Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:028/20
Data do Acordão:09/15/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P28153
Nº do Documento:SAC20210915028
Data de Entrada:11/04/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU
AUTOR: A............
RÉU: B............ E C............
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 28/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
A…………, com os sinais dos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Moimenta da Beira, acção declarativa de condenação contra C………… e B………… peticionando que i) seja reconhecido que a autora é arrendatária do prédio urbano que identifica, tendo nessa qualidade o direito de o usar, ii) seja reconhecido e declarado o direito de preferência da autora como arrendatária na aquisição do imóvel locado e, em consequência colocada na posição de adquirente em substituição do segundo R, cancelando-se o registo de propriedade existente e iii) o pagamento pelos réus de 1000,00€ a título de danos morais, com juros de mora a contar da citação e, subsidiariamente, a ser julgado improcedente o pedido em ii), requer que os RR sejam condenados a reconhecer que o direito da arrendatária se mantém apesar da transmissão do locado para o 2.º R, mantendo os outros pedidos.
Em síntese, alega que arrendou o imóvel que identifica, por contrato escrito celebrado com a 1.ª R, que nunca se extinguiu, e onde fixou desde 01.03.2008 a morada de família, sendo essa a habitação habitual e permanente que mantém juntamente com a sua filha menor. Refere que em finais de Agosto de 2017 veio a saber pelo 2.º R que o imóvel fora por este adquirido e que em Dezembro do mesmo ano este exigiu ao seu ex-marido a entrega do imóvel a 31.12.2017, o que não aceita por ser arrendatária.
Alega ainda que sempre pagou a renda por depósito bancário na conta da 1.ª R, que esta deixou de emitir recibos e que o 2.º R nunca foi receber a renda ou indicar modo de pagamento da mesma. Afirma ter direito de preferência na compra e venda do local arrendado, sendo que ninguém lhe comunicou a venda e as suas condições, que sofreu danos morais e pretende que os RR sejam condenados solidariamente na indemnização de 1.000,00€.
Em contestação, o 2.º R alega que a A não fez prova do arrendamento, que adquiriu o imóvel em venda realizada em processo de execução fiscal e que ao visitar o imóvel, sua propriedade, deparou-se com a A a quem solicitou a entrega do referido imóvel o que se revelou infrutífero.
Em decisão proferida em 5.11.2019, o Juízo de Competência Genérica de Moimenta da Beira do Tribunal Judicial de Viseu veio a declarar-se materialmente incompetente para conhecer do litígio por considerar que «a pretensão da autora nos presentes autos mais não traduz que uma impugnação do (ou oposição ao) acto do serviço de finanças que determinou a entrega do bem a si arrendado ao adquirente, quando na perspetiva da autora o arrendamento não caducou com a venda em execução fiscal» e, assim, «insere-se no âmbito do incidente de entrega judicial previsto no actual art. 256.º, n.º 2 do CPPT, o qual tem lugar no próprio processo executivo onde foi efectuada a venda» sendo que «todos os incidentes jurisdicionais relativos ao processo de execução fiscal que corra nas repartições de finanças são da competência dos tribunais tributários da respectiva área».
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, também este Tribunal, por decisão proferida em 07.07.2020, se considerou incompetente em razão da matéria por entender que «a A pretende ver reconhecido o seu direito ao arrendamento sobre um imóvel alegadamente locado pela primeira Ré, cuja propriedade se transmitiu ao segundo Réu, ainda que operada em venda na execução fiscal (...) não estando tal relação conexionada com qualquer relação jurídica tributária» concluindo assim que «o litígio a resolver não decorre de uma relação jurídico tributária enformada pelo direito tributário, sendo um litígio a resolver com base no direito privado, não se inserindo, por esse motivo, na competência dos Tribunais Administrativos, tal como é definida nos artigos 1.º e 4.º do ETAF».
Suscitada a resolução do conflito de jurisdição e remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 91/2019 e nada disseram.
A Exma Magistrada do MP emitiu parecer no sentido da atribuição da competência ao Juízo de Competência Genérica de Moimenta da Beira do Tribunal Judicial de Viseu.

Apreciação da questão
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que essa competência se fixa no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (art.º 5.º do ETAF e art.º 38.º da LOSJ).
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial que iremos encontrar a resposta à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
Resulta da petição inicial que a A pretende que os RR, sujeitos de direito privado, reconheçam que é arrendatária do imóvel que identifica, alegadamente locado à 1.ª R, tendo nessa qualidade direito de o usar e como arrendatária lhe seja reconhecido e declarado o direito de preferência na aquisição do imóvel. Caso o reconhecimento do direito de preferência não tiver provimento requer que os RR sejam condenados a reconhecer que o direito ao arrendamento se mantem apesar da transmissão do locado para o 2.º R.
O que evidencia, de forma clara, que o que está em causa não é um conflito emergente de uma relação jurídica fiscal (ou administrativa) mas um conflito entre sujeitos de direito privado que nasce de uma relação de direito privado. Ou seja, a A não discute se o imóvel deveria ou não ser vendido em execução fiscal, não reage contra nenhum acto de órgão da execução fiscal, não há nenhum incidente suscitado em processo de execução fiscal. O que a A pretende é ver reconhecido e manter o contrato de arrendamento referente ao imóvel em que habita.
Também não emerge de uma relação jurídica administrativa ou fiscal a questão quanto ao pedido de reconhecimento do direito de preferência na aquisição do imóvel com o consequente cancelamento do registo da propriedade em nome do 2.º R, decorrente da condição de arrendatária da A, como em casos similares já decidiu este Tribunal dos Conflitos (cfr. acórdão de 27.09.2018, Proc. n.º 19/18 e jurisprudência nele citada, disponível em www.dgis.pt).
Quanto ao pedido de indemnização, formulado contra sujeitos privados, também ele não diz respeito a qualquer relação jurídica administrativa ou fiscal.
Em suma, estamos perante questões no âmbito do direito privado e não perante um conflito emergente de uma relação jurídica cuja resolução tenha de ser feita com apelo a normas de direito tributário ou administrativo.
Deste modo, não se inscrevendo a acção em nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 4º do ETAF que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente em razão da matéria a jurisdição comum, concretamente o Juízo de Competência Genérica de Moimenta da Beira do Tribunal Judicial de Viseu.
Sem custas.

Assinado digitalmente pela Relatora, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento.

Lisboa, 15 de Setembro de 2021 - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.