Texto Integral: | Conflito Negativo de Jurisdição n.º 44/18
Acordam no Tribunal de Conflitos:
I.1. O Centro Hospitalar de Leiria. E.P.E., instaurou no Juízo local cível de Leiria, J1, do Tribunal Judicial da comarca de Leiria, acção com processo comum contra o Estado Português alegando que no fornecimento de medicação em ambulatório pela farmácia do hospital, por transporte, prescrição médica e prestação de serviços de tratamentos médicos efetuados no serviço de urgência do Centro Hospitalar Leiria EPE, aos beneficiários da entidade do Ministério da Administração Interna - ADMG Assistência Doença Pessoal Guarda Nacional Republicana, resultou um saldo a favor do A. no valor de € 30.176,15; bem assim, que a responsabilidade pelo pagamento da quantia em débito cabe ao réu, uma vez que os cuidados de saúde foram prestados aos seus beneficiários. Avisado o réu extrajudicialmente para proceder à regularização do débito não fez.
2. Na contestação o Ministério Público excepcionou a incompetência material do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.
Afirma, em suma, que autor e réu são entidades colectivas de natureza pública e que a prestação de cuidados por banda do autor ocorreu por força de uma intervenção legislativa que lhe defere tal função, razão pela qual a resolução do litígio impõe a convocação de normas de natureza administrativa e a intervenção da jurisdição administrativa.
3. Pronunciando-se sobre a suscitada excepção disse o autor que a causa de pedir nos presentes autos se prende com a prestação de cuidados de saúde por parte do A. a utentes do R; que não existe qualquer relação de natureza jurídico-administrativa a ser dirimida entre A. e R.; que o objecto dos autos não cabe nas diversas alíneas do artº 4º do ETAF; que nem autor nem réu agem, aqui, com poderes de autoridade, litigando no âmbito do direito privado. E pede, a concluir, a improcedência da excepção dilatória.
II.1. No despacho saneador, a Ma juíza titular dos autos no Juízo local cível de Leiria, J1, julgou procedente a excepção dilatória da incompetência material do seu tribunal. Fê-lo nos seguintes termos (transcrição parcial):
«(...) [O] critério fundamental para a aferição da competência dos tribunais administrativos e fiscais é que o litígio seja emergente de relações administrativas e fiscais, e tendo em conta que o presente litígio se situa no âmbito de relações jurídicas públicas, então o presente caso tem por objecto uma relação jurídica materialmente administrativa entre duas entidades públicas no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir, razão pela qual a competência para dirimir o litígio pertence aos tribunais administrativos e fiscais e não aos tribunais judiciais. Nesta medida, não poderá deixar de se julgar verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da matéria, com a consequente decisão de absolvição do Réu da presente instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 64.º, 65.º, 96.º/a), 97.º, 99.º/1, 1ª parte, 278.º/1/a, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º a), todos do Código de processo Civil».
2. Tal decisão transitou em julgado.
III.1. Remetidos os autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, por despacho de 09.05.2018, a Ma juíza, admitindo a possibilidade de ser decidida a incompetência material desse tribunal para os termos desta acção, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem.
2. Só o réu, representado pelo MP, se pronunciou, manifestando concordância com a procedência dessa excepção.
3. Em 11.07.2018 foi decidido pela Ma juíza titular dos autos, então, declarar a incompetência em razão da matéria para os termos desta acção. E isso porque, em suma, se entendeu que a competência material do tribunal se afere pelos termos em que a acção é proposta e que, no caso, o autor funda a sua pretensão ao recebimento de determinadas quantias na prestação de cuidados de saúde, ao abrigo do estatuído no DL 218/99, de 15/6; e adianta a Ma Juíza que a jurisprudência mais recente deste Tribunal dos Conflitos, que subscreve, aponta no sentido de que o conhecimento de matéria relacionada com o referido diploma legal compete à jurisdição comum. E desta forma termina:
«(...) [É] o presente Tribunal Administrativo absolutamente incompetente para conhecer do mérito da causa o que, em consequência, determina a absolvição do Réu da instância, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, nº 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA».
3. Também esta decisão transitou em julgado.
IV. Remetidos os autos ao Tribunal de Conflitos o Ministério Público tomou a seguinte posição: «O Estado, representado pelo M. P. suscitou na sua contestação a incompetência material dos Tribunais Judiciais para apreciar a ação em processo comum intentada pelo Centro Hospitalar de Leiria EPE. Independentemente, do acerto ou não da posição assumida pelo M. P. na 1ª instância entendemos que não devemos emitir pronúncia neste conflito, uma vez que esta já consta dos autos».
V. Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
Os factos relevantes para tal decisão são os constantes do relatório que antecede.
E a questão a decidir é a seguinte:
Compete à jurisdição comum ou à jurisdição administrativa e fiscal conhecer das acções em que as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde visam obter a condenação dos réus no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de saúde por si prestados?
No caso em apreço, quedamo-nos perante um conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo local cível, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
A competência dos tribunais judiciais comuns, como é sabido, tem natureza residual, cabendo a tais tribunais julgar as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art°s 64º do CPC e 211º da CRP).
A intervenção dos tribunais administrativos pressupõe em regra a existência de uma relação jurídica administrativa. Dispõe-se no n° 1 do art° 1º do ETAF (aprovado pela Lei 13/2002, de 19/2, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal têm competência "nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto".
Analisado o pedido do autor não resulta, de forma alguma, que a pretensão deduzida nesta acção tenha na sua origem uma relação jurídica administrativa, não cabendo no âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais definido no art. 4.° do ETAF.
Posto isto:
A questão da competência relativa à cobrança de créditos hospitalares do SNS não é nova e este Tribunal dos Conflitos sobre ela já se pronunciou em vários arestos, em sentido uniforme.
No acórdão deste Tribunal de 8/11/2022, Proc. 025/22, rel. Teresa Sousa, acessível em www.dgsi.pt., decidiu-se, em situação com inegáveis semelhanças com a situação ora em apreço:
«Esta questão (pagamento de dívidas hospitalares em consequência da prestação de cuidados de saúde), como refere o TAF de Leiria, já foi conhecida neste Tribunal dos Conflitos, nomeadamente nos Acórdãos de 07.03.2006, Proc. nº 022/05, de 14.03.2006, Proc. nº 021/15, de 19.10.2017, proferido no Proc. nº 041/17, de 30.05.2019, Proc. nº 08/19, de 06.06.2019, Proc. nº 06/19, de 31.10.2019, Proc. nº 024/19 e de 21.11.2019, Proc. nº 029/19, no sentido de que resulta do DL nº 218/99, que compete à jurisdição comum conhecer das acções em que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde visem obter a condenação dos réus no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de saúde por si prestados.
Como se expendeu no Acórdão de 14.03.2006, acima indicado, "(...) a competência material dos Tribunais para a decisão do litígio configurado em determinada acção afere-se pelo pedido formulado nessa mesma acção, analisado à luz da respectiva causa de pedir, a menos que exista lei que especialmente fixe tal competência. A acção em causa, como se disse, foi proposta pelo Hospital (...), contra a (...). E, como resulta do estatuído nos art.ºs 1º e 4º do Dec-Lei n.º 297/02, de 11/12, a inclusão daquele Hospital no Serviço Nacional de Saúde, que se verificava ao tempo de alguns dos serviços médicos prestados (pelo menos os que tiveram lugar em 2001) por ser então uma pessoa colectiva de direito público, foi mantida com a sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos. Ora, já o Dec.-Lei n.º 147/83, de 5/4, estipulava no seu art.º 1 que todas as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde seguiriam os termos do processo sumaríssimo, com determinadas adaptações, o que, como tal forma de processo não existia no contencioso administrativo, pressupunha a atribuição de competência à jurisdição comum, como aliás era prática judiciária corrente. Por seu lado, o Dec.-Lei n.º 194/92, de 8/9, que nos termos do seu artº 1º regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, atribuindo nomeadamente força executiva às certidões de dívida emanadas daquelas instituições e serviços e fixando a competência do "Tribunal da comarca" em que se encontrasse sediada a entidade exequente para as correspondentes acções executivas, e que, no seu art.º 13º, revogou aquele Dec.-Lei n.º 147/83, embora mantendo, como se vê, a competência da jurisdição comum, foi expressamente revogado pelo art.º 14º do Dec.-Lei n.º 218/99, de 15/6, que é hoje, segundo o seu artº 1º, o diploma que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, mas que não refere de forma expressa qual o tribunal materialmente competente para o efeito de processar e decidir as questões respectivas. Limita-se este diploma, no seu art.º 7º, a determinar a competência territorial do Tribunal da sede da entidade credora, não incluindo agora a expressão "Tribunal da comarca", mas sem que tal omissão implique, só por si, que o legislador tenha pretendido introduzir qualquer alteração respeitante à competência, pois a actual expressão pode significar apenas que considerou desnecessário referir-se a uma competência material que pretendia manter. Com efeito, parece o actual diploma pressupor a manutenção da competência material dos Tribunais da jurisdição comum, isto perante a análise do seu próprio preâmbulo, em que o legislador manifesta claramente a intenção de alterar apenas as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares essencialmente mediante a substituição da acção executiva pela declarativa, pelo facto de entretanto se ter constatado que a força executiva conferida às aludidas certidões não provocara a celeridade e a simplicidade processuais visadas pelo diploma anterior na medida em que na generalidade dos casos a existência do crédito reclamado judicialmente e a verdadeira identidade do devedor eram discutidas em sede de embargos à execução. E parece manifesto que, se o legislador tivesse então em vista que a alteração das regras processuais abrangesse também alguma alteração sobre a competência dos Tribunais ou da jurisdição em que o processo devesse correr, não se compreenderia que naquele preâmbulo não se fizesse a mínima alusão a tal nem qualquer síntese de razões explicativas da nova opção. Ou seja, nada referindo a tal respeito apesar das pormenorizadas explicações preambulares sobre os seus objectivos, parece pelo menos lógico interpretar o dito diploma como não tendo visado introduzir qualquer inovação sobre a competência dos Tribunais que deveriam proceder à análise e decisão das questões respeitantes às dívidas hospitalares. Acresce que no mesmo sentido aponta o disposto no art.º 6º do mencionado Dec.-Lei n.º 218/99, ao estabelecer a possibilidade de as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde se constituírem partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas, possibilidade essa que aponta de forma praticamente decisiva para a competência da jurisdição comum, que é aquela onde correm os processos penais. Caso contrário, isto é, se o legislador pretendesse que a competência coubesse à jurisdição comum quando os devedores fossem accionados em processo criminal e à jurisdição administrativa quando fossem accionados fora desse processo, estaria ele a consagrar a competência de duas ordens jurisdicionais diferentes para apreciar questões da mesma natureza, de forma incongruente, pois a distribuição de competência entre jurisdições se baseia precisamente na natureza das questões a decidir. Assim, e ainda porque o litígio em questão não integra uma relação jurídica entre pessoas de direito público desenvolvida sob a égide do direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não se enquadra na previsão de qualquer das als. do art.º 4º do E.T.A.F., conclui-se que se trata aqui de um caso nítido em que se justifica uma interpretação extensiva, por ser manifesto que o legislador disse menos do que aquilo que pretendia dizer, sendo consequentemente de interpretar o citado Dec.-Lei n.º 218/99 no sentido de consagrar a competência dos Tribunais integrados na jurisdição comum para apreciar os pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares por prestação de cuidados de saúde. (...) Ora, é manifesto que o regime da cobrança de dívidas consagrado no citado Dec.-Lei não atende à causa das lesões determinantes dos tratamentos prestados, salvo (art.ºs 9º a 12º) no tocante a dívidas resultantes de acidentes de viação, o que não é o caso. Assim, apenas há que ter em conta a causa de pedir invocada, integrada somente por aqueles factos a que o mencionado diploma reconhece a eficácia de determinar a competência do Tribunal, e que consistem em não mais do que a prestação de cuidados de saúde por instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, independentemente da qualidade dos assistidos. Quer isto dizer que a referência feita na petição inicial à qualidade dos assistidos enquanto servidores públicos apenas releva para determinação da legitimidade passiva, pois, se não o fossem, tal legitimidade caberia a eles próprios ou aos causadores das lesões que tenham originado os tratamentos; e não é essa legitimidade, mas a causa de pedir, que tem eficácia na determinação da competência material do Tribunal"».
É este, como referimos, o entendimento que, de forma uniforme, vem expressando o Tribunal dos Conflitos, nesta concreta matéria, e ao qual aderimos sem qualquer reserva, considerando, portanto, que a competência no caso dos autos pertence aos tribunais da jurisdição comum.
VI. Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal dos Conflitos em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo local cível de Leiria, J1.
Sem custas.
Comunique aos tribunais em conflito.
Lisboa, 14 de Setembro de 2023. (processado e revisto pelo relator) – Sénio Manuel dos Reis Alves (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – António Fernando Barateiro Dias Martins – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Nuno António Gonçalves – José Francisco Fonseca da Paz. |