Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0173/23.4T8VNC-A.S1
Data do Acordão:10/30/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:É aos tribunais da jurisdição administrativa que compete, em razão da matéria, conhecer ação em que o autor peticiona da declaração da ilicitude da cessação unilateral de contrato celebrado com aplicação do regime da contratação pública, atuando a ré, uma fundação pública de direito privado, como entidade adjudicante.
Nº Convencional:JSTA000P32854
Nº do Documento:SAC202410300173
Recorrente:AA
Recorrido 1:FUNDAÇÃO BIENAL DE ARTES DE CERVEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: O Tribunal dos Conflitos acorda: ----------------------

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a. Relatório:


AA intentou em 17/01/2023, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, ação administrativa comum contra a Fundação Bienal de Cerveira, FP, peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 2.700,00, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 62,91, vincendos, custas e o que mais for de lei.


Alega, em suma, que na sequência de procedimento de ajuste direto a ré, em 24 de janeiro de 2022, adjudicou ao autor a aquisição da prestação de serviços, concretamente a direção artística do seu plano de atividade para o ano de 2022 pelo preço de € 7 200,00 a pagar em prestações mensais sucessivas de € 900,00.


Porém, a ré em junho de 2022, resolveu ilicitamente o contrato celebrado entre as partes e não efetuou o pagamento do remanescente do preço.


Ação que ali originou o processo n.º 134/23.3...


O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga por decisão de 18/01/2023, entendendo que a causa tem por objeto a execução do contrato a que é aplicável legislação sobre contratação pública, declarou-se materialmente incompetente para conhecer da pretensão do autor e, observando o disposto no artigo 14.º. n.º 1 do CPTA, remeteu os autos ao Juízo de Contratos Públicos, do TAF do Porto.


O Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, entendendo que as partes contratantes têm natureza privada – um particular e uma pessoa coletiva de direito privado –, por despacho de 19/05/2023, julgou verificada a exceção dilatória de sua incompetência absoluta, declarou-se incompetente em razão da matéria, atribuindo a competência para conhecer da causa aos tribunais da jurisdição comum.


Recebido o processo no Juízo de competência genérica de ..., da comarca de ..., onde foi autuado com o n.º em referência, o Tribunal, por despacho de 25/04/2024, afirmando a competência da jurisdição administrativa, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da presente ação e absolveu a ré da instância.


Para tanto, sustentou, em suma, que em causa está a execução de um contrato celebrado por aplicação do regime da contratação pública, pelo que, nos termos da lei, compete à jurisdição administrativa conhecer dos litígios daí emergentes.


O autor, notificado, requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição assim surgido nos autos. Em face do que o Tribunal, por despacho de 27/06/2024, remeteu os autos, para esse efeito, ao Tribunal dos Conflitos.

b. parecer do Ministério Público:


No Tribunal dos Conflitos, o Digno Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, emitiu parecer pronunciando-se no sentido de a competência material para julgar a ação dever atribuir-se aos tribunais da jurisdição administrativa.

c. exame preliminar:


No caso, dois tribunais, - um da ordem administrativa, o outro da ordem judiciária comum – declaram-se incompetentes em razão da matéria para conhecer e julgar a ação que o autor intentou nestes autos.


O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição


Este Tribunal é o competente para a sua resolução.


Não há questões prévias que devam conhecer-se.

d. objeto do conflito:


Cumpre, assim, definir aqui qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer a ação que o autor intentada neste processo contra a ré.

e. fundamentação:

i. da competência:


Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição»


O âmbito da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alínea e) que lhes cabe, (no que para aqui releva) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

“e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

Estabelece o artigo 44.º-A n.º 1 al.ª c) do mesmo diploma legal que, tendo havido desdobramento em juízos de competência especializada, compete “c) ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os litígios respeitantes à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução dos contratos previstos no n.º 1 do artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado em anexo à Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, na sua redação atual, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual, contratual e extracontratual emergentes de atos ou omissões ocorridos no âmbito da celebração ou execução dos referidos contratos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;”


Nos termos do artigo 8.º n.º 2 do DL n.º 174/2019 de 13 de dezembro “O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto integra ainda um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Aveiro, Braga, Penafiel e Porto.


ii. pressuposto:


Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art. 5.º do ETAF).


Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].2.


E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza dos sujeitos processuais.


iii. apreciação:


No caso, o autor assenta o pedido de condenação da ré na resolução ilícita do contrato firmado entre as partes sem lhe pagar o remanescente do preço.


Para tanto alega, no que para aqui releva, que o contrato foi celebrado na sequência de procedimento de ajuste direto com vista à prestação de serviços e na subsequente adjudicação, pela ré, da aquisição daqueles serviços ao autor.


O Código dos Contratos Públicos (CCP) - aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro - estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.


Compulsado o projeto de decisão de adjudicação junto com a PI, verifica-se que a adjudicação era feita de acordo com o critério definido na al. b) do n.º 1 do art. 74.º do CCP.


Segundo o art. 42.º do CCP, o caderno de encargos é a peça do procedimento que contém as cláusulas a incluir no contrato a celebrar.


O caderno de encargos do ajuste direto em causa (junto com a Petição Inicial e ali dado por reproduzido) compreende as cláusulas a incluir no contrato a celebrar na sequência do procedimento pré-contratual que tem por objeto principal a aquisição de serviços denominada “Prestação de Serviços – Direção Artística no Âmbito do Plano de Atividades da Fundação Bienal de Arte de Cerveira para o Ano de 2022”, nos termos do Código dos Contratos Públicos (CCP) – cfr. cláusula 1.ª.


Estipulou-se, também, na cláusula 25.º do caderno de encargos que o contrato é regulado pelo Código dos Contratos Públicos.


Assim, perante os termos em que o autor configurou a petição inicial, verifica-se que aquele contrato foi celebrado nos termos de legislação sobre contratação pública.


Este Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 15/11/2023, tirado no processo n.º 04/233, versando sobre a interpretação do art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, expendeu: --


A alínea e) do nº 1, do art. 4º do ETAF, atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa para apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”.


Nos termos desta norma e para efeito do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos faz-se apelo não apenas ao critério do contrato administrativo, mas também a um outro critério que é o da submissão do contrato às regras da contratação pública.


Como explica Mário Aroso de Almeida, no que respeita ao critério do contrato administrativo, “Estão, desde logo, abrangidos pelo âmbito da jurisdição administrativa os contratos administrativos, isto é, os contratos que apresentem alguma das notas de administratividade enunciadas no nº 6 do artigo 1º do CCP” (actualmente, nº 1 do art. 280º do CCP). No que concerne ao critério do contrato submetido a regras de contratação pública, diz o mesmo autor que “Tal como antes, a alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submeta a regras de contratação pública. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP, como agora é explicitado no preceito). (…) O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.” (cfr. Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 165/169).”.


Por outro lado, a Fundação Bienal de Cerveira, FP é uma fundação pública de direito privado que se rege pelos seus estatutos e pela legislação aplicável, designadamente pelo Código do Procedimento Administrativo, no que respeita à atividade de gestão pública, e pelo regime da contratação pública (cfr. art. 2.º, n.º 1, als. b) e e) dos Estatutos da autora – Regulamento n.º 457/2013, de 29 de novembro)4.


Acresce que, o art. 2.º, n.º 1, al. g), do CCP define as Fundações Públicas como entidades adjudicantes. Assim se considerando contraentes públicos, para efeitos daquele Código, (cfr. art. 3.º, n.º 1).


Ainda que a propósito da contratação com uma universidade, o Tribunal dos Conflitos, no acórdão, de 19/05/2021, prolatado no processo n.º 04/205 (citado no parecer do Ministério Público) expendeu: -------


(…) Como salienta Carlos Carvalho, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 2ª ed., 2016, pag. 167 e 168 “Em matéria de contencioso dos contratos a delimitação da competência dos tribunais administrativos passou a constar duma única alínea, a atual al. e), suprimindo-se, assim, aquilo que era o regime que se desenvolvia ao longo das als. b), e) e f) do art. 4.º do ETAF/04.


No quadro desta alínea e para efeito da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos faz-se apelo não apenas do critério contrato administrativo, mas também, ainda, dum outro critério que é o da submissão do contrato às regras da contratação pública.


Através do novo teor dado à referida alínea produziu-se um claro alargamento da jurisdição administrativa mediante a sujeição da generalidade dos contratos da Administração Pública à jurisdição administrativa, porquanto ao remeter para a “legislação sobre contratação pública” fez-se apelo àquilo que se mostra disciplinado pelo Código dos Contratos Públicos. Ora este ao regular os procedimentos pré-contratuais abarca também os contratos de direito privado celebrados pela Administração e, bem assim, alguns dos contratos outorgados entre privados que sejam entidades adjudicantes.


Daí que basta que o contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de direito administrativo para que os litígios passem a estar sob a alçada dos tribunais administrativos e isso independentemente do facto do contrato à luz do CCP se qualificar ou não como contrato administrativo.”


(…)


Resulta assim que o contrato para aquisição de serviços celebrado por uma das entidades referidas no art. 2º do CCP - a Universidade de Coimbra -, está sujeito ao regime da contratação pública.


Deste modo, e tal como se decidiu no acórdão deste Tribunal de 11.01.2017, Proc. 020/16, “(…) para julgar o presente processo é competente a jurisdição administrativa, sendo irrelevante para a determinação da competência a natureza privada ou administrativa do contrato. Na verdade, como decorre do art. 4º, 1, al. e) do ETAF, o elemento determinante da competência não é a natureza jurídica da relação jurídica de onde emerge o litígio, mas sim a sujeição do mesmo ou a possibilidade da sua sujeição a um regime pré-contratual de direito público, o que quer dizer que a jurisdição administrativa é competente quer a relação jurídica subjacente seja, ou não, uma relação jurídico-administrativa” (cfr. ainda acórdão de 31.01.2017, Proc. 23/16).”.


Do exposto decorre, pois, que o contrato de prestação de serviços de que vem peticionada a declaração de cessação ilícita e o pagamento de prestações remanescentes foi celebrado segundo o regime da contratação pública, atuando a ré como entidade adjudicante (cfr. art. 2.º, n.º 1, al. g), do CCP).


Pelo que, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF, competente para conhecer da vertente causa são os tribunais da jurisdição administrativa.

f. dispositivo:


Assim, o Tribunal de Conflitos acorda em resolver o vertente conflito negativo de jurisdição, atribuindo nos termos dos artigos 4.º, n.º 1, alínea a) do ETAF e 151.º, n.º 1 do CPPT, aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente ao Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a competência jurisdicional material para conhecer da ação que o autor, aqui requerente, AA intentou nestes autos contra a ré Fundação Bienal de Cerveira, FP.


Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 30 de outubro de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18

2.http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

3. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0a052cb6357a15dc80258a6a004132d2

4. file:///C:/Users/MJ02230/OneDrive%20-%20STJ/173-23.4T8VNC-A.S1/anexo_i_-_publicacao_dr_dos_estatutos_29_novembro_2013.pdf

5. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8b8282b2658dfd2f802586df004fe50d