Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:030/13
Data do Acordão:09/26/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:GONÇALVES ROCHA
Descritores:ABASTECIMENTO DE ÁGUA
CONCESSIONÁRIA
COBRANÇA COERCIVA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS
Sumário:Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar um “preço fixo” e consumos de água respeitantes a um contador totalizador que precede os das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos resultantes de exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário.
Nº Convencional:JSTA000P16257
Nº do Documento:SAC20130926030
Data de Entrada:04/05/2013
Recorrente:A..., S.A , NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FAFE E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 30/13.

Acordam no Tribunal de Conflitos:

1----

A………., SA, instaurou no Tribunal Judicial de Fafe, acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra
B……….., L.da, e

Condomínio do prédio dito da Zona ………………., Fafe, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 2 071,59 euros e juros de mora legais até integral pagamento, valores respeitantes a facturas não pagas relativas ao fornecimento de água entre 2006 e 2008, no âmbito dum contrato que celebrou com os RR, estando a A concessionada para tal fornecimento pelo Município de Fafe.

A R B………. veio contestar invocando a prescrição de parte da dívida pelo decurso de mais de seis meses. E em sede de impugnação alegou que procedeu à construção de 4 pavilhões na Zona …………, em regime de propriedade horizontal, tendo sido, por imposição da A, colocado um contador totalizador com o fim último de controlar as percas de água depois de apurada a soma dos contadores instalados em cada pavilhão. No entanto, não existe qualquer ponto de água para as partes comuns, pelo que o contador totalizador não pode apresentar quaisquer consumos por parte da contestante, sendo por isso que nunca foi apresentado qualquer aviso de cobrança e pugnando assim pela improcedência da acção.

Tendo a A respondido à matéria da excepção, foi proferida decisão que, julgando verificada a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal Judicial de Fafe para conhecer desta acção, absolveu os RR da instância.

Apelou a A, mas o Tribunal da Relação de Guimarães manteve a decisão de incompetência material do tribunal recorrido.

E requerendo revista excepcional desta decisão, invocando a contradição de acórdãos sobre esta questão, pede a recorrente que a revista seja admitida e que o recurso seja julgado procedente, ordenando-se que a acção prossiga os seus termos.

A revista excepcional não foi admitida, ordenando-se no entanto, a remessa dos autos para o Tribunal dos Conflitos, por se ter entendido que era este o recurso adequado, nos termos do nº 2 do artigo 107º do CPC, e por aplicação da regra do aproveitamento dos recursos interpostos com erro na sua espécie, conforme determina o nº 2, alínea a), do artigo 685º-C do CPC.

Distribuído o processo, foram os autos presentes ao Ministério Público que emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, sustentando que se deve atribuir a competência para a causa aos Tribunais Administrativos, argumentando para tanto que “foi ao abrigo dum contrato de concessão, de cunho claramente administrativo, que a concessionária, ora autora, agindo em substituição do Município de Fafe, passou a gerir o sistema municipal de abastecimento de água aos munícipes, sendo que continua aquela gestão continua a pertencer ao Município de Fafe”.

Este parecer foi devidamente notificado e não suscitou qualquer reacção das partes.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2---

Resulta do artigo 211.º, n.º1, da Constituição da República (CRP), que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Nesta linha, concretiza o artigo 66.º do Código de Processo Civil que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Por outro lado, consagra ainda o artigo. 212.º, nº 3, da CRP, que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, vindo a sua competência a ser concretizada no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/20002 de 17 de Fevereiro (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 20/2012, de 14/05; da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12; do DL n.º 166/2009, de 31/07; da Lei n.º 59/2008, de 11/09; da Lei n.º 52/2008, de 28/08; da Lei n.º 26/2008, de 27/06; da Lei n.º 2/2008, de 14/01; da Lei n.º1/2008, de 14/01; da Lei n.º 107-D/2003, de 31/12; da Lei n.º 4-A/2003, de 19/02 e objecto da Rectificação n.º 18/2002, de 12/04 e da Rectificação n.º 14/2002, de 20/03.), embora em termos meramente exemplificativos.
Ora, é entendimento pacífico que a competência material dum tribunal constitui um pressuposto processual, sendo aferida pela questão ou questões que o A coloca na respectiva petição inicial e pelo pedido formulado, conforme ensina Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, pgª 91). E nesta lógica, a apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a acção é proposta, aferindo-se portanto pelo “quid disputatum”, ou seja pelo pedido do A e respectiva causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pelo Autor.
Foi também neste sentido que se firmou a jurisprudência, podendo ver-se o acórdão do STJ de 14/5/2009, www.dgsi.pt, de cujo sumário se conclui que “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”.
Será portanto a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o seu conhecimento.
Ora, esta acção começou com um requerimento de injunção para pagamento de facturas de água, alegando a requerente que os RR não pagaram determinadas quantias de água fornecida entre 2006 e 2008, consoante contrato de fornecimento assinado pelo legal representante da 1º R, em Agosto/2006, água que consumiram, pois tiveram-na no prédio e puderam usá-la na limpeza das partes comuns ou noutro tipo de utilização que lhe quiseram dar. E sustenta-se em facturas que lhes foram enviadas para o local solicitado pelos requeridos, onde se menciona os montantes respeitantes ao consumo de água, a que acresce um valor respeitante a “preço fixo”.
A esta posição da requerente A........ contrapôs a requerida B………., para além da prescrição de parte da dívida, que efectivamente procedeu à construção de 4 pavilhões na Zona ………….., em regime de propriedade horizontal, tendo sido, por imposição da A, colocado um contador totalizador com o fim último de controlar as percas de água depois de apurada a soma dos contadores instalados em cada pavilhão. No entanto, não existindo qualquer ponto de água para as partes comuns, tal contador totalizador não pode representar quaisquer consumos de que tenha beneficiado.
Donde se conclui que o litígio compreende uma questão jurídica respeitante ao pagamento de encargos fixos e consumos de água fornecida pela A, no âmbito dum contrato com colocação dum contador totalizador e das normas que o regem.
Por outro lado, não está em causa que a A é a empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento do Município de Fafe, por força de contrato celebrado com este último.
Efectivamente, conforme se estabelece no nº 1 do artigo 26.º da Lei nº 159/99, de 14/09, é da competência dos órgãos municipais o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos nos seguintes domínios:

a) Sistemas municipais de abastecimento de água;

b) Sistemas municipais de drenagem e tratamento de águas residuais urbanas;

c) Sistemas municipais de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.

No entanto, e conforme resulta do artigo 6.º do DL nº 379/93 de 5/11, a sua exploração e gestão tanto pode ser directamente efectuada pelos respectivos municípios ou associações de municípios, como pode ser atribuída, em regime de concessão, a entidade pública ou privada de natureza empresarial, bem como a associação de utilizadores, sendo o prazo mínimo de concessão de 5 anos e máximo de 50 (artigo 8º).
E enquanto durar a concessão, a propriedade dos bens integrados nos sistemas municipais e a ela afectos pertence à concessionária, revertendo para os respectivos municípios no termo da concessão, conforme estabelece o artigo 7.º deste diploma.
Por outro lado, e nos termos do seu artigo 13º, nº 2, “a concessionária, precedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização, e está autorizada a recorrer ao regime legal da expropriação, nos termos do Código das Expropriações, bem como aos regimes de empreitada de obras públicas e de fornecimento contínuo”.
Donde resulta que, no caso em análise, a A, enquanto concessionária do serviço de fornecimento de água aos munícipes de Fafe, prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, o que nos permite dar como certo que, subjacente à questão em controvérsia, está uma relação jurídica administrativa, pois como advoga Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, Lições, 2000, pg 79.), têm de se considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
Podemos assim concluir que a matéria em causa na presente acção cai no âmbito dos litígios a que alude o artº 1º, nº 1, do ETAF, sendo competentes para a sua apreciação os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, pois, e tal como se decidiu no conflito 17/10, o concessionário, obtida a necessária aprovação pelo concedente, detém o poder de fixar, liquidar e cobrar taxas aos utentes, poderes que lhe são atribuídos pelo artigo 13º, nº 2 do DL nº379/93 de 5/11, tratando-se portanto dum poder conferido por normas de direito administrativo.

Por outro lado, trata-se de matéria que cai na previsão da alínea d) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, cabendo na esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais por estarmos perante um litígio que tem por objecto a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, e que advenham do exercício de poderes administrativos, assim se afastando esse conhecimento da esfera de competência dos tribunais judiciais.
Resta por último, determinar, no seio da categoria dos tribunais administrativos e fiscais, qual o concretamente competente para a acção.
Ora, atendendo a que este litígio assenta na exigência do pagamento de consumos de água, e demais encargos relativos à disponibilização dum contador totalizador, a questão suscitada reveste uma natureza fiscal entendendo-se como tal, “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas”, conforme se decidiu no acórdão de 9/11/2010, proferido no conflito nº 17/10, e que seguiu a posição já antes assumida no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 26/09/2006, Processo n.º 14/06.

Diga-se ainda que o Pleno da Secção do Contencioso Tributário já se pronunciou sobre esta questão aceitando esta competência, conforme decorre do acórdão de 10/04/2013, proferido no processo nº 15/12, onde se decidiu que:

“No domínio da vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei nº2/ 2007, de 15 de Janeiro) e do DL nº 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes do abastecimento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de tarifas usado nas anteriores Leis das Finanças Locais, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal”.

Podemos assim, concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação é a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, através dos tribunais tributários, atento o disposto no artigo 49º, n.º 1, alínea c), do ETAF.

3---

Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso declarando-se competentes os tribunais tributários para conhecer da presente acção.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 26 de Setembro de 2013. - António Gonçalves Rocha (relator) – António Bento São Pedro – Fernando da Conceição Bento – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues – Jorge Artur Madeira dos Santos.