Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0147/23.5BEBRG
Data do Acordão:02/20/2025
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de litígio que, face aos termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir e os pedidos que formulou, alicerçados num contrato de prestação de serviços de natureza privada, a relação material controvertida diz respeito a uma relação jurídica contratual privatística e não a uma relação contratual de natureza administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P33338
Nº do Documento:SAC202502200147
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:B... – COOPERATIVA DE INTERESSE PÚBLICO DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1.Relatório
A..., Lda, com os sinais dos autos intentou no Juízo Central Cível de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga acção declarativa de condenação contra a B... – Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada, formulando os seguintes pedidos:
“a) declarar-se resolvido o “Contrato de Prestação de Serviços Médicos Especializados e Formação Profissional”, sem justa causa por parte da Ré,
b) declarar-se o abuso do direito, na modalidade de tu quo que, por parte da Ré, no exercício dos quiméricos direitos emergentes do susodito contrato;
c) declarar-se o abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por parte da Ré, no exercício dos supostos direitos emergentes do susodito contrato,
d) declarar-se o incumprimento definitivo do “Contrato de Prestação de Serviços Médicos Especializados e Formação Profissional”, por culpa exclusiva da Ré,
e) condenar-se a Ré a pagar à Autora a quantia de Eur.: 161.000,00 [(CENTO E SESSENTA E UM MIL EUROS), a título de indemnização pelo incumprimento contratual daquela, acrescida da quantia Eur.: 241.500,00 (DUZENTOS E QUARENTA E UM MIL E QUINHENTOS EUROS), a título de cláusula penal coercitiva e, assim, não passível de redução, no valor total de Eur.: 402.500,00 (QUATROCENTOS E DOIS MIL E QUINHENTOS EUROS), ao abrigo da Cláusula Décima Quarta, Parágrafo Terceiro, do supra citado contrato,
f) condenar-se a Ré a pagar à Autora a quantia de Eur.: 4.762,00 (QUATRO MIL SETECENTOS E SESSENTA E DOIS EUROS), correspondente ao valor dos serviços prestados no mês de abril de 2021,
g) condenar-se a Ré a pagar à Autora a quantia de Eur.: 50.000,00 (CINQUENTA MIL EUROS), a título de cláusula penal coercitiva e, assim, não passível de redução, pela violação do sigilo e confidencialidade pela Ré, quanto aos métodos, procedimentos e aos tratamentos médicos utilizados pela Autora, ao abrigo da Cláusula Décima Primeira, do “Contrato de Prestação de Serviços Médicos Especializados e Formação Profissional”, e
h) condenar-se a Ré no pagamento de juros de mora à taxa legal, a contar da resolução do ante referido contrato, sobre quaisquer montantes em que vier a ser condenada, até integral e efetivo pagamento.”.
Alega, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de prestação de serviços médicos especializados e formação profissional, com início de execução em Setembro de 2015, que aquela veio a resolver invocando justa causa.
Defende que não houve qualquer incumprimento da sua parte, mas antes da Ré a qual a partir de 2018 começou a desrespeitar as obrigações contratuais, o que causou diminuição das consultas prestadas e consequente facturação. Acrescenta que a Ré não garantiu as melhores condições para a prestação dos serviços contratados, verificando-se ainda episódios de infiltração de água, de falhas no funcionamento do sistema informático e que o encerramento da clínica explorada pela Autora, durante a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2, lhe causou severos danos. Alega ainda que a Ré incorreu em violação do Regulamento Geral de Protecção de Dados ao aceder sem consentimento aos dados pessoais dos utentes da Autora.
Conclui que a decisão da Ré de resolver unilateralmente o contrato invocando justa causa não tem qualquer justificação legal ou factual, incorrendo em abuso de direito, pelo que, atenta a ilicitude da resolução, deve a Ré ser condenada no pagamento de indemnização.
A Ré contestou, defendendo-se por impugnação e excepção, arguindo a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns, e deduziu pedido reconvencional.
Em sede de réplica a Autora, pugnou pela improcedência da excepção.
Por decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em 05.12.2022, julgou-se aquele Tribunal incompetente, em razão da matéria, para a apreciação dos pedidos deduzidos pela Autora, tendo o processo sido remetido, após trânsito, para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
O TAF de Braga por decisão de 14.02.2023 julgou-se incompetente, em razão da matéria, para apreciar do mérito da lide, remetendo os autos para o Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
No TAF do Porto as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a eventual incompetência em razão da matéria do Tribunal, tendo a Autora reiterado o seu entendimento que o Tribunal Judicial é o tribunal materialmente competente para apreciar da matéria dos presentes autos e a Ré pugnou pela competência dos tribunais administrativos.
O TAF do Porto em 12.07.2024 declarou-se materialmente incompetente para conhecer do mérito da lide e absolveu a Ré da instância.
Suscitada a resolução do conflito de jurisdição no TAF do Porto foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial de Guimarães.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 3 e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Entendeu o Juízo Central Cível de Guimarães que: “Discutindo-se nestes autos um contrato de prestação de serviços celebrado entre Ré e Autora em 1Set.2015, data em que os Estatutos da Ré mantinham a sua redação original, não podemos deixar de concluir que a Ré era uma entidade Adjudicante. (…)
Por seu turno, na mesma data, a al. f), do n.º 4 e os n.ºs 5 e 6, do art. 5.º do CCP tinham a seguinte redação:
4 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 11.º, a parte II do presente Código não é igualmente aplicável à formação dos seguintes contratos:
f) Contratos de aquisição de serviços que tenham por objecto os serviços de saúde e de carácter social mencionados no anexo II-B da Directiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, bem como os contratos de aquisição de serviços que tenham por objecto os serviços de educação e formação profissional mencionados no referido anexo, que confiram certificação escolar ou certificação profissional;
5 - À formação dos contratos referidos na alínea f) do número anterior é aplicável o disposto nos artigos 49.º e 78.º
6 - À formação dos contratos referidos nos n.ºs 1 a 4 são aplicáveis:
a) Os princípios gerais da actividade administrativa e as normas que concretizem preceitos constitucionais constantes do Código do Procedimento Administrativo;
Assim, embora a parte II do CCP (formação dos contratos) não lhe fosse aplicável, o contrato dos autos fica ainda assim sujeito às disposições dos artigos 49.º e 78.º do CCP, bem como aos “princípios gerais da atividade administrativa e as normas que concretizem preceitos constitucionais constantes do Código do Procedimento Administrativo”. (…)
Ora, no caso, pretendendo a Autora discutir a decisão da Ré de, unilateralmente, pôr termo ao contrato de prestação de serviços celebrado entre ambas as partes e datado de 1Set.2015, por resolução com invocação de justa causa, tal contrato é sujeito às normas da contratação pública, sendo também certo que a Ré, como já alegou, é abrangida pelo estatuto da pessoa coletiva de direito público, cuja competência está reservada à jurisdição administrativa nos termos do art. 4º/1 e) do ETAF”.
Por sua vez, o TAF do Porto considerou que: “Compulsados os autos, verifica o Tribunal que os pedidos formulados pela Autora se prendem com a declaração de inexistência de justa causa para a resolução do contrato designado “Contrato de Prestação de Serviços Médicos Especializados e Formação Profissional”, celebrado com a Ré, a declaração do abuso de direito desta e ainda a sua condenação no pagamento de um montante ressarcitório.
Mais verifica o Tribunal que a causa de pedir que serve de fundamento à acção prende-se com o alegado incumprimento, pela Ré, das obrigações contratuais decorrentes do contrato de prestação de serviços celebrado com a Autora a 12/09/2015.
Analisando o teor do contrato, cuja cópia se encontra junta aos autos, depreende-se que o mesmo tinha por objecto o fornecimento pela Autora à Ré dos seguintes serviços:
a) Consultas médicas especializadas em ortopedia e traumatologia;
b) Serviços médicos de tratamento intra-articulares percutâneos;
c) Cuidados de enfermagem na área de Ortopedia;
d) Assessoria e consultoria na área de saúde; e,
e) Acções de formação na área de Ortopedia e Traumatologia Desportiva pré e pós-graduada dos profissionais ao serviço da Ré.
Retira-se, ainda, da leitura das cláusulas 11ª e 16º, que sujeitaram as partes o referido contrato a normas constantes do Código Civil, mais estipulando, como foro competente para a resolução de quaisquer litígios, o Tribunal da Comarca de Braga.
Temos, assim, que o objecto da presente lide se prende com a existência de relações materiais de natureza civilística, ou seja, do foro estritamente privado, sem que se verifique qualquer actuação da Ré no uso de prerrogativas de poder público, para com a Autora. Na verdade, o presente litígio não respeita à interpretação, validade e execução de um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública.
Efectivamente, não obstante poder a Ré ser classificada, abstractamente, e nos termos do previsto no nº 2 do artigo 2º do Código dos Contratos Públicos (CCP), como entidade adjudicante, tal não confere, automaticamente, natureza administrativa à relação jurídica estabelecida com a Autora.
Antes ao contrário: à luz do artigo 5º do CCP (na redacção em vigora à época), os contratos de aquisição de serviços de saúde estavam expressamente excluídos, não lhes sendo aplicáveis as normas do Título II de tal diploma legal, exceptuando as normas dos artigos 49º (especificações técnicas) e 78º (anúncio da adjudicação).
Por outro lado, tampouco são aplicáveis normas de direito administrativo à execução e cumprimento do contrato celebrado entre as partes.
(…) o litígio a resolver não decorre de uma relação jurídico administrativa enformada pelo direito administrativo, sendo um litígio a resolver com base no direito privado, não se inserindo, por esse motivo, na competência dos Tribunais Administrativos, tal como a mesma é definida nos artigos 1º e 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
A alínea e) do nº 1, do art. 4º do ETAF, atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa para apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”.
Nos termos desta norma e para efeito do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos faz-se apelo não apenas ao critério do contrato administrativo, mas também a um outro critério que é o da submissão do contrato às regras da contratação pública.
Como explica Mário Aroso de Almeida, no que respeita ao critério do contrato administrativo, “Estão, desde logo, abrangidos pelo âmbito da jurisdição administrativa os contratos administrativos, isto é, os contratos que apresentem alguma das notas de administratividade enunciadas no nº 6 do artigo 1º do CCP”. No que concerne ao critério do contrato submetido a regras de contratação pública, diz o mesmo autor que “Tal como antes, a alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submeta a regras de contratação pública. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP, como agora é explicitado no preceito). (…) O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.” (cfr. Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 165/169).
No caso, com fundamento em responsabilidade contratual e invocando a existência de um contrato de prestação de serviços médicos especializados e formação profissional celebrado com a Ré, a Autora formula pedidos respeitantes à declaração de inexistência de justa causa para a resolução do contrato, de incumprimento por culpa exclusiva da Ré, de abuso de direito desta e da sua condenação no pagamento de um montante indemnizatório. Defende que o contrato é um contrato de direito privado e não um contrato administrativo ou celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública e que, tal como resulta do clausulado, as partes o submeteram ao regime do direito privado fazendo, inclusive, apelo à aplicabilidade de artigos do Código Civil e atribuindo ao Tribunal Judicial da Comarca de Braga a competência para a resolução “de quaisquer litígios que resultem de divergências de interpretação, validade ou cumprimento deste Contrato”.
O facto de a Ré poder ter a qualidade de entidade adjudicante não é suficiente para considerar o contrato em causa como contrato administrativo ou sujeito a regras sobre contratação pública. Aliás, no momento em que foi celebrado, estava expressamente excluído das regras da contratação pública (cfr. art. 5º do CCP, na redacção vigente à data).
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos, independentemente daquilo que o réu invoque no quadro da sua defesa.
Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir e os pedidos que formulou, alicerçados num contrato de prestação de serviços de natureza privada, não há dúvida que a relação material controvertida diz respeito a uma relação jurídica contratual privatística e não a uma relação contratual de natureza administrativa.
Deste modo, a competência material para conhecer a acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 3.
Sem custas.

Lisboa, 20 de fevereiro de 2025. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.