Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:011/05
Data do Acordão:11/08/2005
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANTÓNIO ALVES VELHO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
TRIBUNAL DOS CONFLITOS.
RADIODIFUSÃO PORTUGUESA.
RELAÇÃO JURÍDICA DE EMPREGO PÚBLICO.
Sumário:Não obstante existir um regime-regra de direito privado para as relações da RDP com o respectivo pessoal, os trabalhadores oriundos da ex-EN, mantêm, ao serviço da RDP, um regime de direito público, pelo que deve concluir-se que os litígios relativos ao seu estatuto laboral emergem de uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral de direito privado.
Nº Convencional:JSTA00062619
Nº do Documento:SAC20051108011
Data de Entrada:06/29/2005
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 4º JUÍZO DO TRIBUNAL DO TRABALHO DE LISBOA E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC RL.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT -- CONFLITO COMPETÊNCIA.
Legislação Nacional:DL 274/86 DE 1986/09/04 ART44.
DL 167/84 DE 1984/05/22 ART59.
DL 2/94 DE 1994/01/20 ART25.
CONST97 ART212 N3.
ETAF84 ART3 ART4 ART51 N1.
LOFTJ99 ART18 N2 ART85 B F.
CPC96 ART66.
Jurisprudência Nacional:AC CONFLITOS PROC13/03 DE 2003/07/03.; AC STJ PROC3291-6ª DE 2002/11/19.; AC TC 683/99 IN BMJ N492 PAG128.
Referência a Doutrina:VIEIRA DE ANDRADE JUSTIÇA ADMINISTRATIVA PAG71 PAG82.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
1. - A... intentou no Tribunal do Trabalho de Lisboa acção declarativa contra “RDP — Radiodifusão Portuguesa, SA”, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe € 4 418, 25, correspondentes a diferenças salariais liquidadas até à data da sua aposentação, com juros, por indevido enquadramento no nível e escalão que definem a remuneração da respectiva categoria profissional.
Contestando, a Ré excepcionou a incompetência material do Tribunal, que defende caber ao foro administrativo, a pretexto de ser o A. funcionário público, cujo vínculo assenta em contrato administrativo de provimento e de nomeação definitiva.
A excepção improcedeu na 1ª instância, mas a Relação revogou a decisão, julgando incompetente tribunal judicial e competente a jurisdição administrativa, assim se configurando a situação prevista no n.° 2 do art. 107° CPC, que defere a este Tribunal a fixação do tribunal competente.
O Recorrente sustenta ser o Tribunal do Trabalho o competente para sindicar as matérias em debate na acção, apoiando-se na seguinte síntese conclusiva:
- Ao tempo da nacionalização e fusão de várias empresas de rádio pelo DL 674-C/75, o A. era funcionário público dos quadros permanentes da “Emissora Nacional de Radiodifusão”;
- Pelo Estatuto da RDP aprovado pelo DL 167/84, de 22/5, o legislador estabeleceu, para todo o pessoal da RDP, como regime regra, as leis gerais do trabalho (art. 58°), com exclusão, apenas, das matérias aí referidas, quanto aos trabalhadores da extinta EN;
- Pelo art. 25° do Estatuto aprovado pelo DL 2/94, de 10/1, manteve-se a mesma submissão da generalidade das matérias ao regime jurídico do contrato individual de trabalho e á contratação colectiva, tendo-se acrescentado às matérias antes excepcionadas a das férias, faltas e licenças, acidentes em serviço e protecção na maternidade e paternidade;
- A enumeração das matérias excepcionadas da aplicabilidade do regime do contrato individual de trabalho e da convenção colectiva, que se contém nos arts. 59° e 25° do anterior e do actual Estatuto, é uma enumeração taxativa, o que impede o julgador de estender tal regime excepcional a matérias que, mesmo respeitando a trabalhadores com vínculo á função pública, o legislador entendeu não incluir nas excepções;
- O regime legal da função pública não se aplica, pois, aos funcionários públicos da extinta EN em toda a gama de questões das relações de trabalho que o legislador entendeu remeter para as leis gerais do trabalho, nomeadamente as questões dos autos: categorias e classes profissionais e descrição das respectivas funções, promoções, tabelas salariais e remunerações;
- O Tribunal recorrido não sindicou se as questões eram reguladas pelas leis gerais do trabalho e, portando, excluídas da competência da jurisdição administrativa, ficando-se pela afirmação genérica e inócua de que a extinção ou a modificação do contrato do Autor está sujeito a um regime de direito público e administrativo, o que não está em causa no processo;
- Para sindicar e julgar em matérias não incluídas nas excepções é apenas competente o tribunal do trabalho;
- O caso presente versa a interpretação e aplicação das cláusulas do acordo de empresa e das regras gerais de direito do trabalho relativas a matérias salariais e de funções, categoria e mérito e desempenho, que o Estatuto remeteu à livre negociação colectiva;
- Primeiro que ser uma questão directamente de competência e jurisdição em razão da matéria, o caso dos autos é de escolha e fixação do regime jurídico aplicável às questões a dirimir e só indirecta ou mediatamente (por acidente) questão de competência e jurisdição.
- Foram violadas as normas dos arts. 9°-2 e 11° C. Civil, 44° do Estatuto anexo ao DL 274/76, 58° do Estatuto anexo ao DL 167/84, 25° do Estatuto anexo ao DL 2/94. 85° da LOFTJ e 4°-3-d) do ETAF.
A Recorrida, por sua vez, em abono da tese da competência dos Tribunais administrativos, conclui:
- O A., na qualidade de trabalhador oriundo da antiga “Emissora Nacional”, mantém o estatuto de funcionário do Estado, é titular de um vínculo de natureza pública;
- Entre A. e R. não existe uma relação laboral de direito privado, nem nunca foi modificada a natureza daquele vínculo;
- Inexistindo entre as partes uma relação de trabalho subordinado, as questões a apreciar caem na competência dos Tribunais Administrativos, seja qual for a natureza das normas a aplicar na resolução do diferendo.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da confirmação do acórdão impugnado, por dever considerar-se que o litígio emerge de uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral de direito privado.
2. - Vem assente o seguinte quadro fáctico:
O Autor foi admitido ao serviço da Emissora Nacional de Radiodifusão em 29/7/960, ao abrigo dos arts. 13º do DL 41 484, de 30/11/57 e 28° do DL 41 485, da mesma data;
Em 29/8/60 a EN inscreveu o A. na Caixa Geral de Aposentações;
Em 14/12/62, o A. passou a exercer as funções de 3º oficial, mediante acordo celebrado com a EN, ao abrigo do disposto no dito art. 28° do DL 41 485;
Em 9/5/67, o A. celebrou com a EN outro acordo escrito, para, ao seu serviço, desempenhar as funções de assistente e programas literários de 3ª classe, tendo tomado posse em 3/7/67;
Por Portaria de 10/8/67, visada pelo Tribunal de Contas, o A. foi provido definitivamente no cargo de assistente de programas literários de 3ª classe e integrado no quadro de pessoal permanente da Emissora Nacional.

3. - Mérito do recurso:
3. 1. - Tem-se por adquirido, e nisso não divergem as Partes, que o Autor era funcionário público dos quadros da extinta “Emissora Nacional de Radiodifusão”, onde foi admitido por contrato administrativo de provimento e, depois, definitivamente provido no cargo de assistente e programas literários, vínculo que foi sendo mantido nos sucessivos Estatutos da actual Radiodifusão Portuguesa — arts. 44° do DL 274/86, 58° e 59° do DL 167/84 e 25° do DL 2/94.
Este art. 25°, que actualmente rege sobre a temática em litígio, dispõe assim:
1. Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as relações entre a sociedade e o pessoal ao seu serviço regem-se pelo regime do contrato individual de trabalho ou pela lei civil e pelo disposto nestes Estatutos;
2. Ressalvado o disposto no número anterior, os trabalhadores oriundos da extinta Emissora Nacional de Radiodifusão com provimento definitivo à data da sua extinção (...) mantêm a natureza vitalícia do respectivo vínculo á função pública, naquilo que é inerente á natureza do provimento;
3. Aos trabalhadores referidos no número anterior continuarão a ser aplicáveis as normas respeitantes aos funcionários da administração central, no que se refere á extinção ou modificação do seu vínculo jurídico, ao regime disciplinar, ao regime de férias, faltas e licenças, de assistência a familiares, da protecção da maternidade e paternidade, aos benefícios concedidos pela (...ADSE), à aposentação e pensão de sobrevivência e ao abono de família e prestações complementares.

Fora de qualquer dúvida, pois, que o Recorrente manteve o estatuto de funcionário público e o respectivo vínculo jurídico “naquilo que é inerente à natureza do provimento”, ou seja, ligado ao carácter permanente do exercício de funções próprias no serviço público, determinado pela integração no quadro de pessoal, com subordinação a um regime específico de direito público, traduzido num conjunto de direitos e deveres estatutariamente definidos.
A relação entre o A. e a R., dada essa qualidade de funcionário, não integra um contrato de trabalho que deva reger-se pelo Código do Trabalho. Do mesmo modo que o contrato de trabalho com pessoas colectivas públicas não confere a qualidade de funcionário público ou de agente administrativo, a existência de um quadro de pessoal em regime de direito público ao serviço de entidade que deixou de ter aquela natureza de ente público não determina, só por si, a perda da qualidade do servidor e do que é inerente ao seu estatuto pessoal.
Por isso, como já se afirmou no acórdão deste Tribunal de 03/7/03 (Proc. 13/03), em que a ora Recorrida era também Parte e com objecto idêntico, com cópia junta aos autos, “não obstante um regime-regra de direito privado para as relações da RDP com o respectivo pessoal, é fora de dúvida que o recorrente, enquanto trabalhador oriundo da ex-EN, mantém, ao serviço da ora Recorrida, um regime de direito público (...) pelo que deve concluir-se que o litígio emerge de uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral de direito privado (...)“.

3. 2. - Certo que, como alerta o Recorrente, as questões em discussão neste processo incidem sobre a definição das categorias profissionais, promoções, funções exercidas e fixação das remunerações devidas, em suma, consistem em averiguar e decidir o correcto enquadramento profissional do Autor para determinação da respectiva remuneração, matéria que se prende, fundamentalmente, coma interpretação e aplicação de normas do “Acordo de Empresa” e de leis gerais do trabalho, que não especificamente de direito administrativo.
Nesta óptica, a questão que se coloca é saber se a competência material do tribunal deve aferir-se pelo regime de direito público da relação de emprego ou, antes, pelo regime substantivo ou natureza das normas que o tribunal deve aplicar na resolução da questão litigiosa.
A competência em razão da matéria afere-se, em princípio, pelos termos em que o autor propõe ao tribunal que decida a questão, configurada pela qualidade ou natureza das partes, pelo pedido e pela causa de pedir.
Segundo os art. 18° da LOFTJ (Lei 3/99, de 13/1) e 66.° CPC, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
Assim, a atribuição de competência a tribunal de jurisdição especial depende da verificação de um duplo pressuposto: - o objecto da acção e a existência de uma norma específica atributiva de competência à jurisdição especial.
À mesma regra não escapam as causas que, na ordem dos tribunais judiciais, esteja, por lei, atribuídas a tribunais de competência específica, como sucede com os tribunais do trabalho (art. 18°-2).
A estes compete, na verdade, conhecer das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e das relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho e das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho — art. 85°- b) e f) da LOFTJ.
A competência da jurisdição administrativa encontra-se prevista e regulada nos arts. 212.°-3 da Constituição da República e nos arts. 3º, 4.° e 51º do ETAF (DL n.° 129/84, de 27/4).
Aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, do mesmo passo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (arts. 212.°-3 e 3º, 4.°-1 e 51.°-1 do ETAF).
A norma constitucional e os preceitos de direito comum remetem, assim, para o conceito de “relação jurídica administrativa” como critério de determinação da competência da justiça administrativa.
Daí que, como se vem reafirmando, só interessem à justiça administrativa as relações jurídicas administrativas públicas, reguladas por normas de direito administrativo, passando, em regra, a determinação das competências por um critério material que assente na distinção material entre o direito público e o direito privado (Cfr. Ac. STJ de 19/11/02, Proc. 3291 – 6ª; VIEIRA DE ANDRADE, “Justiça Administrativa”, 71).
Acontece que a lei não contempla exclusiva e isoladamente um critério material, atendendo também a elementos integradores de critérios de natureza funcional e orgânica.
Aqui se incluem posições jurídicas subjectivas de particulares e, particularmente, os estados ou situações jurídicas estatutárias que, concretizando-se em posições jurídicas complexas, “formam um conjunto ordenado de direitos e deveres, derivados de um único acto ou facto jurídico”, como acontece com o estatuto de funcionário público inerente à nomeação definitiva (ob. cit., 82).
Derivado de um acto jurídico de natureza pública o “status” correspondente à posição jurídica do Recorrente, que nunca modificado por lei, deverá, então, reger todo o complexo de direitos e deveres que o enformam, abrangido pelos direitos e interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 212°-3 CR e 3° ETAF).
Ora, como se escreveu no Ac. TC n.° 683/99 (BMJ 492°-l28), mesmo que não se funde, como no caso, em acto administrativo de nomeação de funcionário, “a especificidade da relação jurídica de emprego público (...) resulta, antes do mais, do facto de ela se estabelecer entre um particular e o Estado, estando tal relação colimada à satisfação das necessidades de pessoal da Administração para a prossecução do interesse público. Como resultado da sua orientação para a satisfação do interesse público, os trabalhadores da função pública estão sujeitos a um regime jurídico próprio, substancialmente diferente do regime jurídico que disciplina os trabalhadores do sector privado”.
Nesta perspectiva, parece mesmo dever afirmar-se que, quanto ao estatuto laboral do Autor, o que reveste natureza excepcional não será a aplicabilidade do conjunto de normas que fazem parte do estatuto dos funcionários da administração central, justamente porque esse é também o seu estatuto, mas as normas do contrato individual de trabalho e do “acordo de Empresa” que, integrando-se no conjunto de direitos e deveres que enformam esse estatuto, regulam, nessa parte, o conteúdo da relação jurídica de fonte e natureza administrativa.
Em causa, pois, uma relação jurídica de emprego público e não uma relação laboral de direito privado cujo objecto, no complexo e concurso de normas materiais aplicáveis, cabe aos tribunais administrativos apreciar e dirimir.
Nesta conformidade, não se vêm razões para divergir da solução adoptada no dito acórdão de 03/07/03.
4. - Termos em que, decidindo, se nega provimento ao recurso e se julga materialmente incompetente, para conhecer do objecto da acção, o Tribunal do Trabalho de Lisboa e competentes os Tribunais Administrativos.
- Sem custas.
Lisboa, 8 de Novembro de 2005. - António Alberto Moreira Alves Velho (relator) - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Maria Angelina Domingues - João Manuel Belchior - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira - Camilo Moreira Camilo