Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01161/23.6BELSB-A-CP
Data do Acordão:02/07/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONSULTA DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário:É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção de indemnização com fundamento em actuação do Ministério Público no âmbito de processo administrativo.
Nº Convencional:JSTA000P31882
Nº do Documento:SAC2024020701161
Recorrente:CONSULTA DE JURISDIÇÃO (ARTº 16º Nº 2 DA LEI 91/2019), SUSCITADA PELO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ – U.O.1
RECORRENTE: AA
RECORRIDO: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (doravante TAF de Loulé), de 18.10.2023, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15º, nº 1 da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que a questão da jurisdição competente levanta fundadas dúvidas.
A presente acção administrativa foi intentada no TAC de Lisboa - posteriormente remetida ao TAF de Loulé por efeito de declaração de incompetência territorial - por AA, identificado nos autos, contra o Estado Português com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, peticionando o pagamento da quantia de 59.700,00€ a título de danos não patrimoniais, quantia acrescida de juros até efectivo e integral pagamento.
Em síntese, alega o Autor que o Magistrado do Ministério Público de Portimão, no âmbito do processo administrativo nº 4301/15.5TPTM, vulgarmente denominado PA, proferiu despacho determinando, nos termos do artigo 23º da Lei de Saúde Mental, a emissão de mandado de condução do Autor a serviço de psiquiatria de urgência mais próximo para que fosse efectuada avaliação clínico psiquiátrica de forma a aferir da necessidade de internamento do mesmo.
Mais alega que o Ministério Público não detinha competência para emitir o referido mandado, por tal competência pertencer apenas às autoridades de polícia ou de saúde pública, e que esse acto consubstancia uma detenção ilegal. Em consequência, o Autor esteve privado da sua liberdade, teve de passar por várias avaliações psicológicas desnecessárias, tendo assim ficado lesado na sua honra, bom nome, direito à sua vida privada e liberdade.
O Réu contestou e, além do mais, suscitou a incompetência material do Tribunal por considerar serem competentes os Tribunais Judiciais.
O Autor, em resposta, pugnou pela improcedência dessa excepção.
Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, face ao pedido de consulta prejudicial, nos termos ao nº 1 do art. 15º da Lei 91/2019, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma.
O Réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, pronunciou-se, nos termos do nº 3 do referido art. 11º, no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção à Jurisdição Administrativa, no caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.
Vejamos.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Em matéria de responsabilidade civil extracontratual, no âmbito da jurisdição administrativa, releva para o caso a alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF que estabelece competir aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto: "Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo”.
No entanto, a alínea a) do nº 4 daquele artigo exclui do âmbito da jurisdição administrativa “A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso”.
Relacionado com esta regra de competência, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, regula nos artigos 12º a 14º o regime substantivo da responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, distinguindo entre responsabilidade pela administração da justiça e responsabilidade por erro judiciário.
Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pelo Autor, se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal ou se estamos perante um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outra ordem de jurisdição e, portanto, excluída da apreciação pelos tribunais administrativos e fiscais, uma vez que a alegada actuação do Ministério Público teve lugar em tribunal judicial.
Como refere Carlos Cadilha, em anotação ao art. 12º da referida Lei: “a expressão administração da justiça é aqui utilizada em sentido amplo, abrangendo quer os actos materialmente administrativos dos serviços da justiça (assim se compreendendo que aí se faça exemplificativamente referência aos danos resultantes da violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável), quer os actos jurisdicionais em sentido próprio. Por conseguinte, a remissão para o regime de responsabilidade civil da função administrativa engloba, à partida, quaisquer direitos indemnizatórios por danos derivados do exercício da função jurisdicional lato sensu (…)” (cfr. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, pág. 196).
Assim, “A competência da jurisdição administrativa compreende todas as acções de responsabilidade por actos e omissões da função jurisdicional que se fundem na (má) administração da justiça, no seu deficiente funcionamento, «designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», seja qual for a jurisdição a que pertença o tribunal em causa. (…) Diversamente, quando a responsabilidade por acto da função jurisdicional se fundar em erro judiciário, em erro evidente na determinação, interpretação ou aplicação dos factos ou do Direito — ou, numa outra fórmula, quando respeitar aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais “manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto” —, a jurisdição administrativa só é competente se tal erro provier de um tribunal administrativo [alínea a) do art. 4.°/3 do ETAF, a contrario]” (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, pág. 60).
Refere Ricardo Pedro, in Revista do Ministério Público, ano 41, n.º 161, pag. 132, que, “não exercendo função jurisdicional [o Ministério Público], no caso de praticar actos danosos, os mesmos nunca deverão ser qualificados como erro judiciário, mas sim como mau funcionamento”.
O mesmo Autor explica que “Quanto às situações previstas em [(i) privação da liberdade em virtude de detenção ilegal] e [vii) à privação da liberdade, por aplicação de uma medida de coação ilegal distinta da prisão preventiva, da detenção e da obrigação de permanência na habitação], que poderão ter origem num ato ou omissão do MP, tal actividade nunca poderá gerar erro judiciário, simplesmente, por lhe estar vedado o exercício da função jurisdicional, pois como só o juiz pode exercer função jurisdicional, só este poderá incorrer em erro judiciário, enquanto os restantes apenas poderão incorrer em mau funcionamento”. (cfr. Responsabilidade Civil do Estado pelo mau funcionamento da administração da justiça, 2016, pag. 328).
Neste sentido decidiu-se no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 10.03.2011, Proc. nº 13/10 [por referência ao ac. deste Tribunal de 29.11.2006, Proc. nº 03/05]: “hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à especifica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001, Conflito n.º 294, e de 21-02-06, Conflito nº 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. nº 38.474, in AP DR de 31-8-98, 1095; de 15.10.98, Proc. nº 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.° 45.862, in AP DR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.º 46.313, in AP DR de 12-2-2003, 7378; e de 22-05-2003, Proc. n.º 532/03)
(…) Ora no caso em apreço, como refere a decisão da 2ª Vara Cível, não está em causa a responsabilidade derivada da função de julgar, que o A. nem refere na petição inicial, mas tão só a ineficiência da actuação dos órgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, na óptica do A., não procederam às diligências de investigação da queixa crime apresentada contra os denunciados.”
Igualmente se decidiu no acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 05.05.2021, Proc. n.º 03461/20.8T8LRA.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt): “entende-se que a exclusão operada pela al. a) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF [redacção actual] apenas se aplica às acções de responsabilidade por erro judiciário atribuído a tribunais não integrados na Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ou seja, no que agora releva, a erro atribuído a decisão judicial, o que não abrange acções de responsabilidade fundadas na alegação de actuações (por acção ou omissão) do Ministério Público, ainda que por ventura houvessem de ter lugar em tribunais judiciais”.
No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 08.07.2021, Proc. nº 02/20 e de 23.05.2023, Proc. nº 0785/22.3T8PVZ.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.
É esta a jurisprudência que se reitera, uma vez que não está em causa a alegação de um erro judiciário, mas antes a conduta do Ministério Público que, na óptica do Autor, lhe causou danos não patrimoniais indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Pelo exposto, e nos termos do disposto no artigo 17º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos Tribunais Administrativos e Fiscais conhecer da presente acção, no caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.