Texto Integral: | Conflito nº 28/22
Acordam no Tribunal dos Conflitos
1.Relatório
AA instaurou no Tribunal do Trabalho de Lisboa, contra o Instituto Nacional de Estatística, acção emergente de contrato individual de trabalho com processo comum, pedindo o seguinte:
“a) ser reconhecida natureza de retribuição ao montante anual de 3.932,00 que em 2002 foi paga à A.;
b) ser a R. condenada a pagar à A. aquele montante, o primeiro repartido em dois pagamentos semestrais, enquanto vigorar o contrato de trabalho da A. com a R.;
c) ser a R. condenada a pagar à A. a quantia de 47.184,00, vencidas no ano de 2003 a 2014, de demais vincendas;
d) ser a R. condenada a pagar à A. juros de mora sobre as quantias vencidas e vincendas, a liquidar em sede de execução de sentença, e
e) ser a R. condenada a pagar custas, procuradoria e demais encargos legais.”
Em síntese, a Autora alegou que foi admitida por conta, ao serviço e direcção do Réu, no âmbito de contrato de trabalho a termo certo em 24.06.1981, tendo sido nomeada definitivamente em 17.07.1986 e transitado para o regime de contrato individual de trabalho em 01.12.1989, detendo actualmente a categoria profissional de técnica superior de estatística, auferindo a remuneração base de 1878,00€ acrescida de diuturnidades. A relação de trabalho estabelecida entre A. e o Réu passou a regular-se pela Lei Geral do Trabalho, bem como pelo Estatuto do Pessoal em vigor no Réu.
A partir de Junho de 1991 a A. passou a beneficiar de uma componente retributiva por meio de senhas de gasolina, cheque ou transferência bancária, que acrescia à remuneração base como contrapartida directa da sua normal prestação laboral no Réu, correspondendo, então, ao montante mensal líquido de Esc:11.800$00, tendo sido esse valor actualizado, em Julho de 1993, para a quantia mensal de Esc:18.000$00, e em Janeiro de 1995 para o valor de Esc:21.000$00, valor que se manteve até Dezembro de 1996.
A partir do 2º semestre de 2001 o Réu veio de novo a alterar a designação do seu sistema retributivo instituído em 1991, passando a designar a verba ultimamente paga em prestações semestrais como “prémios de produtividade”.
No caso da A. tais prestações que lhe vinham sido pagas passaram a ter a designação de prémios de produtividade, continuando a sua periodicidade a ser semestral, pelos montantes e datas indicados no artigo 45º da petição inicial. Mais alega que a partir de Janeiro de 2003 veio o Réu a cessar totalmente o pagamento desse complemento retributivo em vigor desde 1991, que não mais foi pago à A., entendendo que a quantia que ultimamente ascendia ao montante anual de 3.932,00€, integra para todos os efeitos a sua remuneração, estando submetida ao princípio da irredutibilidade da retribuição, previsto na alínea c) do nº 1 do art. 21º da Lei do Contrato de Trabalho e actualmente na alínea d) do nº 1 do art. 129º do CT.
O Réu Instituto Nacional de Estatística, IP (INE) contestou por excepção [invocando, desde logo, a incompetência absoluta do tribunal, alegando pertencer a competência aos tribunais administrativos – art. 10º da Lei que aprova CTFP], e por impugnação.
A Autora pugnou pela improcedência da referida excepção, alegando que a realidade laboral que, no réu, vigorou desde 1989, foi a do contrato individual de trabalho. Apesar de o DL nº 136/2012 ter revogado o DL nº 166/2007, o certo é que o mesmo apenas entrou em vigor em 1 de Agosto de 2012, sendo que todos os factos alegados e que constituem o fundamento da acção ocorreram até Novembro de 2001.
A Instância Central de Lisboa – 1ª Secção Trabalho – Juiz 2, da Comarca de Lisboa, por decisão de 13.11.2015, decidiu julgar incompetente aquele Tribunal, em razão da matéria, para conhecer do litígio objecto dos autos, absolvendo a Ré da instância (fls. 295 a 300).
A Autora requereu a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, o que foi deferido (fls. 309 e 310).
Após várias vicissitudes, no TAC de Lisboa em 31.05.2022, foi proferida decisão julgando o Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer da acção.
Por despacho de 20.09.2022, foi suscitada oficiosamente pelo TAC a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Neste Tribunal dos Conflitos, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais do trabalho.
2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.
3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre a Instância Central de Lisboa – 1ª Secção Trabalho – Juiz 2, da Comarca de Lisboa e o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
A 1ª Secção do Trabalho considerou nomeadamente o seguinte: “Assim, e se é certo que até, 1 de Janeiro de 2009, a autora e o réu –Instituto Público, integrado na administração indirecta do Estado – se mantiveram vinculados pelo contrato individual de trabalho, não menos certo é que, na apontada data, aquele contrato se convolou, por mero efeito da lei, em contrato de trabalho em funções públicas, face ao disposto no artigo 17.º, n. 2 da Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, cujo teor já se deixou expresso, acima.
E, no ver do Tribunal, a tanto não obsta o que resulta provado relativamente à publicação das listas nominativas e sua notificação aos interessados, nos termos do artigo 109.º, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro. É que, salvo melhor opinião, a publicação dessa lista não tem a virtualidade de diferir para o momento da sua publicação ou notificação ao interessado a conversão do vínculo que, segundo estatui o art. 88.º da mesma lei, o artigo 17.º, n.º 2 da Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, opera automaticamente.
A competência material afere-se nos termos sobreditos, isto é, ponderando os elementos objectivos e subjectivos fornecidos pelo autor, na acção, aí se incluindo os respectivos fundamentos.
In casu, embora a autora qualifique o contrato de trabalho celebrado com o réu como um contrato individual de trabalho, o certo é que os factos e os fundamentos que alega – e que, assim, constituem a causa de pedir – importam, por força do exposto, qualificação jurídica distinta.
Alega a autora, em resposta à excepção deduzida pelo réu, que todos os factos jurídicos nos quais alicerça o seu pedido ocorreram sob a égide da sua vinculação por contrato individual de trabalho. Todavia, e ainda que assim se possa considerar, o certo é que os efeitos jurídicos que, por via da acção, pretende fazer valer não se esgotam no âmbito da aplicação do regime do contrato individual de trabalho, antes se prologam e protelam no tempo, podendo demandar a aplicação de regime jurídico distinto, mormente a partir da conversão do vínculo.”
Assim, face ao enquadramento da acção proposta e atento o disposto no art. 12º da Lei nº 35/2014, de 20/6 e art. 4º, nº 3, al. d) do ETAF, julgou competente para conhecer do dissídio o Tribunal Administrativo.
Por sua vez o TAC de Lisboa considerou o seguinte: “De facto, pese embora a decisão de incompetência do Tribunal do Trabalho, o certo é que a Autora configura a acção (quer nos pedidos quer na causa de pedir) no pressuposto da existência de um contrato individual de trabalho e da aplicação do regime do Código do Trabalho.
E nem sequer se trata de um erro, bastando ver a réplica apresentada pela Autora, onde defende e reafirma quer a existência de um verdadeiro contrato individual de trabalho, quer a procedência da sua pretensão ao abrigo das regras aplicáveis a esse tipo de contrato.
Diga-se, a latere e embora já atinente ao mérito da causa, que numa análise perfunctória a pretensão da Autora só teria alguma hipótese de viabilidade precisamente se e enquanto ao abrigo da existência de um contrato individual de trabalho e da aplicação do respectivo regime legal (face às disposições imperativas de direito público, no que concerne à retribuição e eventuais suplementos, no âmbito do contrato de trabalho em funções públicas.
Assim, e salvo o devido respeito, não poderia ter sido declarada a incompetência material do Tribunal do Trabalho, uma vez que essa decisão assentou numa requalificação do contrato e do regime legal aplicável à situação da Autora.
Como é jurisprudência pacífica do Tribunal dos Conflitos, para a questão de (in)competência dos tribunais, importa apenas a configuração da acção feita pelos autores e não aquela que se entenda ser a aplicável (o que já redunda numa questão de mérito e de procedência da causa) – cf. entre muitos outros, acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 13.10.2021, no processo n.º 01996/14.0BELSB.S1 e de 11.04.2019, no processo n.º 045/18, e demais jurisprudência neles citada (…)
Aliás, e como bem apresentou a Autora com a sua réplica, existia já jurisprudência da jurisdição comum, nomeadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.03.2014, no processo n.º 4917/12.1TTLSB.S1, que em processo idêntico ao da Autora, decidiu pela competência da jurisdição comum para conhecer do respectivo mérito.”
Concluiu-se, assim pela incompetência absoluta do TAC de Lisboa e, em geral, da jurisdição administrativa e fiscal, em razão da matéria, para conhecer do presente litígio, tendo-se absolvido o réu da instância.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1 e 126º (quanto à competência especializada dos Juízos do Trabalho), da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)]. A competência especializada dos Juízos do Trabalho definida naquele art. 126º, em matéria cível, compreende, entre outras, a de conhecer “Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho” (alínea b) do nº 1).
Por sua vez, aos tribunais administrativos e fiscais cabe a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Decorre ainda do art. 4º, nº 4, al. b) do ETAF que se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;”.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Ora, aquilo que a A. pediu ao tribunal foi que o Réu reconheça natureza de retribuição ao montante anual de €3.932,00 que em 2002, pagou à Autora e ser condenado a pagar à Autora aquele montante (o primeiro repartido em dois pagamentos semestrais), enquanto vigorar o contrato de trabalho da A. com o Réu e, ainda a quantia de €47.184,00, vencidos nos anos de 2003 a 2014. Alegando que a relação laboral existente entre si e o R. era um contrato de trabalho de natureza privada, um contrato individual de trabalho [cfr. art. 10º do DL nº 166/2007, de 3/5 que consagrou a aplicação aos trabalhadores do INE de tal contrato de trabalho e o art. 30º do DL nº 280/89, de 23/8].
Assim, não podem subsistir dúvidas de que a A. caracteriza o vínculo jurídico entre si e o Réu como relação laboral de direito privado, decorrendo os pedidos que formula desse concreto vínculo laboral.
Isto significa como se decidiu neste Tribunal dos Conflitos, Ac. de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14 que: «perante a pretensão expressa do Autor de reconhecimento da existência de um contrato individual de trabalho e não de uma relação de trabalho em funções públicas, não pode resolver-se a questão da competência em razão da matéria caracterizando tal relação como de contrato de trabalho em funções públicas em função da interpretação da evolução do regime jurídico em sentido contrário ao pretendido pelo Autor (sendo alheia ao objecto da presente decisão, repete-se, qualquer apreciação do acerto dessa solução).
É certo que o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. Para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do Autor de que está ligado à Ré através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o Autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à Ré.».
E, em situação paralela, o Tribunal dos Conflitos reiterou que «Nesta medida, e contrariamente ao que decorre implicitamente da decisão que foi proferida no Tribunal do Trabalho, não interessa, para os estritos fins da determinação da competência, trazer à discussão a legislação subsequente (referimo-nos à Lei n° 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entretanto revogada, e à Lei n° 35/2014, de 20 de junho) que, segundo uma possível interpretação, poderá ter convertido o alegado contrato de trabalho num contrato em funções públicas: Note-se que não se está a pôr em dúvida que para os dissídios decorrentes de um contrato deste tipo a jurisdição administrativa e fiscal seria a competente (alínea d) do n° 3 do art. 4º do ETAF e art. 12° da Lei n° 35/2014). O que se diz, simplesmente, é que não é isso que está aqui em causa. Na realidade, uma coisa é a competência do tribunal, outra coisa, muito diferente, é o direito material ou substantivo aplicável ao litígio, direito este que cabe ao tribunal competente determinar e aplicar independentemente da sua natureza privada ou pública» - cfr. Ac. de 04.02.2016, Proc. n.º 041/15. Aliás, em situação em tudo semelhante à dos autos, o TRL, em decisão sumária de 27.03.2014, no âmbito do processo nº 4917/12.1TTLSB.L1, decidiu no sentido da competência do Tribunal do Trabalho para conhecer do litígio.
No mesmo sentido dos citados acórdãos se tem pronunciado, de forma reiterada, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos (cfr., entre outros, os acórdãos de 25.01.2018, Proc. n° 047/17, de 11.04.2019, Proc. nº 045/18, e de 13/10/2021, Proc. nº 0713/19.3T8BJA.E1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
Deste modo, tem de concluir-se que, atendendo aos termos em que a Autora formulou a pretensão são os tribunais comuns, pelos tribunais do trabalho, os competentes para conhecer da acção.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção a Instância Central de Lisboa – 1ª Secção Trabalho – Juiz 2, da Comarca de Lisboa.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Abril de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.
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