Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 0378/24.0BEPFN |
| Data do Acordão: | 04/30/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | TERESA DE SOUSA |
| Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ACIDENTE DE VIAÇÃO RESPONSABILIDADE CIVIL COMPANHIA DE SEGUROS |
| Sumário: | Compete aos Tribunais Judiciais conhecer de litígio no qual, face aos termos em que o Autor configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou, a relação controvertida é uma relação jurídica privada. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33679 |
| Nº do Documento: | SAC202504300378 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | A..., SA |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório AA, com os sinais dos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Cível de Paços de Ferreira, acção declarativa de condenação contra A..., SA, formulando os seguintes pedidos: “Termos em que deve a presente acção ser julgada provada e procedente, e, consequentemente, deve a ré ser condenada a indemnizar o autor pela importância de € 10.243,84 (dez mil duzentos e quarenta e três euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora legais contabilizados desde a citação até efectivo e integral pagamento. Termos em que deverá ser fixada uma sanção pecuniária compulsória para prevenir o incumprimento por parte da ré do que vier a ser decidido pelo tribunal, sanção esta que, para ser adequada e suficiente dissuasória, nunca poderá ser inferior a € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) por cada dia de infracção; Termos em que deverá ser a ré condenada nas custas processuais e demais encargos legais.”. Em síntese, o Autor alega que no dia 29.05.2022, ocorreu um acidente de viação em ..., ..., que envolveu unicamente o veículo automóvel, propriedade do Autor, conduzido por um familiar. O veículo, segundo alega, embateu numa pedra que se encontrava na faixa de rodagem de um arruamento público sob responsabilidade do Município de Paços de Ferreira, sem qualquer sinalização de perigo e parcialmente coberta por vegetação. Desse acidente resultaram danos no veículo, cuja reparação foi orçamentada em 10.243.84€. Por caber ao Município de Paços de Ferreira velar pela conservação e manutenção da via onde ocorreu o acidente, foi apresentada uma reclamação junto dos respectivos serviços. Mais alega que, por contrato de seguro, a responsabilidade civil do Município de Paços de Ferreira tinha sido transferida para a Ré, mas esta declinou qualquer responsabilidade pelos danos produzidos. A Ré Caravela apresentou contestação e, além do mais, suscitou a incompetência material do Tribunal, por considerar competente para o efeito os tribunais administrativos nos termos do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, e invocou a ilegitimidade passiva. O Autor veio requerer a intervenção principal provocada do Município de Paços de Ferreira, a qual foi admitida por despacho de 11.09.2023. O Município de Paços de Ferreira apresentou contestação sustentando a improcedência da acção. Por sentença proferida em 20.05.2024, o Juízo Local Cível de Paços de Ferreira do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este julgou procedente a excepção dilatória e declarou o Tribunal materialmente incompetente para apreciação do litígio, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel e absolveu os Réus da instância. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel (TAF de Penafiel) foi aí proferida sentença em 23.10.2024 a julgar verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria. Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos. Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Cível de Paços de Ferreira. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Cível de Paços de Ferreira, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel. Entendeu o Juízo Local Cível de Paços de Ferreira que “Conforme resulta da petição inicial, o objecto dos presentes autos é um sinistro causado, alegadamente, pela existência de pedra na via pública (…) e, ou, da falta de sinalização do perigo que essa pedra constituía. Constitui gestão pública os atos de conservação e manutenção da via pública, bem como, todas as medidas conducentes à defesa da segurança dos cidadãos enquanto utilizadores desse tipo de vias. De acordo com o preceituado no artigo 64º, nº 7, al. b) da lei das autarquias locais, aprovada pela Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, impende sobre a câmara municipal a competência para administrar o domínio público municipal, onde se integram, as vias municipais. Resulta assim que este Juízo Cível não é competente para conhecer do pedido contra o interveniente principal Município de Paços de Ferreira e também não é para conhecer do pedido contra a ré A..., SA, uma vez que, quanto a ela, a causa de pedir passa também pela responsabilidade civil extracontratual do seu segurado.”. Por sua vez, o TAF de Penafiel apoiando-se na jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, que cita, considerou que “Face aos termos como o Autor configurou a acção – considerando o momento em que a mesma foi proposta – conclui-se que o mesmo tem natureza puramente civilista, não importando aqui o facto de, posteriormente, ter sido admitida a intervenção principal provocada do Município. No caso, o Autor optou por intentar a acção unicamente contra a companhia de seguros, tendo como causa de pedir precisamente o seguro de responsabilidade civil celebrado com o Município. Sendo a Seguradora uma entidade privada, não lhe podem ser imputadas acções ou omissões no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo (n.º 5 do artigo 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas). Não é possível o seu enquadramento na alínea h) do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, de modo a que seja atribuída aos Tribunal Administrativo e Fiscal competência para a apreciação do presente litígio (veja-se nesse sentido, a Consulta Prejudicial 2/23 do Tribunal de Conflitos, de 07.02.2024 e ainda o Acórdão do mesmo Tribunal de 18.04.2024, proc. n.º 01772/23.0BEBRG). Assim, deve concluir-se que as questões trazidas a juízo se inscrevem inequivocamente no âmbito da esfera da competência legal dos tribunais judiciais, pelo que o Tribunal Administrativo é materialmente incompetente para julgar a causa.” Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, n.º 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF]. A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”. No caso, com fundamento em responsabilidade civil e invocando a existência de um contrato de seguro com a Ré, para a qual a entidade que reputa responsável pelo acidente – o Município de Paços de Ferreira – transferira a responsabilidade, veio o Autor propor a acção unicamente contra a companhia de seguros, entidade de direito privado, tendo em vista a sua condenação em indemnização pelos danos que sofreu. Sendo a Ré uma pessoa colectiva privada e não lhe podendo ser imputadas acções ou omissões no “exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, como estipula o n.º 5 do artigo 1.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, não se pode enquadrar a situação dos autos no n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, de modo a atribuir competência aos tribunais administrativos para apreciar a acção. Como já se disse a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art. 5º, nº 1 do ETAF e igualmente o artigo 38º da LOSJ. A acção não vem inicialmente proposta contra o Município de Paços de Ferreira e a sua intervenção no processo, através da intervenção principal provocada, traduz-se numa modificação de facto legalmente irrelevante para a fixação da competência, nos termos dos supracitados normativos. Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que o Autor configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou e sendo irrelevante para a fixação da competência a modificação do lado passivo por via da admissão da intervenção provocada do Município de Paços de Ferreira, não há dúvida de que a relação controvertida é uma relação jurídica privada, e não uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no artigo 4.º do ETAF (cfr., em sentido semelhante, os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 23.03.2022, Proc. 040/21, de 07.02.2024, Proc. 02/23-CP, de 18.04.2024, Proc. 01772/23.0BEBRG e de 27.11.2024, Proc. 05/24.6BEPRT). Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais. Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Cível de Paços de Ferreira. Sem custas. Lisboa, 30 de Abril de 2025. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |