Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0710/22.1BEPRT
Data do Acordão:11/27/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
POSTE DE SUPORTE
LINHAS ELÉCTRICAS
CONCESSIONÁRIA
Sumário:É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de questão respeitante à colocação de um poste de suporte de linhas eléctricas por fazer parte das atribuições de serviço público da concessionária, no exercício de poderes administrativos.
Nº Convencional:JSTA000P32863
Nº do Documento:SAC202411270710
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:A... S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 710/22.1BEPRT

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA e mulher BB, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto acção contra A..., S.A., formulando os seguintes pedidos:
1. Reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio descrito nos artigos 8º e 9º da presente peça processual.
2. Abster-se da prática de atos futuros que violem o referido direito de propriedade dos Autores sobre o seu prédio.
3. Proceder à remoção do poste de eletricidade instalado no prédio dos Autores e ao desvio das linhas de transporte de energia elétrica que atravessam o prédio dos Autores;
4. Proceder ao pagamento de uma indemnização pelos danos causados pela ocupação indevida do prédio dos Autores, no valo de € 24 000,00 (vinte e nove mil euros).
5. Pagar aos Autores o valor da desvalorização do seu prédio, com a colocação do poste elétrico, descrito acima, que deve ser computada num valor, nunca inferior a 30% do valor atual do prédio, a ser liquidado em execução de sentença,
6. Pagar aos Autores a quantia diária de € 200,00 por cada dia que tal poste e respetivas linhas se mantenham colocados e atravessem o prédio dos Autores, a título de sanção pecuniária compulsória.
7. Pagar aos AA. os juros vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento.
8. Quando assim não se entenda, deve a Ré ser condenada no pagamento de uma renda mensal aos Autores num valor nunca inferior a € 60,00 (sessenta euros) pela ocupação do prédio dos Autores com o poste e as linhas de distribuição elétrica.
Os Autores alegam, em síntese, que são legítimos proprietários do prédio identificado nos artigos 8º e 9º da petição inicial e que há cerca de 27 anos foram confrontados com a ocupação do seu prédio pela Ré, pelo qual esta fez passar várias linhas de transporte de energia e nele instalou um poste para as segurar, sem a autorização e consentimento dos Autores, o que lhes provocou e provoca prejuízos.
Por sentença proferida em 17.04.2023 foram declarados habilitados, por sucessão, o cônjuge, BB, e seus três filhos, CC, DD (Cabeça de casal) e EE, para, na posição do Autor falecido, prosseguirem com os autos.
Suscitada oficiosamente a excepção dilatória da incompetência material absoluta da jurisdição administrativa e fiscal, os Autores não se pronunciaram sobre a incompetência dos tribunais administrativos, limitando-se a afirmar que se assim o Tribunal entender irá existir uma situação de conflito negativo de jurisdição, cuja resolução deve ser suscitada oficiosamente junto presidente do tribunal competente para decidir.
O TAF do Porto - Juízo Administrativo Comum, proferiu sentença em 06.05.2024 a julgar o Tribunal materialmente incompetente para apreciar e decidir a acção e absolveu a Ré da instância.
Em acção anteriormente intentada no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, Juiz 7, [Proc. nº 1675/20.0T8GDM], foi proferida sentença em 25.05.2021 a julgar aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por tal competência pertencer aos tribunais administrativos, e a absolver a Ré da instância.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF do Porto, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
Em resposta os Autores vieram dizer que “embora tenham preferência pelo Tribunal Judicial, para dirimir o litígio entre as partes (…), não se opõem a que seja o Tribunal Administrativo o competente para o efeito, caso assim se entenda”.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para o julgamento da acção ao tribunal da jurisdição administrativa, mais precisamente ao TAF do Porto.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Juízo Administrativo Comum.
Entendeu o Juízo Central Cível do Porto ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio por considerar que: “Na situação dos autos e muito embora os autores peticionem a condenação da ré a reconhecer que os mesmos são os legítimos proprietários do prédio em causa, a questão da titularidade do prédio não é o verdadeiro objecto do litígio.
Com efeito, atentos os fundamentos da acção, tal como foram externados na respectiva petição inicial, os autores pretendem reagir e defender-se face aos actos materiais alegadamente levados a cabo pela ré de forma ilegal.
Veja-se que a actividade de distribuição de energia que é prosseguida pela ora ré, B..., SA, na qualidade de concessionária, (e, consequentemente, as operações materiais em que se traduzem os trabalhos de colocação de um poste de electricidade) não podem deixar de se ter como actos de gestão pública porque aquilo que visam é a prossecução de um interesse público e porque são regidas por normas - as normas a que a ré alude na sua contestação - que lhe atribuem (verdadeiros) poderes de autoridade.
É, pois, a legalidade da actuação da ré como concessionária que se discute na presente acção, conforme, aliás, os próprios autores reconhecem na resposta à excepção, o que, pelo menos, desde a revisão do ETAF de 2015, a insere expressamente no âmbito da competência dos tribunais administrativos.
Deste modo, este tribunal não é materialmente competente para conhecer do presente litígio.”.
Por sua vez o TAF do Porto também se declarou incompetente em razão da matéria. Considerou que: “(…) ainda que nos termos do art.º 4.º do ETAF, conjugado com o art.º 212.º n.º 3 da CRP, a ré possua a qualidade de concessionária na exploração de transporte de energia elétrica, o litigio que os autores pretendem ver solucionado não contende com o regime da concessão nem as obrigações, de serviço público, que impendem sobre a Ré concessionária, mas antes contende com a alegada violação de determinados direitos dos autores, tais como da propriedade, e o respetivo valor económico.
Note-se que os autores almejam é que a Ré concessionária seja condenada no pagamento de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que causou e que são decorrentes do exercício da sua atividade de distribuição de energia elétrica, não tendo sido invocado, por aqueles, qualquer violação do regime de concessão.
O que está em causa é somente a sua ação lesiva e danosa alegadamente causada por ocasião e como efeito da implantação do poste de eletricidade na propriedade dos autores, tanto em relação ao património como em relação à sua pessoa.
Ou seja, o que está em causa é uma atuação da ré à margem daqueles atos e normas, o que permite concluir que o litígio delimitado pelos autores não diz respeito a uma atuação que contenda com a aplicação de normas de direito público.
E tal direito a uma indemnização está previsto em legislação especial e é apurada em função do regime do Código da Expropriações.
Efetivamente, o apuramento de indemnizações decorrentes quer da desvalorização de bens quer da oneração de direitos dos particulares é da competência dos Tribunais Comuns.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção os Autores demandam a Ré questionando a legalidade da instalação e manutenção, no prédio de que são proprietários, de um poste de suporte de linhas de baixa tensão sem o seu consentimento e sem expropriação ou constituição de servidão, violando o seu direito de propriedade. E, em consequência dessa actuação da Ré, pedem a sua condenação a proceder à remoção do poste, ao desvio das linhas de transporte de energia elétrica que atravessam o prédio e à reparação dos prejuízos causados.
Em situação idêntica decidiu este Tribunal dos Conflitos pela competência dos tribunais administrativos (cfr. Acórdãos de 07.10.2012, Proc. 03/12, de 03.12.2015, Proc. 022/15 e de 23.03.2022, Proc. 024/20, disponíveis em www.dgsi.pt).
Afirmou-se no Acórdão deste Tribunal de 07.10.2012, Proc. 03/12:
Tal como se sucedia no caso apreciado pelo acórdão deste Tribunal dos Conflitos, no seu acórdão de 26 de Janeiro de 2012 (www.dgsi.pt, proc. n° 07/11), “o que está em causa na presente acção não é o reconhecimento da propriedade do prédio”, que ninguém contesta; mas sim, agora, determinar se, ao instalar o poste na propriedade do autor, a ré actuou ou não de acordo com a lei, no âmbito do regime (administrativo) aplicável, exercendo poderes (administrativos) que lhe são conferidos enquanto concessionária do serviço público de distribuição eléctrica.
É pois a legalidade da sua actuação como concessionária que se discute na presente acção, o que a insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos, nos termos do disposto na al. d) do n° 1 do artigo 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo o qual “1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (...) d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
6. O recorrente afirma ainda que “está em causa” apenas “a instalação do poste de electricidade”, à qual não está subjacente “qualquer acto administrativo”. No entanto, e com as devidas adaptações impostas pela circunstância de, aqui, se tratar de uma concessionária de um serviço público, vale o que se escreveu no acórdão de 2 de Março de 2011 (www.dgsi.pt, proc. n° 09/10): “não pode (...) afirmar-se que o exercício da função administrativa se resume à prática de actos administrativos de autoridade. A actuação da Administração Pública compreende também actuações materiais e muitas delas não correspondem necessariamente à execução de um acto administrativo. Essas actuações não deixam de ter natureza administrativa pelo facto de se apresentarem sob a forma de simples operações materiais. O que é necessário é que estejam enquadradas nas funções legais da entidade respectiva. Só uma voie de fait — ou seja, uma actuação material totalmente à margem das atribuições e competências da ré — abriria caminho à competência dos tribunais comuns.”.
A Ré é concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica e os Autores não alegam que os actos praticados pela Ré tenham tido lugar à margem das suas atribuições e competências.
Assim, também no presente caso, a colocação de um poste de suporte das linhas eléctricas faz parte das atribuições de serviço público da concessionária de distribuição de energia eléctrica, pelo que está aqui em causa a licitude da actuação de uma concessionária, ainda que de mera actuação material, no exercício de poderes administrativos.
Os Autores invocam a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em causa para fundamentar o pedido principal que é a condenação da Ré a remover, de forma definitiva, o poste instalado no seu terreno, desviar as linhas de transporte de energia eléctrica e no consequente pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais. O pedido de reconhecimento do direito de propriedade é, no caso concreto, um pedido instrumental e pressuposto do pedido principal.
Deste modo, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. d), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que a competência material deve ser atribuída aos tribunais administrativos e fiscais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o TAF do Porto, Juízo Administrativo Comum.
Sem custas.

Lisboa, 27 de Novembro de 2024. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.