Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/12
Data do Acordão:09/20/2012
Tribunal:CONFLITOS
Relator:PIRES ESTEVES
Descritores:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
COMPANHIA DE SEGUROS
Sumário:I - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
II - Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas".
III - O conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa.
IV - O conceito de relação jurídica administrativa é erigido tanto na Constituição como na lei ordinária em pedra angular para a repartição da jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais.
V - À míngua de definição legislativa do conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
VI - Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.
VII – Se uma Freguesia transferiu, por contrato de seguro, toda a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, para uma Companhia de Seguros, e se autora de uma acção de indemnização intentou só contra tal companhia de seguros a acção, aceitando esta a factualidade respeitante ao acidente, discordando apenas quanto às consequências advindas para a autora e quanto ao montante indemnizatório, o litígio em causa não diz respeito a qualquer relação jurídica administrativa, como também não cabe na previsão do disposto no artº4º nº1 al.g) do ETAF.
VIII – A competência para dirimir o litígio referido em VII cabe aos tribunais judiciais comuns.
Nº Convencional:JSTA000P14573
Nº do Documento:SAC2012092007
Data de Entrada:04/20/2012
Recorrente:A..., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE OLEIROS E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 7/12

A……, casada, residente no lugar de ……, freguesia de ……, Concelho de Oleiros propôs no Tribunal Judicial da Comarca de Oleiros, acção declarativa de condenação por acidente de viação, com processo ordinário contra B……, SA, com sede na Rua ……. nº…., 1249-…. Lisboa, ao pagamento de quantia especificada nos autos e das despesas que ainda tiver que suportar em tratamentos médicos.

Por decisão de 26/11/2010 o tribunal judicial da comarca de Oleiros julgou-se materialmente incompetente (fls.109) e absolveu a ré da instância.

Não se conformando com esta decisão da mesma interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual por acórdão de 17/05/2011 (fls. 157 a 166) negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Deste acórdão recorreu a recorrente A…… para este Tribunal de Conflitos, nos termos do artº107º nº2 do CPC.

Termina a recorrente as suas alegações com as seguintes conclusões:
A - Pretende a Recorrente que seja apreciada e fixada jurisprudência pelos Venerandos Conselheiros acerca da competência material dos Tribunais quando em apreço está “responsabilidade civil extracontratual” que, conexamente, envolve entidades públicas, no caso uma autarquia local.
B - Refere-se conexamente porque na situação em apreço - e em muitas outras que tem chegado aos tribunais superiores - a relação material controvertida é directamente entre duas entidades privadas, no caso entre a Autora, ora Recorrente e uma Companhia de Seguros,
C - Verifica-se, no entanto, que a titular do contrato de seguro é uma entidade pública (no caso uma Junta de Freguesia), que, contudo, não é sequer parte nos autos porque o valor do pedido está dentro dos limites do contrato de seguro.
D - E, atendo a delimitação que resulta da Petição Inicial e da Contestação, não resulta dos autos que em algum momento dos mesmos possam estar em apreciação ou em aplicação quaisquer normas de natureza administrativa ou fiscal.
E - Além disso, ambas as partes manifestaram-se de forma expressa nos autos, através de requerimentos autónomos, pugnando pela competência dos Tribunais comuns em detrimento dos Tribunais administrativos.
F - O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Oleiros que, por sua vez, havia considerado os “tribunais comuns” como incompetentes, em razão da matéria, para julgar uma acção emergente de acidente de viação, relativamente ao qual a titular da apólice de seguro é uma autarquia local.
G - Na origem do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra está o despacho saneador-sentença que conheceu oficiosamente da incompetência material do Tribunal Judicial da Comarca de Oleiros para conhecer do objecto dos presentes autos, por a titular da apólice de seguro ser uma Autarquia, no caso uma Freguesia.
H - Não obstante a Recorrente compreender a acuidade da questão teórica suscitada em face da titular ou subscritora da apólice de seguro ser uma Autarquia Local, que como pessoa que é de direito administrativo publico, está sujeita à jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, entende, da interpretação que faz das normas aplicáveis, que, como vem sendo defendido pelos nossos Tribunais Superiores e pelo Tribunal de Conflitos, que vale o “Critério Objectivo da Entidade Demandada”, que na situação em apreço é uma entidade que nada tem de “Ius Imperii”, que subjaz às entidades sujeitas à jurisdição administrativa.
I - De facto, dos autos não resulta que se questione ou possa estar em causa qualquer “Relação Jurídica Administrativa”, mas antes uma questão que advém da responsabilidade civil extra contratual de uma Entidade Pública Administrativa, mas de âmbito privado (até, atenta a natureza da Companhia de Seguros).
J - O Supremo Tribunal de Justiça e, igualmente, o Tribunal de Conflitos já se pronunciaram acerca de situações similares à questão em apreço nos autos, considerando que, em situações próximas à dos presentes autos são competentes os Tribunais Judiciais e não dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
K - No entanto, também, existem acórdãos em situações também similares ou idênticas, designadamente os citados no acórdão recorrido, que pugnam pela competência exclusiva dos Tribunais Administrativos.
L - Está em causa, por um lado, o entendimento que é susceptível de ser extraído desses acórdãos ~ que a Segurança Jurídica impõe que se fixe jurisprudência para as situações futuras.
M - No Ac. STJ, Processo 1337/07.3TBABT.E1.S1, cujo relator foi o Conselheiro Moreira Alves, que refere, designadamente o seguinte:
I - A competência material afere-se pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos exactos termos unilateralmente afirmados pelo autor da pretensão e pelo pedido formulado.
II - A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, bem como a competência dos tribunais administrativos, fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, tal como as modificações de direito (quanto a estas com algumas excepções, no que se refere à competência dos tribunais judiciais) - cf arts. 63.° do CPC, 24.° da LOTFJ e 5.º do ETAF.
III - No caso dos autos, a autora limitou-se a peticionar o ressarcimento dos danos que sofreu em consequência de um acidente entre um comboio, sua pertença, e um veículo automóvel segurado na ré, pelo que estamos perante uma vulgar acção de indemnização, da natural competência do tribunal comum (por não haver outro tribunal, de ordem diferente, a que esteja reservada tal competência) - art. 26.º, nº1, da LOFTJ -, tendo sido requerida, pela ré, a intervenção principal provocada da REFER (por ter omitido actos de gestão, conservação e manutenção que a lei lhe atribui).
IV - A ter sido accionada inicialmente apenas a REFER, sendo esta uma pessoa colectiva de direito público (art. 2.º, nº 1, do DL nº104/97, de 29-04) é manifesto que seria competente, para apreciação do mérito, o foro administrativo, face ao disposto no art. 4.º nº1, al. g), do ETAF, aprovado pelo DL nº13/2002, alterado pelas Leis n°s 4-A/2003, de 19-02, e 107-D/2003, de 31-12, que entrou em vigor em 01-01-2004.
V - O novo ETAF eliminou do seu articulado o que antes se dispunha no art. 4.º, al. f), que excluía da jurisdição administrativa as acções que tivessem por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público, privilegiando um factor de incidência subjectiva, independentemente da natureza jurídica pública ou privada de situações de responsabilidade.
VI - Na situação concreta, por via das vicissitudes processuais, temos na acção, no lado passivo, quer a seguradora do veículo alegadamente causador do acidente, de onde derivam os danos peticionados, quer a REFER, a quem subsidiariamente (nos termos do art. 31.°-B do CPC - pluralidade subjectiva subsidiária) se imputa a mesma responsabilidade, pelo que constituindo a intervenção principal requerida um incidente da instância, o tribunal, que era competente para a acção, tem também competência para decidir o incidente, como resulta do disposto no art. 96.º, nº1, do CPC.
VII - Se o tribunal vê a sua competência estendida para decidir do incidente, mesmo que não seja o tribunal competente para julgar a validade e eficácia das relações materiais que lhe servem de base, em acção directa e autonomamente proposta para esse fim, seria incompreensível que, numa situação como a dos autos, tendo admitido a intervenção da REFER tivesse que, a seguir, julgar incompetente o tribunal para conhecer da eventual responsabilidade do interveniente que esteve na base do deferimento do incidente, daí que se entenda ser competente, em razão da matéria, para julgar a acção, o tribunal comum, apesar daquela intervenção provocada da REFER.

N - Segundo a interpretação que, como o necessário e devido respeito, a Recorrente faz deste acórdão, caso a acção fosse intentada, inicialmente contra a entidade pública, então, nesse caso, a competência seria dos Tribunais Administrativos. Como o foi contra a Companhia de Seguros e, sobretudo, o pedido formulado e delimitado na PI está abrangido pelos limites de responsabilidade da apólice e, sobretudo, porque a apreciação do litígio dos autos não envolve a aplicação de normas de direito administrativo ou fiscal ou a prática de actos a coberto do direito administrativo, então é competente o Tribunal comum.
O - E, mais, atento o sentido deste acórdão, este Tribunal comum deve, ainda, manter-se como competente mesmo que, por vicissitudes processuais, a Junta de Freguesia houvesse de intervir como parte nos autos.
P - Está, ainda, em causa o conteúdo do Ac. do STJ de 13 de Março de 2008, no qual foi relator o Exm° Cons. Sebastião Povoas:
“Para decidir a matéria da excepção, da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa pretendi e, também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante”… “no fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância - no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante - que determina a resolução desses pressupostos”.
Q - E, ainda, o conteúdo do acórdão do STJ (Processo 334/09.9YFLSB, de 02 de Julho de 2009, cujo relator foi o Exmo. Conselheiro Alberto Sobrinho), que refere, designadamente:
1. Não basta que se esteja perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público para que a competência para apreciação dessa questão recaia logo sobre os tribunais da jurisdição administrativa. Antes há que conjugar o estatuído no nº1 do art. 4° do ETAF com o que se dispõe no nº1 do art. 1° do mesmo diploma e nº3 do art. 212° Constituição da República. E da conjugação destes preceitos legais decorre que radica na jurisdição administrativa a competência para apreciação dos litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, ou seja, o julgamento dos litígios com origem na administração pública lato sensu
2. Do regime decorrente do ETAF não é instituído um foro privativo para as entidades públicas, antes procurou submeter-se os litígios que envolvam estas entidades aos tribunais judiciais quando a resolução dos litígios não envolva a aplicação de normas de direito administrativo ou fiscal ou a prática de actos a coberto do direito administrativo.
Refere ainda este acórdão:
(...) não basta que, como no caso vertente, se esteja perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público para que a competência para apreciação dessa questão recaia logo sobre os tribunais da jurisdição administrativa. Antes há que conjugar o estatuído no n° 1 do art. 4° do ETAF com o que se dispõe no n° 1 do art. 1° do mesmo diploma e n° 3 do art. 212° Constituição da República. E da conjugação destes preceitos legais decorre que radica na jurisdição administrativa a competência para apreciação dos litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, ou seja, o julgamento dos litígios com origem na administração pública lato sensu.
R - Extrai-se deste acórdão, sobretudo, que a atribuição à jurisdição administrativa da competência para julgamento das questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público não é uma regra absoluta nem determina a atribuição de nenhum for privativo de jurisdição.
S - E que para a competência radicar na jurisdição administrativa exige-se, para além da qualidade da entidade em si, que o litígio seja regulado ou passível de ser regido por normas de direito administrativo.
T - Em sentido totalmente contrário ao entendimento pugnado pela Recorrente, cita-se o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Fevereiro de 2007, Processo 07B238, cujo relator foi o Exmo. Conselheiro Salvador da Costa, refere, designadamente:
“I - O âmbito da jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo direito público ou pelo direito privado;
II - Os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa”.
U - Extrai-se deste acórdão - no qual está em causa uma situação de Contratação Pública e não especificamente, uma em que se verifique uma transferência de responsabilidade de um ente publico para um privado, como a que está em apreço nos presentes autos - que, levado à letra, deve atender-se sobretudo à letra da lei e, assim sendo, que competirá aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto as questões em que, nos termos da lei haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4°, n°1, alínea g), do ETAF).

V - Também o Tribunal de Conflitos já se foi pronunciando acerca de questões idênticas às que estão em apreço nos presentes autos, de que se destacam os seguintes acórdãos:
Processo 4/10, de 16 de Junho de 2010, este a contrário:
“Insere-se no âmbito de competência dos tribunais judiciais e não dos tribunais administrativos o julgamento de um pedido de indemnização formulado pelo Estado contra uma companhia seguradora com fundamento nos danos produzidos por um particular, em acidente de viação, numa viatura da GNR.
A simples caracterização do demandante como ente público, desligada da natureza do pedido e da identidade do demandado, não foi acolhida pelo legislador português como critério de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.”

W - Processo 020/ 10, de 09 de Dezembro de 2010, no qual também está em causa a responsabilidade civil extracontratual de um ente público (apesar da natureza da questão ser algo diversa da que se encontra em apreço nos autos)

I - A competência (ou jurisdição) de um tribunal determina-se pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos.
II - Cabe aos Tribunais Judiciais julgar todas as causas que não sejam especialmente atribuídas a outras espécies de Tribunais, cumprindo aos Tribunais Administrativos dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
III - Compete aos tribunais judiciais e não aos tribunais administrativos dirimir os litígios emergentes de um contrato de subempreitada celebrado, na execução de uma empreitada de obra pública, entre o empreiteiro originário e um terceiro, uma vez que esse contrato está materialmente submetido a normas de direito privado.
X - Extrai-se deste acórdão que não tendo as relações jurídicas nascidas dos contratos que estão na base dos presentes autos (um contrato de seguro, pelo qual uma entidade publica transferiu a respectiva responsabilidade infortunística por acidentes de viação para uma Seguradora) não tem natureza administrativa nem podem tais contratos ser qualificados como contratos administrativos, o que leva a que será forçoso concluir que os Tribunais Administrativos carecem de competência para dirimir os litígios que deles possam emergir e, consequentemente, essa competência incumbirá aos Tribunais comuns.
Y - O litígio em apreço nos autos envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual, estando em causa, contudo, uma situação “conexa” com uma relação jurídica administrativa.
Z - Contudo, haverá que considerar esta conexão com a relação jurídico administrativa como atípica, porquanto essa relação traduz-se apenas e só na existência de um contrato de seguro celebrado entre uma autarquia local e uma Companhia de Seguros.
AA - Contrato este quem, conforme já notado, se regula exclusivamente por normas de direito privado.
BB - Nesta situação a definição da competência material dos tribunais não pode ser alheada da natureza das normas aplicáveis à situação e à natureza daquele contrato de seguro e, quanto a ambos, remete-se para normas de direito privadas, sem qualquer conexão com quaisquer normas de natureza administrativa ou fiscal. Assim,
CC - Não obstante o disposto no artigo 4.° do ETAF e da interpretação que tem sido dada a este preceito, designadamente ao nº1, alínea g) ainda assim quadro da unidade de relação jurídica controvertida, é modesto entendimento da Recorrente que devem os tribunais comuns serem considerados competentes para julgar quaisquer acções que:
i. Envolvem responsabilidade civil extracontratual de entidades públicas e essas entidades públicas não sejam parte nos processos;
ii. Quando essa responsabilidade civil extracontratual se encontrar transferida para a esfera jurídica de entidades privadas;
iii. Quando se discuta nos autos questões e valores que estão dentro dos limites dessa transferência de responsabilidade
iv. E, por fim, quando em causa não estejam a aplicação ou interpretação directa de quaisquer normas administrativas ou fiscais.
DD - Conclui, pois, a Recorrente pela competência dos tribunais Judiciais para preparar e julgar os pedidos em apreço nos presentes autos (Cfr. artigos 66° do Código de Processo Civil e 18° n°1, da LOFTJ e, à contrário art. 4.° do ETAF, aprovado pela Lei nº13/2002, de 19.02, com a redacção que posteriormente lhe foi dada pela Lei nº 59/2008 de 11.09)

Emitiu douto parecer o Exmo. Magistrado do Ministério Público, com o seguinte teor:

Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, negando provimento ao recurso de apelação dela interposto, confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Oleiros que julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, por caber aos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos da alínea g) do nº 1 do artº4º do ETAF, a competência para conhecer da acção declarativa de condenação para efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, intentada pela ora recorrente contra “B……, S.A.”.
Em abono da competência material residual dos tribunais comuns, nos termos dos artes 66º do CPC, 18º, nº 1 da LOFTJ e 4º do ETAF, invoca a recorrente, em síntese, que a relação material controvertida é entre duas entidades privadas, não estão em apreciação ou aplicação quaisquer normas de natureza administrativa ou fiscal e não se configura qualquer relação jurídica administrativa, antes uma questão de âmbito privado - cf. conclusões B, D e I.
Em nosso parecer, assistir-lhe-á razão.
Constitui pacífico entendimento jurisprudencial e doutrinário que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir) - cf., entre outros, os doutos acórdãos deste TC, de 23/9/2004, proc.º 05/04; de 4/10/2006, proc.º 03/06; de 17/5/2007, proc.º 5/07 e de 2/10/2008, proc.º 012/08.
Na acção em questão, a A. peticiona a condenação da Ré seguradora no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente, por despiste, do veículo automóvel …-…-…, causado pelo seu condutor, que o conduzia em nome e representação da Freguesia da Amieira, sua proprietária, a qual transferira para a Ré, por contrato de seguro, a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de viação.
Tal como sustenta a recorrente e aliás considerou o douto Acórdão recorrido, dúvidas não há de que a relação material controvertida não reveste a natureza de uma relação jurídica administrativa mas de uma relação jurídico-privada, regulada pelas normas e princípios do direito civil comum - cf. fls. 162.
A atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição administrativa por parte do Acórdão recorrido radicou na adesão ao entendimento que este Tribunal tem vindo uniformemente a perfilhar no sentido de que “nos termos da alínea g), nº 1, do artigo 4º do actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31.XII, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer, pois, por actos de gestão pública, (como no ETAF 84) quer por actos de gestão privada praticados no exercício da função pública” - Cf., entre outros, os doutos acórdãos deste TC, de 26/10/06, proc.º 018/06; de 26/9/07, proc.º 013/07; de 23/01/08, proc.º 017/07; de 10/9/08, proc.º 11/08; de 7/10/09, proc.º 01/09; de 8/10/2009, proc.º 012/09; de 17/6/2010, proc.º 30/09 e de 20/9/2011, proc.º 03/11.
E para tal considerou despicienda a circunstância de não ser a Junta de Freguesia da Amieira, mas sim a respectiva seguradora, a demandada, por se verificar a exigência daquele preceito de ter o litígio em causa por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”, na medida em que a acção visa a efectivação da responsabilidade extracontratual daquela - cf. fls 165.

Porém, no caso, não é demandada a pessoa colectiva de direito público Freguesia da Amieira mas tão só a Ré seguradora, entidade privada, com base no contrato de seguro com ela celebrado.
Por outro lado, “o contrato de seguro apenas faz transferir o quantum indemnizatório para a entidade seguradora, não a responsabilidade jurídica pelo evento” - Cf. Acórdãos do STA, de 1/2/2000, proc.º 045222; de 6/3/2001, proc.º 046913 e de 16/3/2004, proc.º 01715/03 e Acórdão deste TC, de 29/9/05, proc.º 09/05.
Ora, o referido preceito circunscreve o âmbito da jurisdição administrativa aos litígios que tenham por objecto a “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público” - cf. “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Mário Aroso de Almeida / Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Almedina, 2005, p. 80, nota 47.
Como também se deixou dito no Acórdão deste TC, de 20/9/2011, proc.º 03/11, “Relativamente às acções que visam efectivar responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, o ETAF de 2002 estabelece expressamente que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto» «questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa» [art. 4º, nº 1, alínea g)].
Adoptou-se, assim, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, um critério de atribuição de competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal que atende apenas à natureza pública da entidade demandada, independentemente da natureza da relação jurídica de que emerge o litígio.” (destaque nosso).
Pelo exposto, sendo destituída de natureza pública a entidade demandada e não constituindo objecto da acção em causa a responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito público, deverá, em nosso parecer, o recurso merecer provimento, julgando-se, em consequência, competentes para dela conhecer os tribunais judiciais.

Colhidos os vistos dos Exmos. Adjuntos cumpre decidir.

O acórdão recorrido baseou-se na posição descrita pela requerente (autora) que a seguir se transcreve:
“A……, residente na freguesia de ……, concelho de Oleiros, intentou, em 5/10/2009, no tribunal Judicial da Comarca de Oleiros, contra a «B……, SA”, com sede em Lisboa, acção declarativa de condenação, para efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido em 21/8/2007, pedindo, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a condenação da ré a suportar as despesas que aí refere e a pagar-lhe as importâncias que discrimina, em montante global não inferior a €181.900,50, acrescido de juros de mora. Sustentou, em síntese, que consubstanciando-se esse acidente no despiste da viatura automóvel em que seguia transportada e que era pertença da Freguesia da Amieira que, por sua vez, tinha transferido para a ré, mediante contrato de seguro, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação causado com essa viatura, tal sinistro é culpa exclusiva de C……, que era quem, por conta e no interesse da freguesia da Amieira, então conduzia o aludido veículo”.

Com base nesta alegação, foi proferido o acórdão recorrido que tem o seguinte teor:
“A competência dos tribunais da ordem judicial é residual. Efectivamente, os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (artº66º do Código de Processo Civil e 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - LOFTJ).
De harmonia com o disposto no artº 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, (CRP) compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Uma vez que a presente acção, respeitando a acidente ocorrido em 21/08/2007, deu entrada em juízo em 05/10/2009, a aferição da competência material, no que aos Tribunais Administrativos respeita, faz-se tendo em conta o “novo” Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs. 4-A/2003, de 19/02 e 107-D/2003, de 31/12, vigente a partir de 1/1/2004.
Actos de gestão pública serão os praticados por órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, mesmo que não envolvam ou representem o exercício de meios de coacção. Serão actos de gestão privada os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em situações em que esta apareça despida do poder público, e, consequentemente, numa posição de paridade com o particular a que os actos respeitam, e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com total submissão às normas de direito privado (Cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 05/11/1981, “in” BMJ n.º 311 págs. 195 e ss.).
Ora, no caso sub judice, embora se vise apurar a responsabilidade civil extracontratual de uma entidade de direito público, esta apresenta-se, no contexto a apreciar, despida do poder público, e, consequentemente, numa posição de paridade com o particular a que a conduta a avaliar respeita.

Assim, subjacente a uma tal apreciação não se encontra qualquer relação jurídico-administrativa, mas sim uma mera relação jurídico-privada, regulada, pois, pelas normas e princípios do direito civil comum.
Do exposto resultaria, assim, que, em face do ETAF/84, estaria fora do âmbito da competência material dos Tribunais Administrativos, a apreciação da responsabilidade civil extracontractual que os presentes autos suscitam.
Sucede que, de harmonia com a alínea g), do nº1, do art.ºs 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos aplicável, que, é como se disse, o aprovado pela Lei nº 13/2002, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto “Questões que, nos termos da lei haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.
Ao invés do que sucedia no ETAF/84, no actual ETAF - que não contém norma como a do art. 4º, nº 1, f), daquele, que excluía da jurisdição administrativa questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público - não se restringe a competência, para a apreciação desses litígios, aos casos em que a uma tal responsabilidade subjazem actos de gestão pública.
Assim, nos termos da mencionada alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº. 13/2002, de 19 de Fevereiro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa apreciar os litígios que tenham por objecto a apreciação da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, seja por actos de gestão pública, seja por actos de gestão privada levados a cabo no exercício da função pública.
Este foi o entendimento seguido pelo Tribunal dos Conflitos no Acórdão de 26/10/2006 (proc nº 018/06), onde se escreveu: «Com a consagração deste critério [o que está consagrado no da alínea g), nº 1, do artigo 4º do ETAF] no domínio da responsabilidade civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para este Tribunal de Conflitos.
Mário Aroso de Almeida, em “O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVO”, 4ª ed., revista e actualizada, a págs. 99, salienta que: “a) Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.

E, mais adiante salienta: “Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos”, invocando no mesmo sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265.
Também Santos Serra, Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, numa intervenção em “A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Iberoamericana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, Cidade do México, 28 de Agosto de 2006, refere, depois de descrever a evolução do nosso contencioso administrativo e tendo em mente o actual ETAF que” Existindo agora uma cláusula positiva de demarcação da competência da jurisdição administrativa, a fronteira entre justiça administrativa e a dita justiça comum sai clarificada, e os tribunais administrativos, esses, ganham um espaço privativo de actuação - um conjunto nuclear de tarefas que os torna, finalmente, verdadeiros e próprios tribunais, compondo uma jurisdição administrativa e fiscal autónoma, em tudo equivalente à chamada jurisdição comum, inclusive no nível de garantias prestadas a quem se lhe dirige em busca de protecção.
Assim, e para dar apenas um exemplo, no plano da responsabilidade civil extracontratual, esse espaço de actuação inclui hoje: 1) todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração, independentemente dessa responsabilidade emergir de uma actuação de gestão pública ou de gestão privada; 2) as questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
Igualmente em “Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, vol, I, pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sustentam que “Segundo a actual redacção desta alínea g) - posta pela Lei nº 107-D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual” dessas pessoas.”
E mais adiante: “(…) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás referida e a vontade expressa na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada”
Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contencioso Administrativo I, a pág. 714, salienta que “No tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência subjectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos”.»
No mesmo sentido, perfilhando o Acórdão que se acaba de transcrever, decidiu o Tribunal dos Conflitos no Acórdão de 26/09/2007 (proc nº 013/07).
Também foi este o entendimento - de que o artº 4º, nº 1, al. g), do ETAF (Lei nº 13/02, de 19/02), abrange todos os actos de responsabilidade civil extracontratual da administração pública, independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou actos de gestão privada - que seguiu esta Relação, no Acórdão de 16/09/2008 (Agravo nº 328/07.9TBTCS.C1), bem como no Acórdão de 15/02/2011 (Apelação nº 1041/10.5TBGRD.C1).
A circunstância de não ser a Junta de Freguesia da ....., mas sim a respectiva seguradora, que é demandada, é despicienda para a aferição da competência de que tratamos, pois que, visando a acção a efectivação da responsabilidade extracontratual daquela, verifica-se a exigência do mencionado artº 4º, nº 1, al. g), que é, tão só, ter o litígio em causa por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.
De tudo o exposto decorre que, estando o caso vertente abarcado na competência jurisdicional dos tribunais da ordem administrativa a que se reporta a alínea g) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/02, de 19/02, excluída fica, atento o apontado critério residual, a competência dos Tribunais Judiciais.
Concluindo, dir-se-á, pois, que os Tribunais Judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da presente causa, competência essa que pertence aos tribunais da ordem administrativa, pelo que bem andou o Tribunal “a quo” ao assim entender e, por via disso, absolver a Ré da instância.
Entendeu-se, no acórdão recorrido que a competência para conhecer do presente litígio pertencia aos tribunais administrativos, porque o artº4º, nº 1, al. g), do ETAF (Lei nº 13/02, de 19/02), abrange todos os actos de responsabilidade civil extracontratual da administração pública, independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou actos de gestão privada e de que a circunstância de não ser a Junta de Freguesia da Amieira, mas sim a respectiva seguradora, que é demandada, é despicienda para a aferição da competência de que tratamos, pois que, visando a acção a efectivação da responsabilidade extracontratual daquela, verifica-se a exigência do mencionado artº4º, nº 1, al. g), que é, tão só, ter o litígio em causa por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.

Com base no quadro fáctico acima referido passamos a averiguar qual o tribunal materialmente competente para conhecer do presente litígio.
O artº211º nº1 da CRP, estatui que "os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais".
Por sua vez, estabelece o n.º 3 do artº212º da Lei Fundamental que "compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas".
Assim, o princípio constitucional ínsito no primeiro normativo enunciado tem tradução no 26º/1 da Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto - Lei de Organização e Funcionamento do Tribunais Judiciais - (LOFTJ), onde se estabelece que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Já o segundo princípio constitucional vem retratado no artº1º nº1 do ETAF onde se dispõe que “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, sendo que o artigo 4.º n.º 1, do mesmo estatuto, concretiza este princípio através de sucessivas enumerações, definindo a título exemplificativo, pela positiva, os litígios nela incluídos.
Podemos concluir face a estes textos legais acabados de referir que, por um lado, a competência dos tribunais judiciais (jurisdição comum) se apura por exclusão, cabendo-lhe julgar todas as acções que não sejam atribuídas a outros Tribunais (outra ordem jurisdicional - artº66º do CPC), e, por outro, que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal se encontra por inclusão, pertencendo-lhes dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Temos, assim, que o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio, cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa.
Nesta conformidade, para se saber qual o Tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pela recorrente A……. - se o Judicial se o Administrativo - importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa.
De realçar que, para esse efeito, é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito (ver i. a.: Acórdãos Tribunal de Conflitos de 20.09.2011 (Conflito nº 04/11, de 09.12.2010 (Conflito nº020/10, de 11/7/00 (Conflito n.º 318), de 3/10/00, (Conflito n.º 356), de 6/11/01 (Conflito n.º 373), de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), de 29/10/2006 (Conflito n.º 18/06) e de 15/07/2007 (Conflito n.º 5/07) e do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 21/4/99, rec. n.º 373/98; cfr. Prof. Manuel de Andrade “Noções Elementares de Processo Civil” págs. 88 e segs.).
Há, pois, que indagar se estamos perante uma relação jurídica administrativa.
O conceito de relação jurídica administrativa é, pois, erigido, tanto na Constituição como na lei ordinária, em pedra angular para a repartição da jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais.
À míngua de definição legislativa do conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
Na esteira do que tem decidido a jurisprudência (neste sentido: Acs. do Tribunal dos Conflitos, de 5.6.2008 (Pº 21/06), de 4.11.2008 (Pº 21/07), de 4.11.09 (Pº 6/09), de 20.1.2010 (Pº 25/09), de 9.9.2010 (Pº 11/10) e de 28.9. 2010 (Pº 10/10).), e em conformidade com a doutrina, podemos dizer que são relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58).
Em termos semelhantes, Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha entendem que “uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada” (in Comentário ao CPTA, 2ª ed., revista – 2007, pág.17). Cfr.: Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. 1º, 2ª ed., págs. 137, 138 e 149; Vitalino Canas, Relação Jurídico-pública, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. VII, págs. 207 e ss.; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in CPTA, Vol. 1º, págs. 29 e ss.; Cabral de Moncada, in A relação jurídica administrativa, págs.72 e ss. e 94 e ss.; João Caupers, in Introdução ao Direito Administrativo, 9ª ed., págs. 278 e 279).
Seguramente que a hipótese dos autos não se insere no âmbito de uma relação jurídica administrativa.
Conforme vem alegado na petição pela ora recorrente quando circulava no veículo propriedade da freguesia de Amieira este despistou-se e saiu da estrada, caindo na ribanceira, o que lhe causou várias lesões, estando o montante do dano ora em litígio.
Embora, o veículo despistado fosse propriedade da câmara e conduzido sob sua autorização direcção efectiva e no seu interesse, não se descortina em que é que o acidente tenha gerado uma relação jurídica administrativa.
Quando muito poderíamos estar perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual daquela freguesia com base em facto ilícito.
Porém, por a Freguesia de Amieira ter transferido, por contrato de seguro, toda a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, para a B…… Companhia de Seguros, a recorrente intentou a acção contra tal companhia de seguros, aceitando esta a factualidade respeitante ao acidente, discordando apenas quanto às consequências advindas para a recorrente e quanto ao montante indemnizatório.
Ora, o que está em litígio – a indemnização - é da responsabilidade da Companhia de Seguros, para si transferida por contrato de seguro.
Assim, o litígio em causa não diz respeito a qualquer relação jurídica administrativa, como também não cabe na previsão do disposto no artº4º nº1 al.g) do ETAF.
Na verdade, a inclusão na competência material dos tribunais administrativos o conhecimento de questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa justifica-se, por uma incidência subjectiva, independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos (cfr. Sérvulo Correia, in Direito do Contencioso Administrativo I, pág.714).
Porém, no caso sub judice não está em causa o acto ilícito imputado à pessoa colectiva pública (seus órgãos, funcionários, agentes ou servidor público) mas tão só o montante indemnizatório, cuja responsabilidade havia sido transferida para uma pessoa colectiva privada.
Ora, não estando em causa qualquer questão relativamente a uma pessoa colectiva pública, não se enquadra a presente situação no disposto no artº4º nº1 al.g) do ETAF.
Portanto, não se estando perante uma relação jurídico-administrativa, nem sendo aplicável in casu o disposto no artº4º nº1 al.g) do ETAF, forçoso é concluir que são os tribunais comuns os competentes para conhecer do presente litígio, face à sua competência residual.
Em concordância com tudo o exposto, concede-se provimento ao presente recurso, revogam-se o acórdão recorrido e a sentença do tribunal de 1ª instância, declarando-se competente para conhecer do presente litígio a jurisdição comum.
Custas pela recorrida neste tribunal e em todas as instâncias.
Lisboa, 20 de Setembro de 2012. – Américo Joaquim Pires Esteves (relator) – José Adriano Machado Souto de Moura – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – Rosendo Dias José – Orlando Viegas Martins Afonso.