Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 015/25.6YFLSB-CP |
| Data do Acordão: | 06/25/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | NUNO GONÇALVES |
| Descritores: | CONSULTA DE JURISDIÇÃO |
| Sumário: | I - O fornecimento de água é um direito humano fundamental e um bem público essencial à preservação da saúde pública e do bem-estar das populações, assim definido a Lei n.º 23/96 de 16 de julho no artigo 1.º n.º 2 alíneas f) e g). II - Os litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, estão excluídos da jurisdição administrativa. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33977 |
| Nº do Documento: | SAC20250625015 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | MUNICÍPIO DE CASCAIS TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA – UNIDADE ORGÂNICA 3 |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | *
Consulta prejudicial de jurisdição ** * O Tribunal dos Conflitos, em julgamento de consulta prejudicial, acorda: --------------------- * a. Relatório: AA, em 18/02/2025 intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, com distribuição ao Juízo Administrativo Comum, ação especial de intimação para proteção de direitos liberdades e garantias contra: ------- - A..., S.A. e --- - Município de Cascais, ----- peticionando a intimação das entidades demandadas a: ---- “sob pena de incorrerem no crime de desobediência qualificada e responderem pelos danos causado de natureza patrimonial e não patrimonial, que, com caráter de urgência, se dignem deferir e proferir despacho a ordenar o restabelecimento imediato do fornecimento de água, sendo certo que a água é um bem essencial sendo absolutamente imprescindível o restabelecimento do fornecimento de água”. Em síntese, alega que aviso de interrupção do fornecimento de água na casa onde habita com o seu agregado familiar há 35 anos que recebeu em 11.02.2025, recebeu é destituído de fundamento válido. Petição que ali foi autuada como processo com o n.º 153/25.5BESNT. Tribunal que, que em causa está uma relação de consumo de um serviço público essencial, cuja apreciação se mostra excluída do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos da al. e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, conhecendo oficiosamente, por sentença de 19.02.2025, decidiu julgar-se materialmente incompetente para a causa e rejeitar liminarmente a petição de intimação. O autor, notificado, requereu a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra considerando verificados os pressupostos do art.º 14.º n.º 2 do CPTA, determinou a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste. Recebidos aí os autos com distribuição ao Juízo Local Cível de Cascais – juiz 4, onde foram autuados como processo comum com o n.º 1000/25.3T8CSC. Tribunal que suscitou, oficiosamente e ao abrigo do art. 15.º, n.º 1, da Lei nº 91/2019, de 4 de setembro, consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos. b. parecer do Ministério Público: O Digno Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal dos Conflitos na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, emitiu parecer em que, convocando a jurisprudência deste Tribunal que cita e o quadro legal que indica, pronuncia-se no sentido da atribuição da competência para conhecer da presente ação considerando-se competente para ação ao Juízo Local Cível de Cascais. c. exame preliminar: No caso, um tribunal da jurisdição comum coloca, oficiosamente, ao Tribunal dos Conflitos uma consulta prejudicial para que se pronuncie sobre qual é a jurisdição materialmente competente para conhecer da ação especial de intimação à prática de ato que o autor intentou contra as demandadas. Este Tribunal dos Conflitos é o competente para emitir pronúncia. Não há questões prévias que devam conhecer-se. d. objeto da consulta: Cumpre, assim, esclarecer aqui e definir qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer da vertente causa. Sendo certo que, nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art. 5.º do ETAF). Estando pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”2. E, em determinadas causas, afere-se ainda em razão da natureza jurídica dos sujeitos processuais. e. fundamentação: i. da competência Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» A competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada no art. 4.º do ETAF, essencialmente pela positiva, mas também com exclusões, designadamente as que constam do n.º 4 do mesmo artigo. A norma da alínea e) do n.º 4, aditada pela Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. O legislador, justificando esta norma, na Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII3, da qual veio a resultar a referida Lei n.º 114/2019, patenteou que: - “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originaram inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclareça-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” 4. jurisprudência: O Tribunal dos Conflitos, como observa o Digno Procurador-Geral adjunto, tem decidido reiteradamente que compete aos tribunais da jurisdição judicial comum conhecer de litígios relativos à prestação de serviços essenciais, como é o fornecimento de água. Assim tendo decidido em acórdãos recentes, como certifica o respetivo sumário que cita: ------ - de 30-04-2025, no Proc. 02035/24.9BEPRT: «É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio emergente de uma relação de consumo relativa à prestação de um serviço público essencial, cuja apreciação se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos da alínea e) do nº 4 do art 4.º do ETAF.». - de 20-02-2025, no proc. 0411/24.6BEPNF: «É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de litígio que tem por base uma relação de consumo referente à prestação de serviço público essencial, o fornecimento de água.» - de 30-10-2024, no proc. 02131/23.0BEPRT.S1) 4: «I - O ETAF excluí da competência material dos tribunais administrativos o conhecimento de ações emergentes de relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais. II - Compete aos tribunais da jurisdição comum (competência material residual) conhecer de ação em que os autores, particulares, peticionam “além do mais”, a condenação da ré, uma EM, a proceder, “de imediato”, ao fornecimento de água para consumo humano e para abastecimento de um imóvel, procedendo à instalação do contador de água.» Também assim se decidiu, entre outros, no acórdão de 15/12/2021, proc. n.º 024/215. f) apreciação: No caso dos autos, o autor alega, em apertada síntese, que os réus são responsáveis pelo corte de fornecimento de água ao seu domicílio, peticionando que ambos sejam condenados a determinar o imediato restabelecimento desse serviço. Temos, pois, que o presente litígio tem por base uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial (o fornecimento de água). O fornecimento de água (potável canalizada) é um direito fundamental e um bem público essencial à preservação da saúde pública e bem-estar das populações, assim definido no artigo 1.º n.º 2 alíneas a), da Lei n.º 23/96 de 16 de julho Como realçado, os litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, estão excluídos da jurisdição administrativa. Não sendo uma causa da competência de outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal da ordem comum. Face ao exposto, secundando a jurisprudência deste Tribunal, conclui-se pela atribuição da competência para conhecer a vertente ação aos tribunais da ordem judicial comum e, no âmbito desta aos juízos com competência em matéria cível. g. Dispositivo: Assim, o Tribunal dos Conflitos acorda em emitir consulta prejudicial suscitada nestes autos, atribuindo a competência material para conhecer da ação que autor intentou contras as demandadas aos tribunais da jurisdição judicial comum, nos termos do art.º 4.º, n.º 4, alínea e), do ETAF, concretamente ao Juízo local cível de Cascais -Juiz 4. * Sem custas por não serem devidas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. * Lisboa, 25 de junho de 2025. – Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. * 1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18 2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 4. Consultável em https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6de6e30ea85d8efa80258bcf004d5f88?OpenDocument 5. Consultável em https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2261edfbf8654e50802587ad006bf51a?OpenDocument |