Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0284/24.9T8MCN.S1
Data do Acordão:10/30/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Os tribunais da jurisdição fiscal são competentes em razão da matéria para conhecer reclamação de atos de órgãos de administração fiscal.
Nº Convencional:JSTA000P32855
Nº do Documento:SAC202410300284
Recorrente:AA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: O Tribunal dos Conflitos acorda: ----------------------

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a. relatório:


AA, invocando o disposto nos arts. 276.º e 277.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, “reclamação da decisão do Serviço de Finanças do … (reclamação de atos de órgãos de execução fiscal)” que lhe indeferiu o pedido de pagamento da despesa de parqueamento do veículo ligeiro de passageiros penhorado pela AT no processo de execução fiscal ...76 e apensos.


Peticiona a revogação do despacho do Senhor Chefe do Serviço de Finanças do … e que o tribunal ordene “o pagamento pela AT, ao reclamante, nos termos da lei (n.º 1 e n.º 2 do art.º 30.º da portaria 282/2013 de 29 de agosto), e segundo o princípio da equidade, do valor de €19.400, 52 (dezanove mil quatrocentos euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescidos dos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a data de emissão das notas de despesa, até ao pagamento integral dos valores”.


Por despacho de 01/02/2024, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel julgou-se materialmente incompetente para conhecer da presente ação e indeferiu liminarmente a petição inicial.


Sustentou, em suma, que estando em causa um litígio relativo à interpretação e execução de um contrato de direito privado, a competência para a sua apreciação cabe aos tribunais judiciais.


Notificado, o reclamante requereu a remessa dos autos ao Tribunal judicial da comarca de Porto-Este – Juízos cíveis do Marco de Canavezes.


Recebido o processo no Juízo Local Cível do Marco de Canavezes, o tribunal, por despacho de 18/04/2024, julgou-se materialmente incompetente para a tramitação dos presentes autos e determinou a absolvição da instância.


Para o efeito, afirmou, em suma, que (…) “A verdadeira causa de pedir nestes autos, decorre do facto jurídico consistente na nomeação do “Autor”/Reclamante como fiel depositário nos autos de execução fiscal que identifica, com a consequente alegada ilegalidade do despacho que fixou o valor da sua remuneração enquanto fiel depositário, que o “Autor”/Reclamante pretende ver revogado, sendo este o pedido que formula.”.


Deparando-se com o conflito negativo de jurisdição assim surgido nos autos o Juízo local cível do Marco de Canavezes ordenou a remessa do processo ao Supremo Tribunal dos Conflitos para resolução.

b. parecer do Ministério Público:


Neste Tribunal o Digno Procurador-geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, emitiu douto parecer no sentido de o conflito se resolver com a atribuição da competência para conhecer da reclamação ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

c. exame preliminar:


No caso, dois tribunais, - um da ordem administrativa, o outro da ordem comum – declaram-se incompetentes em razão da matéria para conhecer e julgar a reclamação em referência.


O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição


Este Tribunal dos Conflitos é o competente para a sua resolução do conflito.


Não há questões prévias que devam conhecer-se.

d. objeto do conflito:


Cumpre, assim, definir aqui qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer a vertente reclamação de atos de órgão de execução fiscal.

e. fundamentação:

i. da competência


Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais comuns, os juízos locais criminais possuem competência para “julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo” se, por lei, estiverem “expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada”.


Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição»


O âmbito da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alíneas a) que lhes cabe, (no que para aqui pode relevar) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;”

Nos termos do artigo 49.º do mesmo diploma legal estatutário compete aos tribunais tributários conhecer “iii) Dos atos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal;” que, de acordo com o disposto no art.º 10°, nº 1, f), do CPPT, e 6º, n.ºs 2 e 3, do DL 433/99, de 26 de outubro, correm na repartição de finanças a quem cabe realizar os atos a estes respeitantes, com exceção dos “d) Dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal;” por se tratar de questões jurisdicionais da exclusiva competência do tribunal tributário.


ii. pressuposto:


Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art. 5.º do ETAF).


Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].2.


E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza dos sujeitos processuais.


iii. regime jurídico (adjetivo):


O artigo 95.º da LGT confere aos interessados “o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei”, permitindo-lhe reagir, nomeadamente contra “os actos praticados na execução fiscal”.


Garantindo a mesma Lei, no artigo 103.º, n.º 2, “aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da administração tributária (…)”.


Por sua vez, estabelece o art. 276.º do CPPT, aprovado pela Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, que “as decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1.ª instância.


E, nos termos do art. 151.º, n.º 1 do mesmo Código “compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal”.


iv. apreciação:


Na reclamação vem alegado que o reclamante foi nomeado fiel depositário do veículo apreendido e penhorado no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...76 e apensos, instaurado pelo Serviço de Finanças de …, onde corre termos.


Nessa decorrência, o veículo foi-lhe entregue, tendo-o o reclamante parqueado nas suas instalações. Após a venda do automóvel e entrega ao comprador, o reclamante foi ao processo de execução fiscal peticionar o pagamento do custo do parqueamento do veículo. Pretensão indeferida pelo despacho de que reclamou para o TAF.


Assim e tal como vem configurada na reclamação, a relação controvertida trazida pelo reclamante à apreciação do tribunal advém da divergência, surgida em processo executivo fiscal, entre o reclamante e o órgão de execução fiscal relativamente à intervenção daquele na execução tributária acima identificada. Enquanto este último entende que o reclamante não tem direito a mais que remuneração pelo desempenho das funções de fiel depositário; o primeiro entende que naquelas atribuições se não incluía qualquer dever de parqueamento em recinto fechado do automóvel penhorado de que foi constituído fiel depositário e, por isso, que o custo do parqueamento tem de ser pago autonomamente.


Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal tem-se visto confrontados com a questão do “cálculo da remuneração devida ao depositário de veículo automóvel penhorado em execução fiscal”. Tanto assim que o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 9/11/2022, tirado no processo n.º 132/21.1BELLE decidiu: “Justifica-se a admissão de revista relativamente à questão de saber qual o diploma legal aplicável ao cálculo da remuneração devida ao depositário de veículo automóvel penhorado em execução fiscal, porquanto há dúvidas fundadas sobre o quadro normativo aplicável que importa desvanecer, em prol da certeza do direito.” E, confrontados com reclamação idêntica à que está em causa neste processo, tem vindo a decidir que “a competência para o conhecimento das reclamações de actos do Órgão de Execução Fiscal compete ao Tribunal da área onde corre a execução fiscal (…)” – acórdão STA de 29/11/2014. Também assim no acórdão do STJ de 2/03/2017, prolatado no processo n.º 1920/13.8TBAMT-A.P1.S1, sustentando que “os tribunais administrativos e fiscais são hoje os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, isto é, apresentam-se com uma área própria, uma reserva de jurisdição, que espelha o seu núcleo essencial, ainda que algumas matérias possam ser pontualmente atribuídas, por lei especial, a outra jurisdição”, resultando do “art.º 49º, n.º 1, alínea d), do ETAF que «compete aos tribunais tributários conhecer dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões levantadas nos processos de execução fiscal» que, de acordo com o disposto no art.º 10°, nº 1, f), do CPPT, e 6º, n.ºs 2 e 3, do DL 433/99, de 26 de Outubro, correm perante a repartição de finanças a quem cabe realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do art.º 151º do CPPT, que estão atribuídos ao tribunal tributário de 1ª instância, entre estes figurando a decisão dos aludidos incidentes suscitados na execução fiscal, bem como das reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da execução fiscal.


No acórdão de 9/07/2018 prolatado no processo n.º 277/18 do STA, citado no acórdão de 20.01.2010 tirado no processo 1077/09, expendeu-se que “independentemente da adequada qualificação da “reclamação” judicial a que se refere o artigo 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) – como incidente, como recurso ou como impugnação (…) parece inequívoca a estrutural dependência desta “reclamação” em relação à execução fiscal na qual é praticado o acto potencialmente lesivo “reclamável”. É, aliás, esta dependência estrutural que permite à Lei Geral Tributária (cfr. o seu artigo 103.º) a enfática afirmação de que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, pois que, embora possa correr a generalidade dos seus termos no Serviço de Finanças, é garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da administração tributária.


Desta estrutural dependência da “reclamação” relativamente à própria execução fiscal resulta que a instauração da “reclamação” não constitui propriamente a introdução em juízo de um processo novo (…)”


Assim e como sustenta o Digno Procurador-geral Adjunto, a situação dos autos está abrangida pela previsão dos artigos 276.º e 151.º, n.º 1, do CPTT, “dado que foi apresentada uma reclamação de uma decisão proferida pelo órgão de execução fiscal (o chefe de Repartição de Finanças do …) que afeta um terceiro, que no caso é o reclamante que exerceu funções de fiel depositário num processo de execução fiscal.”


No caso, o reclamante alega que a causa de pedir – o pagamento do custo do parqueamento do automóvel penhorado na execução fiscal - se funda na existência de um contrato de direito comum regulado pelas normas do Código Civil.


Trata-se de questão jurídica irrelevante para funcionar como critério determinativo da competência das jurisdições porquanto, embora não seja materialmente uma questão fiscal, dúvidas não restam de que o legislador quis reservar para os tribunais tributários a competência para a apreciar dos atos e incidentes do processo de execução fiscal, que, tem precisamente como objeto primacial a cobrança coerciva de créditos tributários, envolvendo ainda, nesta perspetiva, uma relação jurídica de natureza administrativa.


Concluindo-se que a competência material para a apreciação da reclamação em causa cabe, por determinação legal expressa, aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, que são órgão jurisdicional dotado dos meios processuais adequados para dar satisfação às pretensões formuladas pelos administrados em processos da sua competência.

f. dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda em resolver o vertente conflito negativo de jurisdição, atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal nos termos dos artigos 4.º, n.º 1, alínea a) do ETAF e 151.º, n.º 1 do CPPT, concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, a competência jurisdicional material para conhecer da reclamação de atos de órgãos de execução fiscal que está em causa neste processo.


Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 30 de outubro de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.


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1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18
2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00