito a gerir a atividade pública referente a essa matéria no seu próprio nome – neste sentido, Pedro Gonçalves in “A concessão de Serviços Públicos (uma aplicação da técnica concessória)”, Almedina, 1999, pag.108. Por recurso aquele contrato, a Câmara, na prossecução de objetivos integrados no perímetro das suas atribuições no que tange ao estacionamento de veículos na via pública, passou a dispor da colaboração dos serviços da recorrente na perseguição daqueles interesses exclusivamente públicos ou coletivos postos por lei a seu cargo. Donde, enquanto concessionária da exploração do estacionamento tarifado a recorrente prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, motivo por que a relação em causa consubstancia uma relação jurídica administrativa/tributária, subsumível na al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 02.10, entrado em vigor em 01.12.2015, cfr. art.º 15.º daquele diploma, como tal, aplicável à ação em análise, proposta em 2024).”. Por fim, note-se que não está em causa a prestação de um serviço público essencial, na aceção da Lei n.º 23/96, de 26 de julho (cfr. art. 1.º), subsumível à previsão da al. e) do n.º 4 do ETAF, aditada pela Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro. Assim, pelo exposto e em concordância com a jurisprudência citada que se reitera, conclui-se que é bem decidiram as instâncias recorridas porque é aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscais - concretamente ao tribunal administrativo do Porto – que compete, em razão da matéria, conhecer da ação -por oposição a injunção - que a Requerente intentou para exigir do Requerido o cumprimento da obrigação de pagar o estacionamento em ZEDL do município de Matosinhos. g. Dispositivo: Assim, o Tribunal dos Conflitos acorda em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido, decidindo-se que materialmente competente para a ação intentada nos autos são, nos termos do no n.º 1 do artigo 1.º e al.ª o) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, os tribunais da jurisdição administrativa, concretamente o Tribunal administrativo do Porto. * Sem custas por não serem devidas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. * Lisboa, 8 de maio de 2025. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. * *
1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18. 2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pag. 91. 4. Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18 (onde se referência os ver Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 508/94, de 14.07.94, e nº 347/97, de 29.04.97) http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 5. Freitas do Amaral in “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439. 6. José Carlos Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa”, 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49. 8.https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/6c67162cbabbf751802581c9004391cc?OpenDocument&ExpandSection=1 |