Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 02182/24.7BEPRT |
| Data do Acordão: | 04/30/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | TERESA DE SOUSA |
| Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO PRESTAÇÃO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL TRIBUNAIS JUDICIAIS |
| Sumário: | É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio emergente de uma relação de consumo relativa à prestação de um serviço público essencial, cuja apreciação se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos da alínea e) do nº 4 do art 4.º do ETAF. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33683 |
| Nº do Documento: | SAC2025043002182 |
| Recorrente: | CONDOMÍNIO ..., ... |
| Recorrido 1: | A..., S.A. |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório CONDOMÍNIO ..., ..., identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Matosinhos, acção declarativa contra A..., SA, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 2.703,60€, acrescida de juros de mora à taxa legal até ao efectivo e integral pagamento. Alega que administra as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, que identifica, e de nessa qualidade ser titular de duas contas contrato celebrados com a Ré, que respeitam aos contadores de incêndio desse edifício, um localizado na zona comercial e outro a zona habitacional, e que sempre pagou tempestivamente as facturas que a Ré lhe remetia convicto de que os valores cobrados nas mesmas eram inteiramente devidos. Acrescenta que em Abril de 2021 a empresa que administra o condomínio Autor tomou conhecimento da existência de uma proibição de cobrança de tarifas de disponibilidade nos contadores de incêndio, através da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, proibição essa que consta no nº 2 do artigo 48º do Regulamento 594/2018. Como o referido Regulamento entrou em vigor a 27 de Novembro de 2018, entende que a partir desta data a Ré encontra-se a promover uma cobrança ilegal e ilícita das tarifas de disponibilidade, devendo todas as quantias liquidadas indevidamente desde essa data serem de imediato restituídas ao Autor, sob pena de enriquecimento sem causa por parte da Ré. A Ré contestou por excepção, invocando a prescrição do direito de o Autor reclamar, a título de enriquecimento sem causa, o valor peticionado, e por impugnação. Convidadas as partes a pronunciarem-se sobre uma eventual incompetência material do Tribunal, respondeu o Autor, pugnando pela sua competência, e a Ré, defendendo a incompetência material do Tribunal. Em decisão de 12.06.2024, pelo Juízo Local Cível de Matosinhos, Juiz 1, [proc. n.º 3921/22.6T8MTS], foi declarada a incompetência absoluta desse Tribunal, em razão da matéria, com a absolvição da Ré da instância. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), também este Tribunal, em sentença proferida em 08.11.2024, se considerou incompetente em razão da matéria para conhecer do litígio e, em consequência, absolveu a Ré da instância. Suscitada oficiosamente a resolução do conflito de jurisdição pelo TAF do Porto, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos. Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019. O Autor veio defender a competência material do Juízo Local Cível de Matosinhos por considerar que a causa de pedir da acção, não deixando de assentar numa cobrança ilegal e ilícita de uma tarifa, “consiste essencial e principalmente no enriquecimento sem causa justificativa que ocorreu na esfera patrimonial da Ré à custa da Autora”, e que “não se pretende com os presentes autos promover qualquer fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados pela Ré, pois que não é controverso que o sobredito Regulamento foi violado”. Referiu ainda que não há dúvidas que o presente litígio resulta de uma relação de consumo, ao abrigo da alínea a) do nº 2 do artigo 1º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais e como tal excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos da alínea e) do nº 4 do artigo 4º do ETAF. O Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar o litígio ao Juízo Local Cível de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório. 3. O Direito A questão a decidir nos autos é o conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Matosinhos, Juiz 1, e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto. Entendeu o Juízo Local Cível de Matosinhos que “No concreto caso dos autos, consideramos que as tarifas de disponibilidade de contadores de incêndio não cabem no conceito de “serviço de fornecimento de água” previsto na al. a) do nº 2 do art. 1º da lei nº 23/96 de 26/07, uma vez que são cobradas independentemente desse efectivo fornecimento. A Ré, enquanto concessionária do serviço de fornecimento de água e pese embora seja uma entidade privada, prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, daí que, subjacente ao presente litígio, esteja uma relação jurídica administrativa. (…) Deste modo, a causa de pedir em que se funda a pretensão do autor, reconduz-se a uma relação jurídica pública, até porque o autor o que visa obter é o reembolso de quantias por si pagas e cobradas pela Ré no quadro da sua actividade de concessionária de serviço público, na qual age no exercício de poderes administrativos. Ora, tratando-se de litígio emergente de relação jurídica pública (administrativa ou fiscal) os tribunais competentes para os dirimir serão os da jurisdição administrativa e fiscal. De resto, no art. 4º, nº 1, al. d) do ETAF estatui-se que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos. Como tal, consideramos que o presente litígio, atendendo à petição inicial, envolve a apreciação da legalidade de actos praticados pela Ré, como concessionária, e que advêm do exercício de poderes administrativos, pelo que se terá de afastar essa apreciação da esfera de competência dos tribunais judiciais.”. Por sua vez, o TAF do Porto considerou que “(…) independentemente do facto de a Ré ser uma entidade materialmente administrativa e a respectiva actuação se localizar no domínio das suas atribuições (e as quantias por esta cobradas no âmbito dos mesmos poderem assumir natureza tributária), nos encontramos perante uma relação jurídica de consumo na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho que aprovou a Lei dos Serviços Públicos. (…) Não se olvida, claro está, que em causa está a questão de saber se era ou não devida por parte do Autor o pagamento de tarifas de disponibilidade, tarifas estas que, de facto, são independentes do quantum de consumo de água. No entanto, na perspectiva deste tribunal, tal não é suficiente para que se deslocalize o presente litígio para fora do âmbito de uma relação de consumo inerente aos dois contadores de água (zona comercial e habitacional) de que o Autor é titular. É que, conforme decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 01.07.2021, processo n.º 108020/19.9YIPRT.G1, no preço mensal devido pela prestação do serviço de fornecimento de água, incluem-se, não apenas, as tarifas variáveis, isto é, aquelas que são devidas em função da quantidade do consumo, mas, de igual modo, as tarifas fixas, como é o caso, das tarifas de disponibilidade (artigos 11.º-A e 11.º-B do DL n.º 194/2009, de 20/08). Confirmando isso mesmo o artigo 81.º, n.ºs 1 e 3 do Regulamento de Relações Comerciais dos serviços de águas e resíduos da ERSAR (…) esclarece que é devido à “prestação dos serviços de abastecimento público de água, saneamento de águas residuais urbanas e gestão de resíduos urbanos” que é “aplicável aos utilizadores finais uma tarifa de disponibilidade, devida em função do intervalo temporal objeto de faturação, e uma tarifa variável, devida em função da quantidade de água consumida, de águas residuais urbanas ou de resíduos urbanos recolhidos,”, tarifa essa que é “devida em função do intervalo temporal objecto de facturação”, sendo “expressa em euros por dia e, quando existirem, os limites dos escalões da tarifa variável são definidos para um período de 30 dias” e que, de acordo com o n.º 3 do artigo 84.º do mesmo Regulamento, no caso de “dispositivos de utilização nas partes comuns”, “é devida pelo condomínio”, “cujo valor depende do caudal permanente do contador que seria necessário para o perfil do consumo verificado nas partes comuns”. (…) em causa, não está o pagamento ou não de uma tarifa de prestação única, mas antes de uma tarifa que, embora fixa, assume carácter regular, a par da tarifa variável que é paga pela quantidade de consumo verificada, contrariamente ao que sucede com a tarifa devida pela ligação ao sistema público de saneamento versada nos acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 13.09.2021, processo n.º 05016/19.0T8MTS.P1.S1 e do STA, de 17.02.2021, processo n.º 01685/18.7BEBRG que foram citados na decisão de incompetência material proferida pelo Juízo Local Cível de Matosinhos para suportar tal juízo. (…) considerando, na senda do supra referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (supra citado), que a tarifa de disponibilidade se trata, também ela (a par da outra tarifa variável em função do concreto consumo), de um preço devido pelo utilizador pela prestação do serviço de fornecimento de água, que é um serviço público essencial, outra conclusão não se pode extrair, de acordo com a ratio legis que está na génese da Lei n.º 114/2019, de 19 de Fevereiro (supra referida), que não a de que o presente litígio diz (ainda) efectivamente respeito a uma relação de consumo de um serviço público essencial”. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF). Por seu turno, a competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Deste preceito importa reter o disposto na alínea e) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios «emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva» (redacção introduzida pela Lei n º 114/2019, de 12.09). Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019, consta o seguinte: «A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.» (disponível em DetalheIniciativa (parlamento.pt). A Lei nº 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente. De acordo com o art. 1º, nº 2, alínea a) da referida Lei, de entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água. Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal é questão que se resolve face ao modo como o autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo mas, sendo certo que o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos, não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência (cfr., por todos, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 01.10.2015, Proc. 08/14). O Autor, no âmbito de um contrato de fornecimento de água celebrado com a Ré, veio pedir a sua condenação no pagamento de uma quantia, com fundamento em enriquecimento sem causa, por a mesma se mostrar indevidamente paga já que, no seu entender, o art. 48º, nº 2 do Regulamento nº 594/2018, da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, impede a cobrança de tarifas de disponibilidade nos contadores de incêndio. Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, independentemente daquilo que o réu invoque no quadro da sua defesa. Ora, tal como o Autor configura a acção, o litígio em apreciação tem por base uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial, pois emerge de um contrato de fornecimento de água, celebrado entre as partes, no âmbito do qual é cobrada a questionada tarifa de disponibilidade nos contadores de incêndio. Tal como tem vindo a ser decidido pelo Tribunal dos Conflitos, em situações semelhantes à dos presentes autos, a alínea e) do nº 4 do art. 4º do ETAF afasta expressamente da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”, competindo o seu conhecimento aos tribunais comuns (cfr. os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 18.01.2022, Proc. 02941/21.2T8ALM.S1, de 23.03.2022, Proc. 031/21, de 08.11.2022, Proc. 018/22, de 15.11.2023, Proc. 012/23, de 17.04.2024, Proc. 02587/23.0T8SXL.S1 e de 20.02.2025, Proc. 0411/24.6BEPNF). Pelo exposto, e atento o disposto na alínea e) do nº 4 do art. 4º do ETAF, na redacção da Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, acordam em julgar competentes para apreciar a presente acção os Tribunais Judiciais, concretamente o Juízo Local Cível de Matosinhos, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Sem custas. Lisboa, 30 de Abril de 2025. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |