Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:024/10
Data do Acordão:03/02/2011
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MAIA COSTA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P12710
Nº do Documento:SAC20110302024
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 5º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE PONTA DELGADA E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
I. RELATÓRIO
No 5° Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, A…, SA, propôs acção declarativa de condenação para cumprimento de obrigação pecuniária contra B…, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 490,74 €, acrescida dos juros legais vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, invocando basicamente os seguintes fundamentos:
A A. é uma sociedade que se dedica à exploração de estacionamento automóvel, mediante contratos de concessão (1º).
No âmbito da sua actividade, a A. celebrou vários Contratos de Concessão com a Câmara Municipal de Ponta Delgada, para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros colectivos, em zonas de estacionamento de duração limitada (2°).
Mediante tais contratos, a A. passou a deter a exploração, gestão e manutenção dos estacionamentos da dita cidade (3°).
No âmbito da referida exploração, a A. colocou, nos vários locais de estacionamento, máquinas de pagamento com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos (4°).
Assim, um condutor que estacione o veículo no local explorado pela A., fica vinculado ao pagamento de um montante que varia consoante o tempo de utilização, conforme regras afixadas nos locais de estacionamento (5º).
Desde 01.01.2005, que o R. vem estacionando o seu veículo automóvel com a matrícula …, nos vários parques de estacionamento que a A. explora na cidade de Ponta Delgada, sem se dignar proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local (7°).
Quanto ao veículo automóvel com a matrícula …, desde 24.08.2007, que o R. vem estacionando o seu referido veículo automóvel, nos vários parques de estacionamento que a A. explora na cidade de Ponta Delgada, sem se dignar proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local (9°).
O R., apesar de ter conhecimento das condições de utilização dos parques de estacionamento explorados pela A., sempre se recusou a proceder ao pagamento dos tempos de utilização, por estacionamento dos mencionados parques (12°).
A A. tem o direito de receber do R. o seu crédito, no montante global de € 490,74 (39°).
Por sentença de 3.12.2009, o Tribunal foi julgado incompetente em razão da matéria, por se considerar que a acção se reporta a uma relação jurídica materialmente administrativa, submetida, por convenção das partes, a um regime substantivo de direito público, sendo competente para conhecer da acção os tribunais administrativos, nos termos do art. 4°, n° 1, f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), determinando-se a absolvição do R. da instância.
Desta sentença recorreu a A. para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela declaração de competência do Tribunal recorrido. Porém, a Relação, por acórdão de 25.5.2010, confirmou a decisão recorrida.
Deste acórdão recorreu novamente a A., agora para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando o mesmo pedido.
O recurso foi admitido para este Tribunal dos Conflitos, por força do disposto do art. 107°, n°2, do Código de Processo Civil.
Alega a A., em conclusão:
I. O Douto Acórdão recorrido entendeu negar provimento ao recurso com fundamento na procedência da excepção da incompetência absoluta do Tribunal judicial.
II. No âmbito da sua actividade, a RECORRENTE celebrou vários Contratos de Concessão com a Câmara Municipal de Ponta Delgada, para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros colectivos, em zonas de estacionamento de duração limitada, pelo que, mediante tais contratos, a RECORRENTE passou a deter a exploração, gestão e manutenção dos estacionamentos da dita cidade.
III. O RECORRIDO é proprietário do veículo com a matrícula … e … e desde 01.01.2005 e 24.08.2007, respectivamente, que o RECORRIDO vem estacionando os seus referidos veículos automóveis, nos vários parques de estacionamento que a RECORRENTE explora na cidade de Ponta Delgada, sem se dignar proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local.
IV. Sucede porém que o Tribunal “a quo” considerou que a RECORRENTE, na relação jurídica que estabelece com o RECORRIDO, surge investida de prerrogativas próprias de um sujeito público, revestido jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas e aplicar-lhe as sanções especificamente previstas no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada e que consistem na aplicação de coimas.
V. Assim, no entender do Tribunal “a quo”, o Tribunal Administrativo e Fiscal é o Tribunal competente para julgar os presentes Autos, uma vez que, nos termos do disposto no art. 4º, nº. 1, f) do ETAF, em virtude de o contrato de locação de estabelecimento celebrado entre o RECORRIDO e a RECORRENTE, é um contrato de direito público, e não de direito privado, em que a concessionária surge na relação como particular investida de prerrogativas próprias de um sujeito de direito público - Câmara Municipal - revestido de jus imperii.
VI. Sucede porém que, mal andou o Tribunal “a quo” ao julgar procedente a referida excepção.
VII. Com efeito, a Câmara Municipal de Ponta Delgada celebrou com a RECORRENTE um contrato de fornecimento, instalação e exploração de parquímetro na Cidade de Ponta Delgada, nos termos do qual a RECORRENTE, fica responsável pela conservação e manutenção dos parquímetros de forma a garantir as condições de operacionalidade de acordo com as especificações técnicas e características indicadas na proposta, e deve igualmente respeitar as taxas que o município vier a fixar.
VIII. Todavia, o contrato celebrado entre a RECORRENTE e o RECORRIDO não se confunde com os contratos de natureza pública, celebrados entre uma entidade privada e uma entidade pública, munida de jus imperii, uma vez que a RECORRENTE não se encontra munida de jus imperii.
IX. Com efeito, a RECORRENTE ao actuar perante terceiros, neste caso o RECORRIDO, não se encontra munida de poderes de uma entidade pública, e sim com poderes de uma entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre RECORRENTE e RECORRIDO, relativo à utilização dos parqueamentos explorados pela RECORRENTE, é de direito privado, cuja violação é susceptível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.
X. Aliás, a doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto, em virtude de não nascer de negócio jurídico, assente em puras actuações de facto, em que se verifica uma subordinação de situação criada pelo seu comportamento ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
XI. Ora, o estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança, pelo que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento mediante retribuição.
XII. Assim, estabelecendo a RECORRENTE e o RECORRIDO uma relação contratual de facto, o Tribunal competente é o Tribunal Judicial e não o Tribunal Administrativo e Fiscal.
XIII. A relação contratual de facto estabelecida entre a RECORRENTE e o RECORRIDO não possui natureza pública, até porque, sendo a RECORRENTE uma entidade privada, apesar de ter sido autorizada a fim de proceder à exploração de parques de estacionamento na cidade de Ponta Delgada, não actua perante terceiros, com jus imperii.
XIV. De facto, não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal de Ponta Delgada e a RECORRENTE, não pode, no entanto, este primeiro contrato ser equiparado aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a RECORRENTE e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, não só pela forma como os seus intervenientes actuam, como também pelas normas que regulam as relações jurídicas em causa.
XV. Tal como estabelece Pedro Gonçalves, no manual “A Concessão de Serviços Públicos”, o instrumento que dá vida à relação é um contrato de direito privado, pelo que, em si mesma, a relação de prestação que se estabelece entre o concessionário e os utentes é uma relação contratual de direito privado.
XVI. Tanto assim é que a natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço público é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
XVII. Mais uma vez, vem Pedro Gonçalves sustentar que, sendo de direito privado as relações de prestação constituídas entre o concessionário e o utente, não faz sentido sustentar a natureza fiscal da contrapartida, que é justamente um dos elementos essenciais da relação contratual.
XVIII. Assim, sendo a RECORRENTE uma sociedade anónima, dotada de um estatuto de direito privado, que reclama o pagamento do tempo de utilização pelo estacionamento de veículos nos parques de estacionamento explorados, o acto que emerge da invocada responsabilidade não é praticado por um órgão, funcionário, agente ou servidor público.
XIX. A RECORRENTE, ao intentar acções contra o proprietário do veículo automóvel, que não procedeu ao pagamento dos montantes devidos, estas não se inserem nas prerrogativas de uma autoridade pública, e sim no âmbito da gestão que lhe compete fazer enquanto entidade privada.
XX. Com efeito, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, a RECORRENTE jamais é uma funcionária ou agente de um órgão de poder político, ou seja, da Câmara Municipal de Ponta Delgada.
XXI. Acresce ainda que a relação controvertida estabelecida entre RECORRENTE e RECORRIDO não configura uma relação jurídica regulada pelo direito administrativo ou fiscal.
XXII. Aliás, tal como já foi referido anteriormente, a relação estabelecida entre a RECORRENTE e o RECORRIDO configura uma relação contratual de facto, em virtude de não nascer de negócio jurídico, assente em puras actuações de facto, em que se verifica uma subordinação de situação criada pelo seu comportamento ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
XXIII. Perante o exposto, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, nos termos do disposto nos arts. 8° e 7° do DL 269/98, de 01.09, com referência ao art. 1° do Diploma preambular, na redacção dada pelo DL 303/2007, de 24.08, o Tribunal recorrido é o competente.
XXIV. Assim, o Tribunal “a quo” aplicou erradamente o disposto no art. 4°, nº. 1, alínea f) do ETAF.
O recorrido nada respondeu.
A Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:
Está em causa a fixação do Tribunal competente para a acção declarativa de condenação em que “A…, S.A.” à qual, após concurso público, foi concedida pela Câmara Municipal de Ponta Delgada a instalação e exploração de parquímetros em zonas de estacionamento de duração limitada - pede a condenação do Réu ao pagamento, das importâncias que decorrem da aplicação do Regulamento do Estacionamento na cidade.
Sobre casos idênticos ao dos autos pronunciaram-se já os Acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 9.06.2010 e de 25.11.2010, nos Conflitos n°s 5/10 e 21/10, no sentido de que a competência para o conhecimento das acções intentadas pela A. pertence aos tribunais administrativos, dado que a A., na sequência do contrato administrativo de concessão, se encontra investida de um poder público para a realização de um interesse público (art° 4°, n° 1, f), do E.T.A.F.).
Em consequência, deverão ser declarados competentes, nos presentes autos, os Tribunais da jurisdição administrativa.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Como é uniformemente entendido na doutrina e na jurisprudência, a competência material dos tribunais determina-se segundo os termos em que foi posta a acção, ou, por outras palavras, de acordo com o pedido e a causa de pedir da acção. Cf., na doutrina, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, p. 147, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pp. 90-91.
Analisada a petição, constata-se que a A. pretende que o R. seja condenado a pagar-lhe certa importância, acrescida de juros de mora, com o fundamento em que, sendo detentora da exploração, gestão e manutenção de espaços de estacionamento para veículos na cidade de Ponta Delgada, mediante vários contratos de concessão celebrados com o respectivo Município, segundo os quais os utilizadores daqueles espaços de estacionamento ficam obrigados ao pagamento de uma determinada quantia, o R. utilizou por diversas vezes aqueles espaços de estacionamento sem que haja procedido ao pagamento das quantias devidas.
Os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou residual, o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais - arts. 211º, nº 1º, da Constituição, e 18° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Ao invés, os tribunais administrativos têm a sua competência limitada aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais - arts. 212°, n° 3, da Constituição, e 1º, n° 1, do ETAF.
No caso dos autos, o Município de Ponta Delgada celebrou com a A. contratos de concessão da exploração do estacionamento em lugares públicos daquela cidade.
As condições de exploração desses locais de estacionamento, incluindo o tarifário e o regime sancionatório, civil e contra-ordenacional, bem como a sua fiscalização, encontram-se definidos no Regulamento aprovado pela Assembleia Municipal de Ponta Delgada, publicado através do Aviso n° 4118/2004, no DR, II Série, de 1.6.2004.
Ficou, assim, a A. investida de poderes para gerir e fiscalizar os locais de estacionamento em locais pertencentes ao domínio público, e para cobrar as respectivas taxas aos utentes.
As quantias peticionadas nesta acção respeitam a taxas alegadamente não pagas pelo R. pelo estacionamento nesses locais de dois veículos.
O contrato de concessão celebrado entre a A. e a Câmara Municipal de Ponta Delgada, ao abrigo do art. 9° do dito Regulamento Cujo texto é o seguinte: “Nos termos da lei geral pode o município decidir concessionar o estacionamento de duração limitada a empresa pública ou privada, bem como pode ainda concessionar a fiscalização do cumprimento do estatuído no presente Regulamento.” investiu a primeira de poderes próprios de um sujeito de direito público, na medida em que pode cobrar taxas pelo estacionamento, fiscalizar a regularidade do mesmo e aplicar taxas sancionatórias pelo não pagamento da taxa devida, exercendo, assim, os poderes que o Município originariamente detinha sobre o espaço público.
A relação jurídica estabelecida entre a A. e o R. tem, pois, natureza administrativa, já que a A. agiu no exercício de um poder público e na prossecução de um interesse também público.
Não procede, pois, a argumentação aduzida pela A., que reconhece a natureza administrativa do contrato de concessão, mas defende que ela não se comunica às relações entre ela e os utentes, que seriam relações de direito privado, tendo a quantia devida pelo estacionamento a natureza de preço pelo serviço prestado, e não de taxa.
Mas não é assim, como já se afirmou atrás. O contrato de concessão confere à A. os poderes que a Câmara Municipal detinha sobre o espaço público afectado ao estacionamento de veículos. A concessão envolve a transferência desses poderes para a concessionária, que intervém afinal como gestora do espaço público, não propriamente no seu interesse próprio, mas na prossecução do interesse público na administração daquele espaço segundo os preceitos estabelecidos no Regulamento Municipal.
A relação entre a A. e o R., tem, pois, natureza administrativa, e, consequentemente, a competência para o julgamento da presente acção cabe aos tribunais administrativos, nos termos do art. 1°, n° 1, do ETAF.
Este foi o entendimento deste Tribunal, em recursos idênticos interpostos pela mesma autora. Acórdãos de 9.6.2010 (proc. n°5/10) e de 25.11.2010 (proc. n°21/10).
III. DECISÃO
Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso, atribuindo-se a competência para julgar a acção proposta nos autos aos tribunais administrativos e fiscais.
Vai a recorrente condenada em 0,5 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Março de 2011.- Eduardo Maia Figueira da Costa (relator) – Rosendo Dias José - José Adriano Machado Souto de Moura - Fernando Manuel Azevedo Moreira - António Pires Henriques da Graça - Alberto Augusto Andrade de Oliveira.