Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 0322/22.0BELRA.S1-CP |
| Data do Acordão: | 05/08/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | NUNO GONÇALVES |
| Descritores: | CONFLITO DE JURISDIÇÃO CONSULTA PREJUDICIAL |
| Sumário: | I - Compete aos tribunais da jurisdição comum, em razão da matéria, conhecer das ações para a cobrança dos créditos emergentes da prestação de cuidados de saúde pelo Serviço Nacional de Saúde a beneficiários da ADSE, de que está é responsável. II - O regime jurídico das injunções é aplicável à cobrança desses créditos. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33732 |
| Nº do Documento: | SAC202505080322 |
| Recorrente: | CENTRO HOSPITALAR DE LEIRIA, E.P.E. |
| Recorrido 1: | ADSE |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Consulta prejudicial
O Tribunal dos Conflitos acorda: ---------------------- ** a. Relatório: O Centro Hospitalar de Leiria, E.P.E. intentou, em 28/03/2022, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, ação administrativa, contra: ---- - Instituto de Proteção e Assistência na Doença, I. P. (ADSE, I.P.), formulando os seguintes pedidos: ---- “A) Ser o Réu/ADSE condenado a reconhecer que constitui sua obrigação o pagamento dos preços devidos pelos cuidados de saúde prestados aos seus beneficiários pelo A./CHL, até 01 de janeiro de 2011. B) Ser o R. condenado a pagar ao A. o montante de 123.230,11 € correspondente ao preço devido pelos cuidados de saúde por este prestado a beneficiários daquele, especificados em 54.º supra, acrescidos dos respetivos juros moratórios vencidos calculados nos termos do artigo 65.º e 66.º deste articulado, no montante de 24.646,00 €, num total de 147.876,11 € (cento e quarenta e sete mil oitocentos e setenta e seis euros e onze cêntimos), e bem assim dos juros vincendos até efetivo pagamento à taxa que se mostrar aplicável nos termos da lei.”. Alegou, em suma, ter prestado cuidados de saúde a beneficiários da ADSE durante o ano de 2009, sem que tivesse logrado receber o pagamento do correspondente preço. O réu, citado, contestou, excecionando a prescrição das dívidas em causa e impugnando os factos. O autor apresentou réplica. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, por despacho de 12/12/2022, suscitou oficiosamente a questão da exceção de incompetência material, oferecendo o contraditório às partes, tendo-se o autor pronunciado pela não verificação da aludida exceção. Tribunal que, por sentença de 17/01/2023, se declarou incompetente, em razão da matéria, para apreciar o pedido formulado na presente ação e absolveu o demandado da instância. Competência material que atribuiu aos tribunais da jurisdição comum. Sustentou, em síntese, que a relação material controvertida, tal como configurada na ação, é regulada pelo Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de junho, que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, como é o caso do autor. O autor, inconformado, interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul. Recurso que o Tribunal administrativo de 2.ª instância julgou não provido, mantendo a decisão recorrida. O autor requereu, então, e obteve deferimento da remessa do processo ao Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da comarca de Leiria. Recebidos aí os autos com distribuição ao Juiz ..., o Tribunal, por saneador-sentença de 15/11/2023, julgou procedente a exceção de prescrição invocada e, em consequência, absolveu o réu do pedido. Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação para a 2.ª instância dos tribunais comuns. O Tribunal da Relação de Coimbra, por despacho de 20/09/2024, decidiu suscitar a consulta prejudicial do Tribunal dos Conflitos, nos termos do art. 15.º, n.º 1, da Lei n.º 91/2029, de 4 de setembro. Baixados os autos à 1.ª instância, o Juízo Central Cível de Leiria - Juiz ... ordenou a remessa dos mesmos ao Tribunal dos Conflitos, para efeitos de consulta prejudicial. b. parecer do Ministério Público: No Tribunal dos Conflitos, o Digno Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro emitiu douto parecer em que, aderindo à fundamentação da jurisprudência que cita, pronuncia-se no sentido de a competência material para conhecer da presente ação ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum. c. As partes, notificadas para se pronunciar, querendo, nada vieram dizer. d. exame preliminar: No caso, um tribunal da jurisdição comum coloca, oficiosamente, ao Tribunal dos Conflitos uma consulta prejudicial pedindo que se pronuncie sobre qual é a jurisdição materialmente competente para conhecer da vertente ação Este Tribunal dos Conflitos é o competente para emitir a pedida pronúncia. Não há questões prévias que devam conhecer-se. d. objeto da consulta: Cumpre, assim, esclarecer qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer da vertente causa que o CHL, EPE intentou nestes autos contra a ADSE para obter desta o pagamento das quantias em que importou a prestação de cuidados hospitalares a beneficiários da R. e. fundamentação: i. da competência material: 1. pressuposto: A competência do tribunal é um pressuposto indispensável para que o juiz possa conhecer do mérito de uma causa. Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”2. E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza jurídica dos sujeitos processuais. Sendo questão “a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”3. 2. fixação: Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 -, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”. Norma que o ETAF praticamente reproduz (“A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.) Acrescentando o n.º 2 que Existindo, no mesmo processo, decisões divergentes sobre questão de competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior.”. 3. repartição: Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência material residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. A LOSJ, fundando-se nas reconhecidas vantagens advenientes da especialização dos tribunais e juízes, reparte a competência ratione materiae dos tribunais da jurisdição comum atribuindo-a, segundo o critério da natureza substancial das causas, a juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada. Atribuindo aos Juízos do trabalho a competência, em matéria cível, para conhecer das questões, ações, processos, execuções e recursos contraordenacionais catalogados no art.º 126.º daquela Lei. No que para aqui poderia relevar, atribui-lhe competência para conhecer “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado”. Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» O âmbito da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alíneas j) e o) que lhes cabe, (no que para aqui poderia convocar-se) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:-------- “j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; e o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. (…)”. O A. ampara a ação fundando-a na invocação de relações jurídicas entre entidades administrativas. ii. relações jurídicas administrativas: Relação jurídica administrativa é a “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…”) “É aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”4 Considerando-se como tal para efeitos de delimitação da competência da jurisdição as “relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) (…) em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”5. iii. natureza jurídica das partes 1. o autor: O CHL de Leiria é uma instituição integrada no Serviço Nacional de Saúde, criada pelo Decreto-Lei n.º 30/2011, de 02 de março, com a natureza de entidade pública empresarial. É, pois, uma entidade publica empresarial que se rege pelo regime jurídico e estatutos aplicáveis às unidades de saúde do serviço nacional de saúde com a natureza de Entidades Públicas Empresariais, atualmente constante do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro e, subsidiariamente, pelo regime jurídico aplicável às entidades públicas empresariais com as especificidades constantes do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 03 de outubro. É financiado nos termos da base XXXIII da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, alterada pela Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro. Tem competência exclusiva para cobraras receitas e taxas provenientes da sua atividade. O artigo 23.º do DL n.º 133/2013, com o proémio de “Tribunais competentes”, estatui: -------- “1 - Para efeitos de determinação da competência para o julgamento dos litígios respeitantes a atos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo anterior, as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas. 2 - Nos demais litígios, seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.” 2. a ré: A Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado (ADSE) foi criada pelo Decreto-Lei 45.002, de 27/04/19636. Tem como atribuições, entre outras, as de “organizar, implementar, gerir e controlar o sistema de benefícios de saúde dos seus beneficiários” – art. 3.º n.º 2 al.ª a) do DL n.º 7/2017 de 9 de janeiro. No que para aqui releva, a ADSE, IP é um subsistema de saúde, nos termos e para os efeitos do artigo 23º, n.º 1, alínea b), do Estatuto do SNS, respondendo diretamente pelas despesas que beneficiários seus ocasionem quando utilizem, para obtenção de cuidados de saúde, os estabelecimentos do serviço nacional de saúde. f. cobrança de créditos hospitalares do SNS: Desde longa data que se instituiu um regime dedicado para a cobrança dos créditos emergentes da prestação de cuidados de saúde, iniciado co a Lei 1981 de 3 de abril que, no artigo 6.º, atribuía força de título executivo às certidões de dívida pelo tratamento de doentes passadas pelos Hospitais Civis de Lisboa, prosseguindo com o Decreto-Lei n.º 46301 de 27 de abril de 1965 que, no art.º 41.º n.º 1 estabelecia que “A responsabilidade pelos encargos devidos pela assistência a que se refere este diploma, se não forem pagos voluntariamente, será declarada pelos tribunais quando lhes cumpra decidir sobre as consequências do facto determinante da assistência (…)”. Diploma substituído pelo regime instituído pelo Decreto-lei n.º 194/92, de 8 de setembro, que veio atribuir a natureza de título executivo às certidões de dívidas emitidas pelos hospitais que, no artigo 10.º, generalizou o regime de cobrança dos créditos em referência a todas as unidades públicas de saúde estabelecendo que “as acções de execução por dívida (…) são instauradas no tribunal de comarca em que se encontre sediada a entidade exequente”. Norma atributiva de competência que, apenas no que respeita à competência territorial, era mantida no artigo 7.º da redação originária do vigente regime constante do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de junho que disciplina a cobrança de créditos hospitalares do SNS, mas que o Tribunal Constitucional pelo Acórdão n.º 123/2004 declarou declarada inconstitucional (inconstitucionalidade orgânica) com força obrigatória geral. Diploma que com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 64-B/11 de 30 de dezembro continua a conter o regime jurídico especial da cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados créditos, dispondo no artigo. 1.º, n.º 2 que “Para efeitos do presente diploma, a realização das prestações de saúde consideram-se feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, sendo aplicável o regime jurídico das injunções.”. Estabelecendo no artigo 4.º n.º 1 que “As entidades a que se referem as alíneas b), c) e d) do n.º 1 do artigo 23.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, podem ser directamente demandadas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde.”. De acordo com o artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro, entretanto, revogado pelo Decreto-Lei n.º 52/2022, de 04-08), respondem pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde prestados no quadro do SNS, além do Estado, “b) Os subsistemas de saúde, neles incluídas as instituições particulares de solidariedade social, nos termos dos seus diplomas orgânicos ou estatutários; (…)”. Flui da análise conjugada dos diplomas citados que com o regime especial da cobrança dos créditos hospitalares é instrumento complementar do sistema de financiamento do SNS tendo como destinatárias todas as entidades que, legal ou contratualmente, assumam a responsabilidade pelo pagamento de cuidados de saúde. g. apreciação: No caso, o autor funda a sua pretensão na circunstância de ter prestado cuidados de saúde a beneficiários da ADSE durante o ano de 2009, sem que tivesse logrado receber o pagamento do preço devido. Ainda que peticione a condenação do réu a reconhecer que o pagamento do preço devido pela prestação daqueles cuidados, o que o autor verdadeiramente pretende é a condenação da Ré a pagar-lhe € 147.875,11, referente a faturas de dívidas hospitalares resultantes da prestação de cuidados de saúde que prestou a beneficiários da ADSE, alegando que, até 01/01/2011, era sobre a mesma que impendia essa obrigação. Como se refere na decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, de 17/01/2023, resulta da configuração da ação que o pedido principal formulado nos autos é o de condenação da ré no pagamento da quantia peticionada “e não a definição do regime legal que qualifica a Entidade Demandada como entidade responsável pelo pagamento peticionado”. O Tribunal dos Conflitos, versando sobre questão idêntica, na fundamentação do Acórdão do de 30/05/2019, prolatado no processo n.º 08/197, expendeu: “Aliás, como se consigna no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 07-03-2006 (…), , o litígio em questão não integra uma relação jurídica entre pessoas e direito público desenvolvida sob a égide do direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não se enquadra na previsão de qualquer das alíneas do artigo 4.º do E.T.A.F. E, no acórdão deste Tribunal de 14-03-2006 (Proc. n.º 021/05): «Só na ausência de disposição legal expressa, atributiva de competência «ex vi legis», é que a competência material dos tribunais - tanto a que os diferencia dentro da mesma ordem jurisdicional, como a que os distingue segundo jurisdições diversas - se afere pelo pedido formulado na acção que esteja em presença, caso, aliás, em que a natureza desse pedido deve ser esclarecida ou iluminada pela causa de pedir de que ele dimane. Assim, é prioritário determinar se existe uma qualquer norma que imediata e irresistivelmente defina qual é a jurisdição ou o tribunal competente para resolver o litígio. E, tendo em conta a indiscutível inclusão do hospital autor no denominado serviço nacional de saúde - pois essa inclusão, que era evidente aquando da prestação dos «tratamentos médicos» referidos na acção dos autos em virtude de o hospital ser então uma pessoa colectiva de direito público, persistiu com a transformação dele em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (cfr. os arts. 1º e 4º do DL n.º 297/2002, de 11/12) - somos imediatamente remetidos para a análise do DL n.º 218/99, de 15/6, já que este diploma, como consta do seu art. 1º, veio estabelecer «o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados». O DL n.º 218/99 revogou e substituiu o DL n.º 194/92, de 8/9 - diploma em que se atribuíra força executiva às certidões de dívida emanadas das instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de saúde e se determinara que as correspondentes acções executivas seriam «instauradas no tribunal da comarca» em que se encontrasse sediada a entidade exequente (cfr. os arts. 1º e 10º). Portanto, o DL n.º 194/92 excluía qualquer hipótese de os processos daquele tipo correrem nos tribunais administrativos. Logo no preâmbulo do DL n.º 218/99, o legislador anunciou o intuito de, através da «lex nova», alterar «as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares», constantes do decreto-lei revogado; mas, como do mesmo preâmbulo eloquentemente flui, essa alteração de regras centrava-se na substituição da acção executiva pela declarativa, mudança essa justificada pelo facto de se haver entretanto constatado que a força executiva conferida às sobreditas certidões não trouxera as pretendidas celeridade e simplicidade processuais. Ora, se a mencionada «alteração das regras processuais» também passasse por uma redefinição dos tribunais e da jurisdição competentes para o conhecimento das acções previstas no diploma, seria natural que o preâmbulo se lhe referisse - pois dificilmente se compreenderia que uma modificação com essa amplitude permanecesse silenciada nas longas considerações preambulares que o legislador teceu. Portanto, o preâmbulo do DL n.º 218/99, apesar de não dispor, «a se», de força normativa, constitui um primeiro e poderoso indício de que o diploma deve ser interpretado no sentido de que nada inovou quanto à competência dos tribunais que apreciariam as chamadas dívidas hospitalares - os quais continuariam a ser os da jurisdição comum. O art. 7º do DL n.º 218/99, cuja epígrafe consiste na «competência territorial», estabeleceu que as acções previstas no diploma «devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora». Desapareceu, assim, a alusão ao «tribunal da comarca», que constava do art. 10º do DL n.º 194/92. Mas esta singela mudança não suporta a ideia extrema de que o legislador, ao eliminar a referência à «comarca», quis transferir a competência da ordem dos tribunais judiciais para a jurisdição administrativa. Se a norma assim fosse interpretada, olvidar-se-ia a proporcionalidade que sempre deve existir entre os efeitos e as respectivas causas, entrevendo-se numa minudência literal algo que claramente excede o seu típico horizonte de significação. Assim, a circunstância e o aludido art. 7º não referir que o «tribunal» aí em causa é o «da comarca» deve ser encarada segundo uma justa e equilibrada medida - a de que se trata de um mero «modus dicendi», ainda fiel à linha pretérita de se atribuir aos tribunais judiciais a competência para o conhecimento dos pleitos previstos no diploma. Por outro lado, o art. 6º do DL n.º 218/99 prevê que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde possam «constituir-se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação dos cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas». Esta possibilidade de se formular um pedido cível fundado nas dívidas hospitalares aponta inexoravelmente para os tribunais comuns, onde correm os processos penais. Ora, seria extravagante e anómalo que a apreciação dos pedidos de condenação por essas dívidas pudesse caber a duas ordens jurisdicionais diferentes - à jurisdição comum, se os devedores fossem demandados naquele processo criminal, e à jurisdição administrativa, se o fossem fora dele - já que a repartição das matérias entre jurisdições diversas funda-se na natureza dos assuntos em presença, e não em aspectos acidentais como sucederia com a existência ou a falta de um processo penal. Deste modo, o mencionado art. 6° vem corroborar aquilo que já indicavam o preâmbulo do diploma e o teor do seu art. 7º - que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que compete conhecer das acções em que os hospitais da rede pública intentem cobrar as dívidas resultantes dos cuidados de saúde por si prestados». Aí se concluindo que essa digressão histórica «vem confirmar a ideia de que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que incumbe, à luz do ora vigente DL n.º 218/99, conhecer dos pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares, em cujo género se inscreve a acção a que se refere o presente conflito». No mesmo sentido, acompanhando o acórdão que vem de se citar, referencie-se o acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 19-10-2017 (Proc. n.º 41/17): «É da competência da jurisdição comum o conhecimento das acções destinadas à efectivação das responsabilidades dos utentes das entidades hospitalares integradas no Sistema Nacional de Saúde, por cuidados ali prestados, por força do disposto no artigo 1º, nº2 do DL 218/99 de 15 de Junho, sendo aplicável o regime jurídico das injunções».”. Como assinala o acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2022, processo n.º 025/228: “(…) Esta questão (pagamento de dívidas hospitalares em consequência da prestação de cuidados de saúde), como refere o TAF de Leiria, já foi conhecida neste Tribunal dos Conflitos, nomeadamente nos Acórdãos de 07.03.2006, Proc. nº 022/05, de 14.03.2006, Proc. nº 021/15, de 19.10.2017, proferido no Proc. nº 041/17, de 30.05.2019, Proc. nº 08/19, de 06.06.2019, Proc. nº 06/19, de 31.10.2019, Proc. nº 024/19 e de 21.11.2019, Proc. nº 029/19, no sentido de que resulta do DL nº 218/99, que compete à jurisdição comum conhecer das acções em que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde visem obter a condenação dos réus no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de saúde por si prestados.”. No caso está em causa a cobrança de uma dívida que o autor, na qualidade de credor e enquanto instituição integrada no Sistema Nacional de Saúde, pretende receber da ré, a título de pagamento de cuidados de saúde por si prestados a beneficiários da ADSE. Trata-se de uma relação jurídica de prestação de serviços, firmada no âmbito da gestão privada da entidade credora e não de uma relação jurídica estabelecida sob a esfera do direito público. Resulta do exposto que, como se expendeu no Parecer n.º 48/98, de 4 de janeiro, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, “nenhum motivo há para excluir do regime assim definido as dívidas contraídas pela ADSE ou por qualquer outra entidade pública que se torne responsável perante o SNS por despesas de saúde em relação a certos grupos de utentes. O preâmbulo deste diploma, ao justificar as medidas legislativas que se pretendiam introduzir – e que passam pela exequibilidade das certidões de dívida e pelo alargamento do prazo de prescrição – expressamente se refere ao sistema de financiamento do SNS, dando realce à norma da Base XXXIII, nº 2, alínea b), da Lei de Bases da Saúde, que prevê que os serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde possam cobrar «o pagamento de cuidados de saúde por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras»9. Assim, considerando a matéria em causa nos autos e visto o regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 218/99, conclui-se que a competência material para o julgamento da presente causa pertence à jurisdição comum e não à jurisdição administrativa. h. dispositivo: Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos, julgando a vertente consulta prejudicial de jurisdição, pronuncia-se pela atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição comum e, concretamente, ao Juízo cível do Tribunal judicial da comarca de Leira para conhecer de vertente causa intentada pelo CHL EPE contra a ADSE IP para cobrança de créditos pela prestação de servições hospitalares a beneficiários da ré e, para conhecer do recurso interposto nos autos, ao Tribunal da Relação de Coimbra. Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. Lisboa, 8 de maio de 2025. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. * 1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18. 2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pag. 91. 4. Freitas do Amaral in “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439. 5. José Carlos Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa”, 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49. 6. https://dre.tretas.org/dre/19091/decreto-lei-45002-de-27-de-abril 9. Publicação: Diário da República n.º 2/2000, Série II de 2000-01-04. |