Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02131/23.0BEPRT.S1
Data do Acordão:10/30/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - O ETAF excluí da competência material dos tribunais administrativos o conhecimento de ações emergentes de relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais.
II - Compete aos tribunais da jurisdição comum (competência material residual) conhecer de ação em que os autores, particulares, peticionam “além do mais”, a condenação da ré, uma EM, a proceder, “de imediato”, ao fornecimento de água para consumo humano e para abastecimento de um imóvel, procedendo à instalação do contador de água.
Nº Convencional:JSTA000P32856
Nº do Documento:SAC2024103002131
Recorrente:AA
BB
Recorrido 1:ÁGUAS DE GAIA, E.M.
Votação: UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: O Tribunal dos Conflitos acorda: ----------------------

*


a. Relatório:


AA e BB intentaram em 24/10/2023, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo Administrativo Comum, ação administrativa (de condenação da administração à adoção de condutas) contra: -----


- Águas de Gaia, EM, SA, peticionando que se determine: ---

(i) a anulação do acto contido na notificação recebida a 12 de Junho de 2023; e, cumulativamente,

(ii) a notificação da Entidade Demandada para proceder, no imediato, à ligação da casa dos Autores à rede pública de água.

Citada, a ré contestou, defendendo-se por exceção, invocando a falta de interesse em agir e por impugnação.


O Juízo administrativo comum do TAF do Porto por saneador-sentença de 30/01/2024, julgou verificada a exceção dilatória da sua incompetência em razão da matéria e absolveu a ré da instância.


Para tanto, entendeu, em suma, que em causa está uma relação de consumo de um serviço público essencial, cuja apreciação se mostra excluída do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos da al. e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019.


Tribunal que, por despacho de 11/03/2024, considerando competente para a ação o Juízo local cível de Vila Nova de Gaia remeteu-lhe o processo.


Distribuídos aí os autos ao Juiz …, o tribunal cível, por decisão de 01/07/2024, declarou-se materialmente incompetente para conhecer do presente pleito.


Contradita que em causa esteja um litígio emergente de uma relação de consumo, por entender que os autores se insurgem verdadeiramente contra a ilegalidade da notificação recebida, pretendendo a anulação do ato nela contido e a notificação da ré para proceder à ligação da casa dos autores à rede pública de água.


Deparando-se com o conflito negativo de jurisdição assim surgido nos autos, o tribunal judicial, por despacho de 25/07/2024, remeteu o processo ao Tribunal dos Conflitos suscitando, oficiosamente, a sua resolução.


b. parecer do Ministério Público:


O Digno Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, emitiu parecer em que, aderindo à fundamentação do Juízo local cível, se pronuncia pela atribuição da competência para conhecer da presente ação ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

c. exame preliminar:


No caso, dois tribunais, - um da ordem administrativa, o outro da ordem comum – declaram-se incompetentes em razão da matéria para conhecer e julgar a ação que os autores intentaram nestes autos contra a ré.


O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição


Este Tribunal dos Conflitos é o competente para a sua resolução.


Não há questões prévias que devam conhecer-se.

a. objeto do conflito:


Cumpre, assim, definir aqui qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer da vertente causa.


Sendo certo que, nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art. 5.º do ETAF).


Estando pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].2.


E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza jurídica das partes.

e. fundamentação:

i. da competência


Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Resulta ainda que, na ordem dos tribunais judiciais comuns, os juízos locais criminais possuem competência para “julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo” se, por lei, estiverem “expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada”.


Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição»


A competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada no art. 4.º do ETAF, essencialmente pela positiva, mas também com exclusões, designadamente e para o que aqui releva, de causas fundadas no direito do consumo.


Porque grassava conflitualidade entre as jurisdições relativamente à competência para as causas do direito do consumo, que estava a aumentar a entropia e a morosidade, o legislador quis por termo às inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aditando ao n.º 4 do art. 4.º do ETAF a alínea e), que veio clarificar que está excluída da competência da jurisdição administrativa a a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos, incluindo a respetiva cobrança coerciva. Justificando que “da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” -cfr. exposição de motivos da proposta de Lei n.º 167/XIII3, que originou a Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que alterou o ETAF, aditando ao n.º 4 do artigo 4.º a alínea e) que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”


Alteração estatutária que entrou em vigor em 12 de novembro de 2019 (60 dias após a publicação daquela lei), aplicando-se à vertente causa, instaurada em data posterior (autuada em 23 de outubro de 2023).


ii. regime jurídico (substantivo):


A ré é uma empresa municipal de capitais exclusivamente públicos integralmente realizados pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, regendo-se pelo Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local/RJAEL, aprovado pela Lei n.º 50/2012 de 31 de agosto, pela lei comercial, pelos respetivos estatutos e, subsidiariamente, pelo regime do setor empresarial do Estado e que, além de outros, tem como objeto social e atribuições “a gestão e exploração dos sistemas públicos de distribuição de água potável e de drenagem e tratamento de águas residuais produzidas no concelho” daquela autarquia.


A Lei n.º 24/96 de 31 de julho – lei de defesa do consumidor – considera submetidos ao respetivo regime “os bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos” – art. 2.º n.º 2.


Nas definições da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, que consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente, considera-se serviço público essencial também “o serviço de fornecimento de água” – art. 1.º n.º 2 al.º a). Considerando-se “prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão”.


Estabelecendo o art. 4.º n.º 1 da mesma Lei que “o prestador do serviço deve informar, de forma clara e conveniente, a outra parte das condições em que o serviço é fornecido e prestar-lhe todos os esclarecimentos que se justifiquem, de acordo com as circunstâncias.


O DL n.º 194/2009, de 20 de agosto, que contém o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, no art. 2.º n.º 6 estabelece que a exploração e gestão dos sistemas municipais de abastecimento de águas “consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público.” Instituindo-se no art. 4.º, a obrigação dos utilizadores se ligarem aos sistemas municipais respetivos.


Consta ainda que os contadores devem ainda ser instalados em caixas ou nichos que garantam a sua proteção e segurança, construídos de acordo com as especificações definidas pela entidade gestora, no regulamento de serviços ou noutra documentação fornecida para o efeito.


Dispondo o art.º 66.º n.º 4 que “não pode ser imposta aos utilizadores a contratação de serviços para a construção e a instalação de caixas ou nichos destinados à colocação de instrumentos de medição, sem prejuízo da possibilidade da entidade gestora fixar um prazo para a execução de tais obras.”.


Sobre a ligação à rede pública, dispõe o art.º 32.º n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º que “os ramais de ligação asseguram o abastecimento predial de água, desde a rede pública até ao limite da propriedade a servir, (…)”. E o art.º 106.º que “o espaço destinado aos contadores e seus acessórios deve ser definido pela entidade gestora, através de adequadas especificações técnicas.”. Regendo sobre a sua localização o art. 107.º.


Estatuindo ainda que “toda a água fornecida para consumo doméstico, comercial ou industrial (…) deve ser sujeita a medição.” Contadores de água das ligações prediais que são fornecidos e instalados pela entidade gestora.


Nos termos da lei, os contratos de fornecimento de água entram em vigor “a partir da data em que tenha sido instalado o contador” – art. 303.º.


O regime dos sistemas públicos e prediais de abastecimento de água e de drenagem de águas residuais do município de … consta do Regulamento o n.º 143/2018, publicado no Diário da República 2.ª série — n.º 46 — 6 de março de 2018. Que, no art.º 17.º, obriga os proprietários e titulares de outros direitos sobre os prédios existentes ou a construir, não só a “ligar os sistemas prediais de abastecimento de água (…) à rede pública” como os onera a “pagar os ramais de ligação e as correspondentes taxas de ligação, em conformidade com o disposto” naquele regulamento.


Ademais de sancionar como contraordenação o incumprimento da obrigação de ligar o sistema predial à rede pública, no art. 18.º permite que, em situações excecionais, devidamente justificadas, a entidade gestora da rede pública se substitua “ao proprietário no cumprimento daquelas obrigações, imputando -lhe as respetivas despesas.”


Entre as tarifas devidas pelo serviço de fornecimento de água ao consumidor inclui-se uma tarifa fixa calculada em função do diâmetro do contador.


iii. apreciação:


No caso, os autores alegam, em síntese, que na qualidade de proprietários de um imóvel sito em ..., apresentaram, junto da ré, um projeto das redes prediais de abastecimento de água e de drenagem de águas residuais domésticas e pluviais.


Que após várias vicissitudes, foram notificados, em 12/06/2023, nos seguintes termos: -----


Serve o presente para informar V. Exa. que foi deferido o pedido de abastecimento de água à instalação predial em referência, pelo que poderá ser iniciado o respetivo processo de ligação junto dos serviços.


Sem prejuízo, deve V. Exa. promover a construção de dois nichos de contadores totalizadores junto aos portões de acesso ao loteamento e requerer a instalação destes contadores no prazo de 60 dias. A instalação de contadores totalizadores é dependente da celebração de contrato que deve ser requerido pelo representante de todos os proprietários, utilizadores privativos do loteamento, ou do condomínio, se constituído. No âmbito deste contrato serão faturados e cobrados os consumos diferenciais entre a soma dos volumes dos contadores de cada uma das habitações e aquele registado nos contadores totalizadores.”


Invocando a manifesta ilegalidade do ato impugnado, concluem peticionando: -

- a anulação do ato contido na notificação recebida a 12/06/2023; e, cumulativamente, -----

- a notificação da Entidade Demandada para proceder, no imediato, à ligação da casa dos autores à rede pública de água.

Ainda que os autores apresentem a sua pretensão com a roupagem da anulação da notificação que lhes comunicou o deferimento do seu pedido de abastecimento de água ao prédio que identificam (portanto o deferimento de uma pretensão), em substância, o que realmente visam com a ação é que o tribunal condene a gestora dos sistema de abastecimento de água do município de ... a ligar o seu prédio à rede pública de abastecimento de água, sem ter de instalar “contadores totalizadores junto aos portões de acesso ao loteamento” e sem que tenham de construir, previamente, os nichos para a instalação dos contadores ou, dito de outra maneira, que o tribunal imponha uma ligação de fornecimento de água ao prédio dos autores sem que tenham de requerer a instalação de contador e, consequentemente, sem terem de diligenciar pela celebração do devido contrato de fornecimento desse bem público essencial.


Do regime substantivo aplicável, acima extratado, flui claramente que a instalação e existência de um contador é legalmente imposta e, por conseguinte, indissociável do contrato de fornecimento público essencial de água a celebrar entre a entidade gestora desse sistema público de abastecimento e o consumidor, típico contrato de consumo de bens e serviços. Flui também que a tarifa fixa (diferentemente, a volumétrica, variável, corresponde à água consumida) a cobrar pelo fornecimento da água no âmbito desse contrato é estabelecida em função da capacidade do contador instalado, ao invés de outros elementos, como por exemplo, a extensão e diâmetro do ramal de ligação (que fica a expensas da entidade gestora). Aliás, a instalação, manutenção e substituição dos contadores não pode ser objeto de faturação autónoma aos utilizadores – art. 84.º n.º 4 do Regulamento de relações comerciais dos serviços de águas e resíduos – RRCAR, aprovado pelo Regulamento n.º 594/2018, publicado no DR n.º 170, Série II, n.º de 2018-09-04.


O contrato de fornecimento de água inclui o contador, cuja instalação marca o início de vigência e que, ademais implica o pagamento de uma tarifa em função do respetivo diâmetro.


Este Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 15-11-2023, tirado no processo n.º 12/23, apreciando conflito em que os tribunais das duas jurisdições – administrativa e comum - negavam a competência para conhecer ação em que um particular peticionava, “além do mais”, que a ré fosse “condenada na prestação do serviço de fornecimento de água para consumo humano e para abastecimento de um imóvel, procedendo à instalação do contador de água e ao fornecimento da mesma à casa do Autor”, entendendo que tal litígio “tem por base uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial – o fornecimento de água para consumo humano” e que “a causa de pedir e os pedidos têm como fundamento a omissão da celebração de um contrato de direito privado, para fornecimento de água”, em linha com a jurisprudência que nomeia (acórdão de 15.12.2021, no conflito 24/21) concluiu que se tratava de “um litígio “emergente das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais”. Em consonância, considerando que a causa estava excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, resolveu o conflito pela atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição comum.


Assim e concordantemente com a jurisprudência citada, conclui-se que a causa emerge do direito do consumo, respeitando ao fornecimento de água, bem público essencial estando o seu conhecimento excluído, por lei estatutária, da jurisdição administrativa. Pelo que cabe na competência residual dos tribunais da jurisdição comum.


f. dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda em resolver o vertente conflito negativo de jurisdição, atribuindo aos tribunais judiciais comuns, nos termos do art. 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF,– concretamente ao Juízo local cível de Vila Nova de Gaia – Juiz …, do Tribunal judicial da comarca do Porto - a competência material para conhecer da ação intentada nestes autos pelos autores contra a empresa municipal Águas de Gaia.


Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 30 de outubro de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18

2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d45764d474d304f474578597a55744d574d314e6930304d5759794c57493359574d744e47453459544a6b4f575a6d4f545a6c4c6d527659773d3d&fich=0c48a1c5-1c56-41f2-b7ac-4a8a2d9ff96e.doc&Inline=true