Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018490/16.8T8LSB.L1.S1
Data do Acordão:06/19/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Sumário:I - É da competência material dos tribunais da jurisdição comum conhecer ação para efetivação da responsabilidade civil do Fundo de Resolução por alegada violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos conjugados dos artigos 74.º, 75.º e 77.º do Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de dezembro [RGICSF].
II - Compete aos tribunais administrativos conhecer da ação na parte em que se pretende efetivar a responsabilidade civil do Banco de Portugal e da CMVM por alegada violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos conjugados dos artigos 74.º, 75.º e 77.º do Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de dezembro [RGICSF] e 289.º, 290.º, 293.º e 321.º do CVM.
Nº Convencional:JSTA000P32419
Nº do Documento:SAC20240619018490
Recorrente:BANCO DE PORTUGAL
FUNDO DE RESOLUÇÃO
Recorrido 1:NOVO BANCO S.A
Recorrido 2:AA
BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A.
CMVM-COMISSÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: *

recurso


Acórdão:


O Tribunal dos Conflitos acorda: ----------------------


**

a. Relatório:


AA intentou, em 18/07/2016, na então Instância Central Cível ... do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, ação declarativa de condenação com processo comum, contra: ---------------


- Banco Espírito Santo, S.A.,


- Banco de Portugal,


- Novo Banco, S.A.,


- Fundo de Resolução,


- CMVM – Comissão de Mercado de Valores Mobiliários; e


- BB,


formulando os pedidos seguintes: --------------------------

- A condenação solidária dos réus, a título de responsabilidade civil, enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no art. 304º-A do CVM, no pagamento ao autor da quantia de € 244.949,836, acrescida de: -----

i) € 47.518,70 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, calculados desde a data de utilização ilícita pelos réus das quantias monetárias do autor;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória.

- Subsidiariamente, a declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no art. 321.º do CVM, com a consequente condenação solidária nos réus a restituírem ao autor a quantia de € 244.949,836, acrescida de: -------------------

i) € 47.518,70 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, calculados desde a data de utilização ilícita pelos réus das quantias monetárias do autor;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

- A condenação dos réus a ressarcirem solidariamente o autor dos danos não patrimoniais que lhe causaram, em valor a ser calculado em liquidação de sentença.

*


Os réus contestaram:


O Banco Espírito Santo SA suscitou a questão da inutilidade superveniente da lide.


O Novo Banco, SA e BB excecionaram a sua ilegitimidade substantiva.


O Banco de Portugal, o Fundo de Resolução e a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários deduziram, além do mais, a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais comuns, em razão da matéria, para tramitar e julgar a presente ação, considerando serem competentes para o efeito os tribunais administrativos.


O Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 1, que sucedeu à aludida Instância, por despacho de 26/01/2017, suscitou oficiosamente a exceção dilatória da incompetência em razão do território do Tribunal para conhecer dos autos, oferecendo o contraditório às partes.


O autor pronunciou-se pela competência territorial do Juízo Central Cível onde os autos têm corrido os respetivos.


O Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 1, por decisão de 31/12/2018: -----

- declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, no que respeita à ré Banco Espírito Santo, S.A.;

- julgou procedente a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria relativamente aos réus Fundo de Resolução, Banco de Portugal e CMVM, absolvendo-os da instância e determinando que os autos prosseguissem com os réus Novo Banco, SA e BB;

- julgou improcedente a ação relativamente aos autos réus Novo Banco, SA e BB, absolvendo-os do pedido.

Em concreto, sustenta que no caso em análise, apesar de formular o pedido contra todos os réus, solidariamente, é notório que o autor não alega quaisquer factos dos quais se possa concluir pela imputação de responsabilidade solidária.


Nessa decorrência conclui pela competência do Tribunal Judicial para conhecer do pedido formulado contra os réus BES, Novo Banco e BB, e competentes os tribunais da ordem administrativa para conhecer do litígio em causa contra o Fundo de Resolução, Banco de Portugal e Comissão de Mercado de Valores Imobiliários.


Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.


A Relação de Lisboa, por Acórdão de 10/10/2019, julgou a apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença recorrida, proferida pelo tribunal de primeira instância.


Notificado, o autor pediu revista excecional junto do Supremo Tribunal de Justiça, visando discutir, além do mais, a questão da competência material para conhecer da causa.


Remata a alegação de recurso com as conclusões seguintes (no que para aqui releva).

F. Entende o Apelante que andou mal a apreciação pelo Tribunal a quo da aplicação aos presentes autos do disposto nos artigos 99º nº 1 e 278º nº 1 al. a) do CPC, já que não se verifica a incompetência em razão da matéria, quanto aos RR. Banco de Portugal, Fundo de Resolução e CMVM já que:

G. Para a decisão do presente pleito não há necessidade de recurso a qualquer norma de direito administrativo, estando a discussão centrada no plano puramente privado e civilístico, que, recorde-se, se prende com a responsabilização civil dos RR. Por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado no artigo 305º A e 321º do Código dos Valores Mobiliários.

O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 15/09/2021, admitiu a revista excecional.


Distribuído o recurso, o Exmo. Conselheiro relator, por decisão singular, de 05/04/2024, determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, para apreciação do recurso na parte em que vem questionada a declarada incompetência material do tribunal (relativamente aos réus CMVM, Banco de Portugal e Fundo de Resolução), ficando com traslado para assegurar o prosseguimento da revista na parte sobrante.

b. Parecer do Ministério Público:


No Tribunal dos Conflitos o Digno Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, emitiu parecer pronunciando-se pela: --------

- Revogação do acórdão recorrido no segmento em que absolveu da instância o Fundo de Resolução, declarando-se competente a jurisdição comum para conhecer dos pedidos deduzidos contra este réu;

- Manutenção do acórdão recorrido na parte em que absolveu da instância os réus Banco de Portugal e Comissão do Marcado dos Valores Mobiliários, declarando-se competente a jurisdição administrativa e fiscal para conhecer dos pedidos contra eles formulados.

*


c. exame preliminar:


Este Tribunal dos Conflitos é o competente para julgar o recurso no que respeita à questionada incompetência material do tribunal cível para conhecer da causa intentada contra o Banco de Portugal e a CMVM – art. 3.º alínea c) da Lei n.º 91/2019 de 4 de setembro e art. 101.º n.º 2 do CPC.


Não existem questões processuais que obstem ao prosseguimento do recurso para julgamento e que se decida por acórdão.

d. objeto do recurso:


Cumpre, assim, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio em causa contra aquelas três entidades cabe aos tribunais da jurisdição comum ou se, como se decidiu no acórdão recorrido, compete aos tribunais da jurisdição administrativa.


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e. fundamentação:

1. o direito:

i. da competência material:


Da arquitetura constitucional e do quadro legal orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais comuns, aos juízos cíveis compete conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”.


Assim, não cabendo uma causa na competência material, legalmente atribuída a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum.


Estabelece a Constituição da República - art. 212.º, n.º 3 – e regulamenta a Lei de Organização do Setor Judiciário/LOSJ – art. 144.º, n.º 1 que aos tribunais administrativos e fiscais compete “o julgamento das ações e recursos contenciosos” “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, “tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição”.


Especificando o art. 1.º, n.º 1, do ETAF na atual redação, dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro -posterior à data da propositura da vertente ação -, que nos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal recai a competência para administrar a justiça “nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.


Norma que anteriormente – na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro -, dispunha simplesmente que aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal competia para administrar a justiça “nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.


Dispondo o art. 38.º, n.º 1, da LOSJ que “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (e também assim o art. 5.º do ETAF), para a decisão do caso aqui em apreciação atende-se à redação do art. 1.º, n.º 1, do ETAF dada pelo referido DL n.º 214-G/2015.


Nota-se, no entanto, que pese embora o art. 1.º do ETAF, na versão vigente à data da propositura da ação, não contivesse a menção aos “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (como sucede atualmente), certo é que a al. o) do n.º 1, do art. 4.º do mesmo diploma, para o qual remetia aquele art. 1.º, contemplava expressamente as relações jurídicas administrativas e fiscais.


Esclarecida a sistemática em matéria de sucessão da lei no tempo, refira-se que, em qualquer dos casos, a competência, em razão da matéria, dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se prevista no art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), estatuindo nos n.ºs 1 e 2, nessa redação que:


1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:


a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;


(…)


f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;


g) (…);


h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;


(…);


o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.


2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”.


*


Está pacificamente firmado na jurisprudência, designadamente na deste Tribunal de Conflitos – máxime: Acórdão de 08/11/2018, in processo n.º 20/181 -, que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). (…) é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável”.


Como aí se nota «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.


2. apreciação:


i. a causa de pedir:


No caso, o autor alega, em síntese, ser cliente da ré Banco Espírito Santo, SA (BES) há mais de 20 anos, tendo-se tal relação materializado na existência de uma conta bancária de que é titular.


Mais alega que foi por critério e exclusiva determinação da ré Banco Espírito Santo, SA, que a conta bancária do autor desde há cerca de 10 anos passou a ser sediada e tratada pelo denominado Private Bank, exercido por aquela ré (1.ª), na ..., tendo sido atribuída ao autor, desde então, uma Gestora de Conta, a ré BB (6ª R.).


Salienta que era esta gestora de conta quem aplicava os fundos do autor, cujas instruções sempre foram no sentido de que não pretendia aplicar o seu dinheiro em produtos com qualquer risco associado, querendo sempre ter a certeza de que tinha o seu capital garantido e disponível para qualquer eventualidade.


Neste contexto, a ré BB, em quem o autor depositava uma “confiança absoluta e cega” na gestão que fazia da sua carteira de depósitos, sempre lhe garantiu que aqueles produtos eram “como depósitos a prazo”, sem qualquer risco.


Assim, no âmbito das suas funções e sob a subordinação do Banco Espírito Santo, SA, a ré BB, no seio do departamento de "Private Bank" daquela primeira ré, aplicou o dinheiro do autor depositado na primeira ré, no valor total de € 244.949,836, na compra de produtos financeiros que constam atualmente da sua "Carteira de Títulos Custódia".


Argumenta que, não obstante serem conhecedores de que o autor apenas queria confiar o seu dinheiro em produtos seguros e com disponibilidade imediata de capital em caso de pedido de reembolso, as rés BB e BES “enganaram-no”, usando o seu dinheiro à revelia das suas instruções e contra a sua vontade expressa, aplicando-o em produtos de alto risco e privando-o da disponibilidade dos seus fundos monetários.


Alega, também, que, em 03/08/2014, o Banco de Portugal, decidiu-se pela aplicação da medida de resolução à ré Banco Espírito Santo, SA, criando, assim, o Novo Banco, cujo capital social é inteiramente detido pelo Fundo de Resolução. Com aquela medida de Resolução o Banco de Portugal determinou genericamente que os ativos de real valor, que poderiam responder sobre os credores do BES, fossem transferidos para o Novo Banco.


Alega, ainda, que sobre o Banco de Portugal e a CMVM recaíam deveres legais de supervisão sobre a atuação do BES, que não foram cumpridos, o que deverá resultar na sua coresponsabilização na obrigação de devolução dos montantes investidos, recorrendo aos montantes sob tutela do Fundo de Resolução.


Mais sustenta que sobre o BES, Banco de Portugal, Novo Banco, CMVM e BB recaíam verdadeiros deveres de conduta de informação, diligência e lealdade, nos termos conjugados dos artigos 74.º, 75.º e 77.º do Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de dezembro [RGICSF], e 289.º, 290.º, 293.º e 321.º do CVM.


ii. regimes:


É a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que contém o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.


Estabelece o art. 1.º da Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro (Lei Orgânica do Banco de Portugal), que o Banco de Portugal é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio.


Nos termos do art. 153.º-B, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), o Fundo de Resolução é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio.


Segundo o art. 3.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários é reconhecida como entidade reguladora.


De acordo com o art. 3.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras (LQER), aprovada em anexo à Lei n.º 67/2013, “As entidades reguladoras são pessoas coletivas de direito público, com a natureza de entidades administrativas independentes, com atribuições em matéria de regulação da atividade económica, de defesa dos serviços de interesse geral, de proteção dos direitos e interesses dos consumidores e de promoção e defesa da concorrência dos setores privado, público, cooperativo e social”.


iii. jurisprudência:


É jurisprudência consolidada do Tribunal de Conflitos2 que compete, em razão da matéria: ---------

ª. aos tribunais judiciais conhecer da ação no tocante aos pedidos deduzidos contra o Banco Espírito Santo SA, Novo Banco SA e Fundo de Resolução;

b. aos tribunais administrativos conhecer da ação no tocante aos pedidos deduzidos contra o Banco de Portugal e Comissão de Mercado de Valores Mobiliário.

Motivando a assim decidido no Acórdão proferido no processo n.º 46/183, expendeu-se o seguinte: ------


Considerando o pedido do A, em si mesmo, e os respectivos fundamentos, a sua pretensão em obter a condenação de todos os RR a pagar-lhe, solidariamente, uma indemnização estrutura-se, por um lado, quanto às 1ª e 2ª RR, na obrigação decorrente da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos, enquanto em relação à 3ª R (Novo Banco SA), apenas na alegada transferência para a mesma da responsabilidade (originária) do BES SA e, por sua vez, o fundamento da responsabilidade do Fundo de Resolução (4º R) pela satisfação de tal obrigação repousaria, simplesmente, no facto de, por força da supra aludida medida de resolução adoptada pelo Banco de Portugal, ser ele o único detentor do capital do Novo Banco.


Por outro lado, o alargamento dessa suposta responsabilidade solidária ao Banco de Portugal e à CMVM (5º e 6ª RR) já se estribaria, muito diferentemente, no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos actos cometidos no contexto da resolução do BES, nomeadamente, nas deliberações adoptadas, logo em 3-08-2014 (medida de resolução) e subsequentemente.


Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção e das respectivas causas de pedir resulta que o A acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (Novo Banco SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (BES SA).


Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do art. 1º da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art. 1º dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153º-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).


Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.


Especificamente quanto ao Fundo de Resolução, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do «Novo Banco» - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo Banco de Portugal, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento (dependente) da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adotadas (cf. art. 153º-C do citado RGICSF), ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do Banco de Portugal concernentes à medida de resolução tomada em relação ao BES no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.


Todavia, no que concerne a este R, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do Novo Banco - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal, deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.


É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4º do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª ed., pp. 253-254]) refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio». .


Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)].


Em suma, no caso concreto, apenas em parte concordamos com o ajuizado pela Relação de Lisboa, pois a configuração da acção feita pelo A mostra que, enquanto relativamente aos 1ª a 4º RR a questão em que se funda a obrigação de indemnizar solicitada é, essencialmente e apenas, de direito privado, já quanto aos 5º e 6ª RR está em apreço uma questão emergente de uma relação jurídica administrativa, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade.


Decorrendo do disposto no art.º 4.º n.º 1 al.ª f) do ETAF que a jurisdição administrativa é a competente para conhecer das ações para efetivação da “responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público”, não resta senão concluir que lhe compete conhecer da ação relativamente aos Réus Banco de Portugal e CMVM na qual o autor pretende efetivar alegada responsabilidade extracontratual ou aquiliana destas duas entidades públicas, emergente de alegado incumprimento ou cumprimento defeituoso dos respetivos deveres legais e estatutários de supervisão e vigilância. E que a jurisdição comum é a competente para conhecer da causa contra os demais Réus. Incluindo o Fundo de Resolução porque, não obstante também seja uma pessoa coletiva de direito público, a causa contra ele não se funda na de qualquer facto ilícito por tenha alegadamente praticado, mas, antes na qualidade de titular do capital do banco de transição4.


É certo que a ação vem intentada contra todos os réus peticionando-se a sua condenação solidária e que o art.º 4.º n.º 2 do ETAF atribuiu aos tribunais administrativos a competência para julgar ações e recursos contenciosos “nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”. Contudo essa competência exige a alegação e verificação daqueles pressupostos. O que não sucede no caso.


iv.


Em linha com a jurisprudência uniforme, reiterada e consolidada deste Tribunal dos Conflitos, formada e firmada na decisão de casos idênticos, conclui-se que é nos tribunais da jurisdição administrativa que recai a competência material para conhecer da vertente ação relativamente aos réus Banco de Portugal e CMVM e que pertence aos tribunais da jurisdição comum a competência material para conhecer da presente ação no que se refere ao Fundo de Resolução.


Termos em que o recurso(de revista) interposto pelo autor improcede na parte em que pugna pela atribuição aos tribunais da ordem judiciária comum da competência para conhecer do seu pedido de efetivação da responsabilidade e da consequente condenação dos réus Banco de Portugal e CMVM a indemniza-lo, procedendo no segmento em que impugna a decisão que declarou a incompetência do tribunal cível para conhecer a pretendida efetivação de alegada responsabilidade do Fundo de Resolução

f. Dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal dos Conflitos acorda em julgar: -----------------

a. Parcialmente improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido no segmento que ratificou a decisão que declarou a incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais judiciais para conhecer da vertente ação relativamente aos réus Banco de Portugal e CMVM; e -----------------

b. Parcialmente procedente o recurso, revogando-se o acórdão recorrido na parte em confirmou a declaração de incompetência absoluta, em razão da matéria, do juízo central cível recorrido para conhecer da ação relativamente ao réu Fundo de Resolução, devendo substituir-se por outro que revogue, esse segmento, da correspondente decisão da 1.ª instância.

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Sem custas por não serem devidas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 19 de junho de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.


*

1. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

2. Cfr. entre outros, o Acórdão de 21/11/2019, proferido no processo n.º 25/19, in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9ae2da753400cf1e802584bd00417543; Acórdão de 06/02/2020, proferido no processo n.º 22/19, in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5e6809388287ae6b802585140041de10; Acórdão de 25/06/2020, proferido no processo n.º 33/19, in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c2f476b0dd3cff498025859f004c3d3e;

3. Acórdão de 31/10/2019, proferido no processo n.º 3/19, in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d51a52eb1ceb1143802584a9004071d4; Acórdão de 05/03/2020, tirado no processo n.º 36/19, in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/60947ba399e1914c8025852a004dd776; Acórdão de 03/11/2020, proferido no processo n.º 16/20, in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/40b3ea8a94eb0e3e802586230045990e; Acórdão de 02/03/2021, proferido no processo n.º 60/19, in http://www.gde.mj.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4ebc7d7ca4662da280258692007ed07b; Acórdão de 07/02/2024, processo n.º 16/23, in https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b0137c8809fd3b9480258abe00573f64.

3 http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/416b94584764b7cc802583a6003cbf6b

4. Vejam-se o Acórdão de 25/06/2020 e de 31/10/2019, acima referidos em nota.