Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 036/21 |
Data do Acordão: | 11/08/2022 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | TERESA DE SOUSA |
Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO |
Sumário: | |
Nº Convencional: | JSTA000P30175 |
Nº do Documento: | SAC20221108036 |
Data de Entrada: | 11/26/2021 |
Recorrente: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TÁBUA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA UO1. AUTOR: A....... RÉU: MUNICÍPIO DE TÁBUA |
Recorrido 1: | * |
Votação: | UNANIMIDADE |
Área Temática 1: | * |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Conflito nº 36/21 Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório A……, identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, acção administrativa contra o Município de Tábua, formulando os seguintes pedidos: "(…) deve a presente ação ser julgada procedente por provada e em consequência ser declarado que: a) o A. é dono e legitimo possuidor do prédio descrito no art. 1.º da P.I. e que a este prédio pertence uma parcela de terreno com trinta e cinco metros de cumprimento por 1,5/2m de largura alcatroada pelo R. b) Que o R. ocupou ilicitamente uma parcela do prédio do AA. descrito no art. 1.º da P.I., com 50 m2, violando o direito de propriedade dos AA, causando-lhes prejuízos avultados de ordem não patrimonial; E em consequência ser o R. condenado a: a) Reconhecer o direito de propriedade do A sobre o prédio descrito no art. 1.º deste articulado, incluindo a parcela de terreno com 50 m2 por estes ocupada aquando da colocação de alcatrão b) Destruir e remover, a suas expensas, o alcatrão colocado sobre a parcela supra descrita, no prazo a fixar por este douto tribunal e abster-se de praticar quaisquer atos sobre a mesma; c) Pagar ao A. uma indemnização em montante não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais acrescida de juros de mora à taxa legal, até efetivo e integral pagamento." Em síntese, alega ser dono e legítimo possuidor de um prédio urbano que identifica, o qual se encontra inscrito a seu favor, sendo que também os seus antecessores usaram e fruíram publicamente do prédio em causa por lapso superior a 50 anos, pelo que sempre o Autor o teria adquirido por usucapião. Mais alega que o Réu, sem qualquer fundamento ou notificação prévia ao Autor, alcatroou parte do prédio deste, na parte confinante com a via pública, numa faixa de 50m2, que passou a ser utilizada pelos utentes da via, que dela se servem para estacionar os seus veículos e para efectuar manobras e, que apesar das reclamações nunca o Município repôs a situação anterior. Acrescenta que não ocorreu, no caso dos autos, qualquer processo expropriativo que legitimasse a ocupação levada a cabo pelo Município, que persiste em manter a situação, impedindo o Autor de usar, fruir e dispor da parcela de terreno, ao longo dos anos. Por saneador sentença de 28.03.2021, o TAF de Coimbra decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria por considerar estar perante uma típica acção de reivindicação, cabendo a competência para apreciar tal pretensão aos tribunais judiciais. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte que, por acórdão proferido em 08.10.2021, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão. Em acção anteriormente intentada no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Tábua, [Proc. nº 171/18.0T8TBU], foi proferida sentença em 20.02.2019 a julgar aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, declarando competentes os tribunais administrativos, com fundamento na alínea i) do nº 1 do art 4° do ETAF. O Autor requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição e os autos foram remetidos a este Tribunal dos Conflitos. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para apreciar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns. 2. Os Factos Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Tábua e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Tábua ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio por "(…) nos termos do artigo 4.°, n.º 1, aI. i) do referido Estatuto (com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro], é atribuída competência aos tribunais administrativos para a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a "[C]ondenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;". A presente lide enquadra-se no âmbito da reivindicação de uma parcela de terreno ilegitimamente ocupada pelo Réu Município de Tábua. O Município é uma pessoa colectiva de direito público. Com o que se conclui que assiste razão ao Réu Município, sendo a apreciação da presente causa da competência material dos tribunais administrativos e fiscais.". Por sua vez o TAF de Coimbra também se considerou incompetente em razão da matéria. Entendeu que "Perscrutada a petição inicial apresentada pelo autor, o mesmo assenta as pretensões que pretende fazer valer nos autos na existência de um direito de propriedade, em relação à parcela de terreno que diz ter sido ocupada pelo réu, do qual se arroga ser titular. (…) É em face deste direito de propriedade que reclama, que o autor peticiona igualmente a condenação do réu a reconhecê-lo como legitimo proprietário e a restituí-lo, removendo o alcatrão lá colocado. Estamos assim perante uma verdadeira ação de reivindicação. Note-se que, em sede de alegação de direito, é esse o enquadramento efetuado pelo autor, remetendo depois para o artigo 1311º do Código Civil, norma de direito privado e que positiva no ordenamento jurídico a referida ação. Está pois em causa um meio processual que visa afirmar o direito de propriedade e pôr termo a uma situação de facto conflituante com o seu exercício, mediante a declaração de existência do direito e a subsequente condenação à restituição da coisa de que o autor foi privado. (…) O artigo 4.º, n.º1 do ETAF, que estatui os tipos de litígios sujeitos à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais, prevê na sua alínea i) que é competência destes a apreciação de litígios cujo objeto respeite à: "i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;" Todavia, é entendimento deste Tribunal que a referida norma não afasta dos tribunais da jurisdição comum, ainda que o réu seja uma entidade pública que atua fora do exercício do seu poder de império, a competência para decidir uma ação de reivindicação de imóveis como aquela aqui em causa. Com efeito, em causa não está uma relação jurídico-administrativa enformada pelo direito administrativo, conforme o exige os artigos 1.° e 4.° do ETAF, mas sim um litígio regulado por normas de direito privado". Por acórdão proferido em 08.10.2021, o Tribunal Central Administrativo Norte confirmou aquela decisão afirmando que "Está pois em causa uma ação tipicamente real, já que o Autor invoca a propriedade do prédio parcialmente intervencionado pelo Município, o que, a confirmar-se, determinará a consequente obrigação do Réu a restituí-lo na situação em que se encontrava anteriormente à intervenção efetuada, em face do que é patente que estamos no âmbito da defesa de direitos reais, nos termos do artigo 1311° do CCivil, o que transcende manifestamente a competência dos tribunais administrativos, pois não se está perante o exercício de quaisquer direitos e/ou deveres públicos". Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211°, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40°, n° 1, da Lei n° 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212°, n.º 3, da CRP e 1 º, nº 1, do ETAF). A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.° do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo". Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, alegando o Autor factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio, que pretende ver reconhecido pelo Réu e considera ter por este sido violado e, em consequência, pede a condenação do Réu a repor a situação anteriormente existente, removendo o alcatrão colocado no prédio e abstendo-se de utilizar o prédio do Autor, e a indemnizá-lo por todos os prejuízos causados devido à ocupação levada a efeito. Assim, a pretensão principal que o Autor enuncia enquadra-se na acção de reivindicação de propriedade privada, invocando expressamente o artigo 1311.° do Código Civil (cfr. artigo 67.° do requerimento inicial). A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.12.2021, Proc. 03802/20.8T8GMR.G1.S1 e de 01.06.2022, Proc. 07/22 (todos consultáveis in www.dgsi.pt) . No acórdão de 23.05.2019, Proc. n.º 048/18, em situação equiparável à presente, expendeu-se o seguinte: «Com a Reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4° do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime". (…) Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a aI. i) do nº 1, do art. 37°, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259). (…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma "apropriação irregular", cuja diferença face à "via de facto" é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos. (…) Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4°, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor. Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9° do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2). Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3). Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração. Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.» Ora, é precisamente esta a situação dos autos, pelo que a competência para conhecer do objecto do litígio cabe aos Tribunais Judiciais (cfr. art. 64° do CPC). Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Tábua. Sem custas. Lisboa, 8 de Novembro de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza. |