Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 025/20 |
Data do Acordão: | 07/14/2022 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | TERESA DE SOUSA |
Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. TRIBUNAIS JUDICIAIS. CONTRATO DE DIREITO PRIVADO. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. |
Sumário: | Compete aos Tribunais Judiciais dirimir o litígio sobre contrato, cujo alegado incumprimento está em causa, que foi celebrado entre duas pessoas colectivas de direito privado e não foi sujeito à disciplina aplicável à contratação pública. |
Nº Convencional: | JSTA000P29797 |
Nº do Documento: | SAC20220714025 |
Data de Entrada: | 10/27/2020 |
Recorrente: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA - JUIZ 1, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA U.O. 1 AUTOR: A............, S.A. RÉU: AGÊNCIA MARÍTIMA B............, LDA. |
Recorrido 1: | * |
Votação: | UNANIMIDADE |
Área Temática 1: | * |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Conflito nº 25/20 Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório A…………, SA, identificada nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Cível de Coimbra, acção declarativa de condenação em processo comum contra a Agência Marítima B............, Lda, pedindo a sua condenação no pagamento, a título de indemnização, de 103.248,48€,acrescido de juros, por incumprimento de contrato. Em síntese, a Autora alega que celebrou com a Ré um contrato misto de prestação de serviços integrando no seu objecto um típico contrato de depósito comercial, previsto e regulado pelos artigos 403.º e 404.º do Código Comercial e, supletivamente, pelos artigos 1185.º a 1201.º do Código Civil, para serviço de apoio nas operações portuárias de carga e descarga em navios das pellets que produz, incluindo o armazenamento, guarda e acondicionamento dos produtos na área portuária. Alega, ainda, que houve “violação da Ré do dever de custódia que sobre si impendia, tendo agido com negligência grosseira, ao não prevenir e evitar as infiltrações de águas pluviais” no armazém, o que implicou a perda de grande parte da sua mercadoria e, por isso, pretende ser indemnizada. Em sede de contestação, a Ré requereu a intervenção principal provocada de Operfoz – Operadores do Porto da Figueira da Foz, Lda e da C………… – Companhia de Seguros, SA, uma vez que tinha celebrado com a Operfoz um contrato misto de prestação de serviços para esta “controlar, receber, armazenar e movimentar a carga que a Autora depositasse ao seu cuidado”, sendo também esta a proprietária do armazém. Em consequência da admissão das intervenientes como Rés, a Autora ampliou o pedido na forma seguinte: “1. Deve a Ré ser condenada a pagar à Autora, a título de indemnização, o valor de €93.880,73, ao qual acrescerão juros vencidos à taxa dos juros comerciais, desde a data de interpelação, ocorrida em 30 de Setembro de 2014, até à presente data, os quais se liquidam em € 93677,75, tudo perfazendo o valor global de € 103.248,48 (cento e três mil, duzentos e quarenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) e ainda os juros vincendos à mesma taxa a liquidar a final, com custas e procuradoria a cargo da Ré. Para a hipótese de assim não se entender, por mera cautela e subsidiariamente, 2. Devem as ora chamadas Operfoz - Operadores do Porto da Figueira da Foz, Lda e a interveniente acessória C………… – Companhia de Seguros, SA, ser solidariamente condenadas ao pagamento da indemnização acima liquidada de € 103.248,48, acrescida dos juros vincendos desde a data da distribuição da petição inicial, custas e procuradoria”. Ouvida sobre a excepção de incompetência material, a Autora A………… afirmou que “a responsabilidade civil invocada reveste-se de carácter contratual”. Em 13.06.2017, no Juízo Central Cível de Coimbra, Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo os Réus da instância. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF de Coimbra), foi aí proferida sentença em 21.09.2020 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, sendo a Ré absolvida da instância. Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos. Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019 e nada disseram. A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial de Coimbra, Juízo Central Cível de Coimbra e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. Entendeu o Juízo Central Cível de Coimbra que “O objeto da ação é a responsabilidade civil decorrente dos prejuízos causados à mercadoria da A. pelo alegado deficiente armazenamento da mesma em instalações - armazém - pertencente à Operfoz com quem a Ré Agência Marítima, intermediando, contratou a receção de cargas da A. por via rodoviária e carregamento no navio; receção de cargas com passagem por armazém, por via rodoviária, armazenamento de carga em armazém e carregamento de navio a partir de armazém. O regime jurídico aplicável à Operfoz, como operadora portuária, resulta do DL 298/93, de 28.8, compreendendo a operação portuária, como se define no art. 2.º al. a), diversas atividades, como a movimentação de cargas a embarcar ou desembarcar na zona portuária, armazenamento das mesmas, etc ... Esta atividade é considerada de interesse público (art. 3.º, n.º 1), mas a respetiva execução pode ser levada a cabo mediante empresas privadas mediante, através concessão ou licenciamento da autoridade pública. No caso da Figueira da Foz, quem exerce a ação direta no Porto são a Administração do Porto, o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, IP, a Capitania do Porto respetivo, etc .... (…), entidades públicas que podem licenciar e concessionar essas atividades. A atuação da Ré Operfoz está, assim, sujeita à disciplina de direito público. O mesmo sucede com a primeira demandada que, como agência marítima, tem o seu regime jurídico fixado no DL 264/2012, podendo a sua atividade abranger designadamente, uma intermediação geral entre os armadores e transportadores marítimos e as autoridades portuárias, marítimas ou outras relacionadas com esta área de atividade (art. 3.º). Os respetivos deveres estão estabelecidos também de forma pública, com sancionamento contraordenacional, como sucede para a Operfoz (arts. 5.º 19.º e ss.). O serviço público prestado por estas empresas implica que o conhecimento das ações que tenham por base o cumprimento ou incumprimento da sua prestação, caiba aos Tribunais Administrativos, como pode ver-se, por ex., nos Acs. do STA, de 20.5.2016 (Proc. 00379/09.9BEAVR) e de 6.3.2007 (Proc. 01449/03), como decorre do art. 4.°, n.º 1 al.s f) a h) e n.º 2 do ETAF). Sendo assim, não assiste competência material a este tribunal para decisão da presente ação (art. 96.°, n.º 1, al. a) CPC)”. Por sua vez o TAF de Coimbra considerou que “No caso dos autos está em causa a celebração de um contrato de natureza privada, contrato de depósito, que em nenhum momento foi sujeito a um procedimento de formação de natureza pública, por um lado, tendo sido celebrado por duas pessoas coletivas de direito privado, portanto, nenhuma das partes é uma pessoa coletiva de direito público, nem concessionária de serviço público ou de obra pública, por outro lado, e, ainda, nenhuma norma legal não o sujeitou (ao contrato celebrado entre as partes dos presentes autos) a um regime substantivo de direito público - cfr alíneas b), c), d) do artigo 1.º/6, 3.º e 8.º do CCP. Sabe-se, na verdade, que dispõe o artigo 3.º/1 do Decreto-Lei n.º 298/93 de 28 de agosto que a prestação ao público da atividade de movimentação de cargas é considerada de interesse público, o que por si só também não remeteria o litígio dos presentes autos para a jurisdição administrativa e fiscal. Releva perceber a que título a prestação deste serviço é feita e, por isso, determina o artigo 3.º/2 desse mesmo DL 298/92 de 28 de agosto que a atividade de movimentação de cargas pode ser prestada ao público a) mediante concessão de serviço público a empresas de estiva; b) mediante licenciamento, ou c) pela autoridade portuária. Por fim, estatui-se no n.º 4 do artigo 3.º citado que a autoridade portuária apenas pode exercer diretamente a atividade de operação portuária em caso de insuficiente prestação de serviço por empresa de estiva ou para assegurar a livre concorrência. Acresce recordar que dispõe o artigo 4.º do diploma legal acima descrito que “… A prestação ao público da atividade de movimentação de cargas depende de licenciamento pela respetiva autoridade portuária...”. (…) O facto de o exercício da atividade exigir licenciamento prévio não transporta automaticamente para a jurisdição administrativa a resolução dos litígios emergentes dos contratos privados que subscrevam nesse exercício, pois que o licenciamento das empresas de estiva pretende assegurar o preenchimento de requisitos gerais de acesso à atividade e de requisitos especiais respeitantes às circunstâncias do licenciamento pretendido, conforme artigo 9.º e segs do sobredito diploma legal. (…) Todavia, a ré não é uma empresa de estiva, ou seja, a Agência Marítima B............, Lda desempenha funções de agenciamento de navios e cargas e não de cedência de espaços e armazéns, e recordamos que a competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido. Por estas razões, entende-se que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra é materialmente incompetente”. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP, 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF). A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”. Analisados os termos e teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio regulado por normas de direito privado. Com efeito, a Autora alega ter celebrado com a Ré, Agência Marítima B............, Lda, um contrato misto de prestação de serviços integrando no seu objecto um contrato de depósito comercial, ao abrigo dos artigos 403º e 404º do Código Comercial e 1185º a 1201º do Código Civil, para serviço de apoio nas operações portuárias de carga e descarga em navios das pellets que produz, incluindo o armazenamento, guarda e acondicionamento dos produtos na área portuária, enquanto aguardasse embarque. Mais alega que, com base naquele contrato, a Ré procedeu à construção de um armazém para o depósito e guarda das pellets mas, segundo a Autora, fê-lo em desconformidade com as características pré-determinadas pela Autora - possuir capacidade de armazenagem suficiente em função do volume de pelletts em trânsito portuário e todas as estruturais de segurança e isolamento que prevenissem danos ou perdas da mercadoria. Refere, ainda, que no dia 10 de Setembro de 2014, quando se iniciava a operação de transporte da carga para o navio, a Autora deparou-se com o facto de uma grande parte da sua mercadoria armazenada se apresentar danificada e destruída por efeito de infiltrações de água no interior do armazém originadas, segundo alega, “por deficiências infra-estruturais da construção do armazém que não garantia o seu isolamento e impermeabilização e à falta de cuidado e limpeza e desentupimento dos caleiros”. Pretende a Autora que a Ré seja condenada em indemnização, decorrente de responsabilidade civil por violação do referido contrato, pelo prejuízo que lhe causou com a perda da mercadoria. Na sequência da admissão da intervenção provocada, ampliou o pedido, formulando um pedido subsidiário de condenação contra as intervenientes principais. Vejamos. Como se disse a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta, dado se mostrarem irrelevantes, salvo nos casos especialmente previstos na lei, as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito operadas (cfr. art. 5º, nº 1 do ETAF e o art.38º da LOSJ) e deve ser aferida em função do pedido principal, não relevando para o efeito o pedido deduzido subsidiariamente (cfr., entre outros, acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14.09.2017, Proc. nº 09/17, disponível em www.dgsi.pt). A Autora é uma “sociedade comercial que se dedica à produção e comercialização de pellets de madeira e resíduos diversos” e a Ré, Agência Marítima B............, Lda, é uma sociedade que desenvolve a actividade de agenciamento de navios e cargas. O contrato cujo alegado incumprimento está em causa nos autos foi celebrado entre estas duas pessoas colectivas de direito privado e não foi sujeito à disciplina aplicável à contratação pública. Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou, não há dúvida de que se está perante uma acção de responsabilidade contratual, de natureza tipicamente civilística. Não estamos, portanto, em presença de um litígio respeitante a responsabilidade civil extracontratual como se entendeu na decisão do Juízo Central Cível de Coimbra, nem está em causa o cumprimento de um contrato administrativo ou celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública. Por isso, estando em causa uma acção de responsabilidade contratual emergente de contrato de natureza privada celebrado entre sujeitos de direito privado, a presente acção está excluída da competência material dos tribunais administrativos, cabendo a competência material para a apreciar e decidir aos tribunais judiciais. Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Cível de Coimbra, Juiz 1. Sem custas. Lisboa, 14 de Julho de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza. |