Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 082/25.2T8ORM.S1 |
| Data do Acordão: | 06/25/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | NUNO GONÇALVES |
| Descritores: | CONFLITO DE JURISDIÇÃO |
| Sumário: | I - O fornecimento de saneamento e do tratamento de resíduos é um direito fundamental e um bem público essencial à preservação da saúde pública e do ambiente, assim definido a Lei n.º 23/96 de 16 de julho no artigo 1.º n.º 2 alíneas f) e g). II - Os litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva, estão excluídos da jurisdição administrativa. III - Para conhecer da oposição à execução de divida emergente da prestação do serviço de saneamento e de resíduos são competentes os tribunais da ordem judicial comum e, no âmbito desta aos juízos com competência em matéria cível. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33978 |
| Nº do Documento: | SAC20250625082 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | *
Conflito negativo de jurisdição ** O Tribunal dos Conflitos, em julgamento de conflito negativo de jurisdição, acorda: --- ** a. Relatório: Mediante certidão executiva de dívida com o n.º 2024.0006 emitida pela T..., S.A., foi instaurado no Serviço de Finanças de ..., em 20.05.2024, o processo de execução com o n.º ...22 contra: -- - AA, com os demais sinais dos autos, para cobrança coerciva da dívida decorrente da prestação dos serviços de saneamento e gestão de resíduos de 1 de outubro de 2020 a 5 de dezembro de 2023. O executado, citado, deduziu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 14.06.2024, oposição à execução Notificada, a Fazenda Pública contestou, excecionando a incompetência absoluta do Tribunal e a sua ilegitimidade, pugnando pela respetiva absolvição da instância. Notificado, o oponente pronunciou-se pela improcedência das exceções invocadas. Tribunal que, por sentença de 10.12.2024, entendendo que em causa está um litígio destinado à cobrança coerciva de dívidas provenientes do fornecimento de serviços públicos essenciais, cuja apreciação se mostra subtraída à jurisdição administrativa, nos termos da al. e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, julgou procedente a exceção dilatória da sua incompetência absoluta em razão da matéria e absolveu a Fazenda Pública da instância. A requerimento do oponente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria ordenou a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Distribuído o processo ao Juízo Local Cível de Ourém, o tribunal, por sentença de 24.02.2025, atribuindo a competência para a causa aos tribunais tributários, nos termos do art. 151.º do CPPT, declarou-se materialmente incompetente para conhecer da presente oposição. O oponente e o Ministério Público requereram a resolução do conflito negativo de jurisdição. O Juízo local cível de Ourém, denunciando o dissídio conflito, remeteu o Processo ao Tribunal dos Conflitos. b. parecer do Ministério Público: Recebidos aqui, o Digno Procurador-Geral Adjunto na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, invocando jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, emite douto parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente oposição à execução ao Juízo Local Cível de Ourém, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém. c. exame preliminar: No caso, dois tribunais, - um da ordem comum, o outro da ordem administrativa – declaram-se incompetentes em razão da matéria para conhecer e julgar a oposição à execução acima identificada. O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição Este Tribunal é o competente para a resolução do conflito em questão. Não há questões prévias que devam conhecer-se. d. objeto do conflito: Cumpre, assim, definir aqui qual a jurisdição – comum ou administrativa é a competente, em razão da matéria, para conhecer a oposição à execução em referência, decorrente da dívida emergente da prestação de serviços de saneamento e gestão de resíduos dos anos de 2020ª 2023, instaurada contra o executado no Serviço de Finanças de Ourém. e. fundamentação: i. da competência: 1. pressuposto: A competência do tribunal é um pressuposto indispensável para que o juiz possa conhecer do mérito de uma causa. Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”2. E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza jurídica dos sujeitos processuais. Sendo questão “a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”3. 2. fixação: Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 -, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”. Norma que o ETAF, no artigo 5.º, praticamente, reproduz (“A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.) Acrescentando o n.º 2 que “Existindo, no mesmo processo, decisões divergentes sobre questão de competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior.”. 3. repartição: Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Resulta ainda que, na ordem dos tribunais judiciais comuns, aos juízos cíveis compete conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”. Assim, não cabendo uma causa na competência legal e especificamente atribuída a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum. E que, na ordem dos tribunais administrativos e fiscais, a competência residual para “dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” recai nos tribunais administrativos. Os tribunais administrativos, “são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição»4. O âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais encontra-se concretizada, pela positiva e pela negativa, essencialmente, no art. 4.º do ETAF. Que na redação dada pela Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro, que aditou a nova alínea e) ao n.º 4, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. Justificando esta norma, o legislador, na Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII5, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, deixou claro que: ----- “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originaram inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclareça-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” 4. jurisprudência: O Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 18/01/2022, proferido no processo n.º 02941/21.2T8ALM.S16“ sumariou: I - A presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. II - Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário. III - Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei n.º 62/2013”. Também assim se decidiu no acórdão de 01/03/2023, tirado no processo n.º 01301/22.2T8SRE.S17, assim sumariado: “De acordo com a versão do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, compete aos Tribunais Judiciais a apreciação de uma oposição a uma execução fiscal destinada a obter a cobrança coerciva de fornecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos, por respeitar à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.” É assim que Tribunal dos Conflitos tem vindo decidir em situações semelhantes à dos presentes autos, interpretando a alínea e) do nº 4 do art. 4º do ETAF que afasta expressamente da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”, competindo o seu conhecimento aos tribunais comuns (cfr. Além dos citados, vejam-se também os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 23.03.2022, proc. 031/21, de 08.11.2022, proc. 018/22, de 15.11.2023, proc. 012/23, de 17.04.2024, proc. 02587/23.0T8SXL.S1, de 20.02.2025, proc. 0411/24.6BEPNF, de 30.04.2025, proc. nº 411/24.6BEPNF e de 30.04.2025, proc. 2182/24.7BEPRT ). f) apreciação: No caso, como referido, em causa está oposição judicial deduzida em execução fiscal instaurada para cobrança coerciva de dívida emergente do serviço de saneamento e gestão de resíduos urbanos que a T..., S.A., S.A., prestou ao executado e ora oponente nos anos de 2020 a 2023. O fornecimento de saneamento e do tratamento de resíduos é um direito fundamental e um bem público essencial à preservação da saúde pública e do ambiente, assim definido na Lei n.º 23/96 de 16 de julho no artigo 1.º n.º 2 alíneas f) e g). Como realçado, os litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva estão excluídos da jurisdição administrativa. Não sendo uma causa da competência de outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum. Face ao exposto, secundando a jurisprudência deste Tribunal, conclui-se pela atribuição da competência para conhecer a vertente oposição à execução aos tribunais da ordem judicial comum e, no âmbito desta aos juízos com competência em matéria cível. g. Dispositivo: Assim, o Tribunal dos Conflitos acorda em resolver o conflito negativo de jurisdição surgido nos autos, atribuindo a competência material para conhecer da vertente oposição à execução aos tribunais da jurisdição judicial comum, nos termos do art.º 4.º, n.º 4, alínea e), do ETAF, concretamente ao Juízo local cível de Ourém. * Sem custas por não serem devidas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. * Lisboa, 25 de junho de 2025. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. * 1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18. 2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pag. 91. 4. Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18 (onde se referência os ver Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 508/94, de 14.07.94, e nº 347/97, de 29.04.97) http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 6. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/180d09d454a747bc802587f40054dd9b 7. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9547590f6776a44a8025896c006faf1c |