Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 0240/20.6BEPNF-CP |
| Data do Acordão: | 07/10/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | TERESA DE SOUSA |
| Descritores: | CONSULTA PREJUDICIAL JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL |
| Sumário: | Compete à Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer de litígio que, tal como é configurado pelo Autor, a causa de pedir não assenta em qualquer erro atribuído a uma decisão judicial, mas antes na violação do dever de guarda e conservação do veículo apreendido, bem como na demora na devolução do mesmo, de que terão resultado danos indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual. |
| Nº Convencional: | JSTA000P34106 |
| Nº do Documento: | SAC202507100240 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Consulta Prejudicial nº 240/20.6BEPNF Acordam no Tribunal dos Conflitos Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel (doravante TAF de Penafiel) de 11.03.2025, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15º, nº 1, da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que a questão da jurisdição competente para conhecer da causa suscita fundadas dúvidas. AA intentou acção administrativa comum contra o Estado Português e o Ministério da Administração Interna pedindo a condenação dos Réus no pagamento da quantia de 38.672,04 €, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento. Alegou, em síntese, ser proprietário de um veículo apreendido em 12.05.2005 à ordem de inquérito criminal, que deu origem a processo crime no Juízo Central Criminal de Penafiel. Na altura de apreensão a viatura era conduzida pelo seu filho, que veio a ser condenado naquele processo. O Autor, que figurou tão-só como interveniente acidental naquele processo, dirigiu, ao longo de 12 anos e por várias vezes, requerimentos ao Tribunal a solicitar a restituição da viatura. Por fim, por despacho de 21.11.2016, foi ordenado o levantamento da viatura pelo Autor, junto do posto territorial da GNR em Penafiel. Em 10.03.2017, o Autor deslocou-se ao local, onde constatou que a viatura não estava aparcada, mas depositada em cima de outro automóvel, num terreno pertencente à Camara Municipal de Penafiel, em terra batida e a céu aberto, e nessa mesma data “tomou conhecimento do estado em que a sua viatura se encontrava, com estragos muito para além da degradação normal e por vandalismo”. Salienta que, no momento da apreensão, o veículo encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento e conservação. Em virtude do estado de degradação do veículo, o Autor não pode levar o veículo pelos seus próprios meios e teve de contratar os serviços de um camião/grua. Segundo alega, “tentou obter orçamento para reparar o veículo, contudo, a todos os locais onde se dirigiu foi-lhe dito que, uma vez que apenas tinha “a carcaça”, comprar as peças com vista à reparação seria tão, ou mais, oneroso como proceder à compra de um novo”. Por essa razão, mandou abater o veículo. Alega, ainda, que desde a data da apreensão do veículo até ao respectivo levantamento este esteve sempre sob a guarda da GNR de Penafiel. Fundamenta a sua pretensão indemnizatória “quer na violação do dever de manutenção que recai sobre os Réus (Estado e seus organismos), quanto à tutela do bem apreendido no âmbito do referido processo crime, quer na inobservância de normas de direito substantivo e processual penal que tiveram como consequência que o veículo tivesse ficado apreendido para além do tempo que se considera necessário para efeitos de recolha de prova, pelo que tais violações levam à responsabilização civil extracontratual do Estado”. Em sede de contestação, o Ministério Público, em representação do Estado, além do mais, suscitou a incompetência material do Tribunal para o conhecimento da acção. Na réplica, o Autor defendeu serem os tribunais administrativos os competentes para apreciação da acção proposta pois “o que se pretende com a p. demanda é a comprovação da existência dos pressupostos da responsabilidade civil – o que constitui a causa de pedir - com vista ao arbitramento de uma indemnização pelos danos decorrentes do deficiente funcionamento da administração da justiça, que, no caso, se espelha na omissão do dever de guarda do veículo apreendido, bem como no tempo que o A. ficou privado do referido veículo – o que consubstancia o pedido” e que “em momento algum o A. se insurgiu contra ou invocou como causa de pedir qualquer erro judiciário relativo à decisão emergente da função de julgar, designadamente, contra a ordem de apreensão do veículo, ou contra qualquer decisão própria do exercício específico da função jurisdicional, o que, aí sim, justificaria a exclusão da competência deste tribunal(…)”. Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, nos termos ao nº 1 do art. 15º da Lei nº 91/2019, face ao pedido de consulta prejudicial, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma. O Autor veio responder sustentando que “com as omissões invocadas não se visa impugnar quaisquer ato decisórios, qualquer reapreciação de conteúdo decisório, mas antes demonstrar que o Estado, enquanto entidade responsável pelo regular funcionamento do serviço de justiça, incumpriu deveres de que estava incumbido, o que inclui, obviamente, a não observância de normas legais” e “que tais omissões, que se traduziram num atraso de 12 anos e na destruição do bem apreendido, consubstanciam um funcionamento anormal do serviço público da justiça e fundamento bastante para o reconhecimento da competência da jurisdição administrativa para arbitrar a indemnização justa para aquele que sofreu as respetivas consequências”. O Comando-Geral da GNR veio defender a competência dos tribunais da jurisdição comum para a apreciação do litígio. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material à jurisdição administrativa. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF]. A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 8/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo». Em matéria de responsabilidade civil extracontratual, no âmbito da jurisdição administrativa, releva para o caso a alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF que estabelece competir aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto: “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;”. Aqui relevantes, o mesmo artigo elenca as exclusões do âmbito da jurisdição: o nº 3 reporta-se exclusivamente aos “litígios que tenham por objecto a impugnação” de “atos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões” - alínea c), e o nº 4 exclui “a apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso” - alínea a). Relacionado com esta regra de competência, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, regula nos arts. 12º a 14º o regime substantivo da responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, distinguindo entre responsabilidade pela administração da justiça e a responsabilidade por erro judiciário. Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pelo Autor se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal ou se estamos perante um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição e, portanto, excluída da apreciação pelos tribunais administrativos e fiscais. Como escreve Carlos Cadilha, em anotação ao art. 12º da referida Lei: “a expressão administração da justiça é aqui utilizada em sentido amplo, abrangendo quer os actos materialmente administrativos dos serviços da justiça (assim se compreendendo que aí se faça exemplificativamente referência aos danos resultantes da violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável), quer os actos jurisdicionais em sentido próprio. Por conseguinte, a remissão para o regime de responsabilidade civil da função administrativa engloba, à partida, quaisquer direitos indemnizatórios por danos derivados do exercício da função jurisdicional lato sensu (…)” (cfr. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, pág. 196). Assim, “A competência da jurisdição administrativa compreende todas as acções de responsabilidade por actos e omissões da função jurisdicional que se fundem na (má) administração da justiça, no seu deficiente funcionamento, «designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», seja qual for a jurisdição a que pertença o tribunal em causa. (…) Diversamente, quando a responsabilidade por acto da função jurisdicional se fundar em erro judiciário, em erro evidente na determinação, interpretação ou aplicação dos factos ou do Direito — ou, numa outra fórmula, quando respeitar aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais “manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto” -, a jurisdição administrativa só é competente se tal erro provier de um tribunal administrativo [alínea a) do art. 4.°/3 do ETAF, a contrario]” (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, pág. 60). José Carlos Vieira de Andrade ensina que “deve considerar-se incluída na competência dos tribunais administrativos (…) o conhecimento das acções de responsabilidade por danos causados pelos actos de natureza administrativa (do juiz, do MP e das autoridades policiais) relativos ao inquérito e à instrução criminais e ao exercício da acção penal – isto apesar de a impugnação desses actos se fazer perante os tribunais judiciais.” (cfr. A Justiça Administrativa, Lições, 2017, 16ª ed., pág. 111). Neste sentido decidiu-se no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 10.03.2011, Proc. nº 13/10 [por referência ao acórdão deste Tribunal de 29.11.2006, Proc. nº 03/05], “hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à especifica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001, Conflito nº 294, e de 21-02-06, Conflito nº 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. nº 38.474, in AP DR de 31-8-98, 1095; de 15.10.98, Proc. nº 36.811; de 12.10.2000, Proc. nº 45.862, in AP DR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.º 46.313, in AP DR de 12-2-2003, 7378; e de 22-05-2003, Proc. n.º 532/03)”. Ora, não obstante, estar em causa uma apreensão realizada no âmbito de um processo de inquérito criminal, a acção em causa não visa a impugnação de qualquer acto relativo ao inquérito e à acção penal, de forma a poder ser excluída do âmbito da jurisdição administrativa ao abrigo da alínea c) do nº 3 do art. 4º do ETAF, nem nela é alegada a existência de um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outra ordem de jurisdição. De facto, tal como a acção é configurada pelo Autor, a causa de pedir não assenta em qualquer erro atribuído a uma decisão judicial, mas antes na violação do dever de guarda e conservação do veículo apreendido, bem como na demora na devolução do mesmo, de que terão resultado danos indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual. Assim, atendendo à relação material controvertida tal como configurada pelo Autor, tem de concluir-se que incumbe aos tribunais administrativos a apreciação da acção intentada. Pelo exposto, e nos termos do disposto no artigo 17º da Lei nº 91/2019, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal, no caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, conhecer da presente acção. Lisboa, 10 de Julho de 2025. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Nuno António Gonçalves. |