Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 0172/23.6T8MLG.S1 |
| Data do Acordão: | 06/19/2024 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | NUNO GONÇALVES |
| Descritores: | CONFLITO DE JURISDIÇÃO |
| Sumário: | Compete ao tribunal da jurisdição comum conhecer da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que coimou o recorrente pela prática de uma contraordenação consistente no incumprimento da imposição legal de solicitar ao município a ligação de edifício de habitação à rede de distribuição pública de água. |
| Nº Convencional: | JSTA000P32416 |
| Nº do Documento: | SAC202406190172 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | MINISTÉRIO PÚBLICO |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | *
Conflito negativo de competência ** O Tribunal dos Conflitos acorda: ---------------------- ** a. Relatório: No do processo de contraordenação com o n.º 19/2020, o Presidente da Câmara Municipal de ..., por decisão de 29/06/2023, aplicou ao ora recorrente AA, uma coima de € 1000,00 pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos arts. 74.º, n.º 1, al. a), e 16.º, n.º 1, do Regulamento Municipal n.º 220/2016, de 4 de março (Regulamento de Serviço de Abastecimento Público de Água do Município de ...), por incumprimento da imposição legal de solicitar, junto do Balcão Único da Câmara Municipal de ..., a ligação do prédio urbano de que é proprietário à rede de distribuição pública de água. Notificado, o ora recorrente apresentou impugnação judicial daquela decisão administrativa, dirigindo-a ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. O processo com a impugnação foi remetido pela entidade administrativa, o Município de ... ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. O Ministério Público junto do TAF de Braga, por despacho de 07/09/2023, determinou a remessa dos autos ao Ministério Público junto do Juízo de competência genérica de Melgaço. Em 18/09/2023 o Ministério Público junto do Juízo de competência genérica de Melgaço – Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo - fez os autos presentes a esse Tribunal, nos termos do art. 62.º, n.º 1, parte final, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro. O Juízo de competência genérica de Melgaço, por despacho de 09/10/2023, ordenou a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, por ser aquele a quem a impugnação judicial foi dirigida. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, por sentença de 21/11/2023, julgou-se materialmente incompetente para decidir o presente litígio, atribuindo a competência ao Juízo de Competência Genérica de Melgaço. Devolvido os autos, o Juízo de Competência Genérica de Melgaço, por sentença de 10/02/2024, julgou-se materialmente incompetente para a tramitação do presente recurso de contraordenação. Mais determinou a remessa do processo ao Tribunal dos Conflitos, após trânsito, pedindo, oficiosamente, para resolução do conflito negativo de jurisdição assim surgido nos autos. b. parecer do Ministério Público: O Digno Procurador-Geral Adjunto na vista a que alude o n.º 4 do art. 11.º da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro, emitiu parecer no sentido de o conflito se dirimir, com a atribuição da competência material para conhecer da impugnação judicial em causa ao Juízo de Competência Genérica de Melgaço. c. exame preliminar: No caso, dois tribunais, - um da ordem comum, o outro da ordem administrativa – declaram-se incompetentes em razão da matéria para conhecer e julgar a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que coimou o recorrente. O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição Este Tribunal é o competente para a resolução do conflito em questão. Não há questões prévias que devam conhecer-se. d. objeto do conflito: Cumpre, assim, definir aqui qual a jurisdição – comum ou administrativa –competente, em razão da matéria, para conhecer a impugnação judicial da decisão administrativa que condenou o recorrente em coima pela prática de uma contraordenação consistente na violação da obrigatoriedade de ligação à rede geral de distribuição de águas. e. fundamentação: i. da competência Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais comuns, os juízos locais de competência genérica possuem competência para “julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo” se, por lei, estiverem “expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada”. Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar das ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais é concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF. A alínea l), desse preceito, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, veio estabelecer que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.”. Posteriormente, na decorrência da Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, aquela norma passou a atribuir competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias” - (redação atualmente vigente). Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art. 5.º do ETAF). Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”2. ii. Nos presentes autos, está em causa a impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou ao recorrente uma coima pela prática de uma contraordenação p. e p. pelo art. 74.º, n.º 1, al. a), do Regulamento de Serviço de Abastecimento Público de Água do Município de ..., por incumprimento da imposição legal de solicitar, junto do Balcão Único da Câmara Municipal de ..., a ligação de edifício de habitação à rede de distribuição pública de água. Mais detalhadamente, é imputada ao ora recorrente a ausência de ligação do prédio urbano de que é proprietário “à rede de distribuição pública de água, apesar deste ter sido relembrado, por este Município, da obrigatoriedade legal imposta pelo disposto nos artigos 59.º e 69.º do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto, na sua redação atual (que estabelece o Regime Jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, de Saneamento de Águas Residuais Urbanas e de Gestão de Resíduos Urbanos) e nos artigos 16.º e 13.º, n.º 2 do Regulamento Municipal n.º 220/2016, de 04 de março (Regulamento de Serviço de Abastecimento Público de Água), mediante a notificação realizada por carta registada com aviso de receção com a ref.ª n.º 7582, de 30/11/2018 e por carta registada com aviso de receção com a ref.ª n.º 9796, de 27/11/2019, e, nesta sequência, da imposição legal de solicitar, junto do Balcão Único da Câmara Municipal de ..., a ligação à rede de distribuição pública de água, no prazo de 30 dias.”. O Decreto-Lei nº 194/2009, de 20 de agosto, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos. O Regulamento n.º 220/2016, de 04 de março (Regulamento de Serviço de Abastecimento Público de Água do Município de ...) foi aprovado, além do mais, ao abrigo do disposto no art. 62.º do Decreto-Lei n.º 194/2009 (cfr. art. 1.º). Por outro lado, a al.ª a) do n.º 1 do art. 4.º daquele Regulamento, prevê a aplicação subsidiária, em tudo em que for omisso, das disposições legais em vigor respeitantes aos sistemas públicos e prediais de distribuição de água, nomeadamente, do Decreto -Lei n.º 194/2009, em especial os respetivos capítulos VII e VIII, referentes, respetivamente, às relações com os utilizadores e ao regime sancionatório, este último complementado pelo regime geral das contraordenações e coimas, constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro. Versando sobre a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 ao art. 4.º, n.º 1, al.ª l), do ETAF, sustentou-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 07/10/2020, processo n.º 01/203), que “o legislador previu, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”. O Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 21/03/2018, tirado no processo n.º 037/184, incidindo sobre questão similar à dos presentes autos, expendeu: “(…) O diploma onde estas normas se inserem (DL 194/2009) constitui mais uma emanação da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que se assume como a lei-quadro definidora da política de ambiente, cujos princípios são integrados por um elenco de técnicas básicas de protecção, pelo estabelecimento de uma planificação directamente dirigida à defesa do meio e do ambiente (necessariamente em coordenação com outras espécies de planificação, como a urbanística (Só nesta relação de complementaridade se pode compreender a referência feita no acórdão acima citado (cfr. relatório) de que a infracção se insere no “amplo âmbito do direito do urbanismo”, salientando-se, por outro lado, que aí se teve em consideração a anterior redacção da norma da alínea l) do n.º 1, do artigo 4º do ETAF.) e a económica) e por um conjunto de medidas informais de actuação. O objectivo último é a criação de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento social e cultural das comunidades, em sintonia com a fundamentalidade material e formal do direito ao ambiente e à qualidade de vida consagrado no artigo 66° da Constituição. O preâmbulo do DL 194/2009 reafirma esse objectivo, na área específica a que se dirige: “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.” A imposição da ligação dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais aos respectivos sistemas públicos surge assim, ao mesmo tempo, como medida inibidora de poluição de componentes ambientais naturais (água e solo) e como fonte de melhor saúde pública, segurança e bem-estar das populações. Sendo uma norma de cariz eminentemente ambiental está excluída do âmbito de actuação da alínea l) do n.º 4 do ETAF, na medida em que esta atribui à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. Ora, como o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos jurídicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo direito do ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (Luís Filipe Colaço Antunes, “Direito Urbanístico - Um outro paradigma - a planificação modesto- situacional”, Livraria Almedina, 2002, páginas 68 e seguintes.) (figurando portanto como um desenvolvimento ou prolongamento do desenvolvimento do ordenamento do território), facilmente se constata que a norma que esteve na origem da aplicação da coima não tem qualquer ponto de contacto com esta matéria. (…) Em conformidade, decide-se o presente conflito de jurisdição atribuindo-se a competência material ao Juízo Local Criminal do Porto.”. Jurisprudência cujos fundamentos aqui se reiteram. Assim, secundando os fundamentos constantes daquele aresto e uma vez que em causa está a impugnação de uma contraordenação não urbanística, conclui-se que a competência material para a apreciação da impugnação judicial em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum. f. dispositivo: Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda em resolver o vertente conflito negativo de jurisdição, atribuindo aos tribunais judiciais comuns, nos termos do art. 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF, – concretamente ao Juízo de competência genérica de Melgaço, do Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo - a competência material para conhecer da impugnação judicial apresentada nestes autos de contraordenação. * Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. Lisboa, 19 de junho de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. * 1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18 2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 3. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f2d1a7b4511d414d802585ff002f42b0 4. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/bbadafbb26df0c63802583ca005596b4 |