Sentença de Julgado de Paz
Processo: 87/2018 - JPAGB
Relator: CRISTINA POCEIRO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO. NULIDADE. DEVER DE RESTITUIR.
Data da sentença: 11/12/2018
Julgado de Paz de : AGUIAR DA BEIRA
Decisão Texto Integral:
Processo nº 87/2018 – JP Aguiar da Beira
SENTENÇA
I – RELATÓRIO:
Identificação das partes:
Demandante: A, portador do cartão de cidadão número , emitido pela República Portuguesa, válido até --- e do número de identificação fiscal--- , residente na --- Rio de Moinhos, Sátão;
Demandada: B, portadora do cartão de cidadão número --- , emitido pela República Portuguesa, válido até --- e do número de identificação fiscal ---, residente na ---- Sátão.---
Objeto do litígio, tramitação e saneamento:

O demandante instaurou a presente ação declarativa de condenação pedindo, com base nos fundamentos constantes do respetivo requerimento inicial, que aqui se reproduzem, que a mesma seja julgada procedente e, em consequência, que seja declarado nulo por falta de forma, o mútuo feito pelo demandante à demandada, em 30 de novembro de 2017, no valor de € 4.000,00 (quatro mil euros), e que a demandada seja condenada a restituir ao demandante a referida quantia, por via do efeito da declaração daquela nulidade, acrescida de juros, à taxa legal de 4%, desde a citação até efetivo e integral pagamento, com custas e procuradoria pela demandada.

Para tanto, o demandante alegou, resumidamente, que no dia 30 de novembro de 2017, emprestou à demandante, a pedido desta, a quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), que lhe entregou através de uma transferência bancária e de um depósito em numerário, no valor de € 2.000,00 (dois mil euros) cada, para aquela sinalizar a compra de um imóvel, e que deveria restituir até ao fim do mês de março de 2018, o que não sucedeu, apesar de interpelada para tal. Juntou três documentos ao respetivo requerimento inicial, procuração forense e dez documentos na audiência de julgamento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


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A demandada, pessoal e regularmente citada, apresentou contestação, cujo teor aqui se dá por reproduzido, na qual, resumidamente, impugna os factos alegados pelo demandante e respetivos documentos, alegando que a instauração da ação se deve ao fim da relação de cama, mesa e habitação que existiu entre as partes, admitindo que o demandante transferiu para a sua conta o valor de € 2.000,00 (dois mil euros) para pagamento de despesas de alimentação e de um cartão do Grupo ---; que sinalizou a compra de um imóvel, pelo valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), no âmbito de um contrato promessa que celebrou em 08 de setembro de 2017, concluindo pela improcedência da ação e absolvição da demandada dos pedidos. Juntou cinco documentos e procuração forense, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
O demandante exerceu o respetivo contraditório, concluindo como no requerimento inicial.
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Apesar de tentada pelas partes, não foi possível alcançar a resolução do litígio através do serviço de mediação existente neste julgado de paz.
A audiência de julgamento decorreu com observância dos legais formalismos.
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Mantêm-se os pressupostos de regularidade e validade da instância, uma vez que o julgado de paz é competente em razão do objeto, do valor, da matéria e do território (artigos 6º, nº 1, 8º, 9º, nº 1, alínea a) e 12º, nº 1, todos da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhes foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há exceções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Valor da ação: fixa-se o valor da presente ação em € 4.000,00 (quatro mil euros), em conformidade com a posição das partes e as disposições conjugadas dos artigos 296º, nº 1, 297º, nº 1, 299º, 305º e 306º, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho.
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Questão a decidir: se as partes celebraram um contrato de mútuo, nulo por falta de forma, com a consequente obrigação da demandada restituir a quantia peticionada nos autos.
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Assim, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Discutida a causa, consideram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma:
1. No dia 30 de novembro de 2017, o demandante fez uma transferência bancária, no valor de € 2.000,00 (dois mil euros), da sua conta bancária com o número 0753013006600 para a conta bancária da demandada com o número 5280958358;
2. No dia 30 de novembro de 2017, foi efetuado um depósito em numerário, no valor de € 3.000,00 (três mil euros), na conta bancária da demandada com o número 5280958358;
3. Em 15 de junho de 2018, o demandante enviou uma carta registada com aviso de receção à demandada, com o seguinte teor: “(…) Como é do seu conhecimento, em Novembro de 2017 emprestei-lhe a quantia de 4.000,00€ (quatro mil euros). Assim, dado que preciso de tal valor para pagar um tratamento médico que um dos meus filhos vai efetuar, agradeço que me restitua a referida quantia até ao fim do corrente mês de Junho de 2018 (…).”, que aquela recebeu;
4. Em 30 de novembro de 2017, o demandante e a demandada mantinham uma relação amorosa, que terminou no início de 2018;
5. Em 26 de julho de 2016, o demandante e a demandada adquiriram um cartão ao Grupo --- respeitante ao programa ----, pelo preço de € 1.950,00, IVA incluído, que lhes permitia descontos de 20% em reservas, titulado pelo contrato com o número PPD 76813;
6. Relativamente ao contrato referido no número anterior e até agosto de 2017, o demandante fez várias transferências da sua conta bancária com o número -----------600 para a conta bancária com o número ---------000106, no valor total de € 1.141,22 (mil, cento e quarenta e um euros e vinte e dois cêntimos);
7. Em resposta à carta referida no anterior número três, no dia 29 de junho de 2018, a demandada enviou uma carta registada com aviso de receção ao demandante, com o seguinte teor: “Estranho o teor da aludida carta, dado que, jamais em tempo algum V.ª Ex.ª me emprestou € 4.000,00 ou qualquer outra quantia, como, aliás, muito bem sabe.”, que aquele recebeu;
8. Em 08 de setembro de 2017, a demandada outorgou um contrato promessa de compra e venda de um imóvel, com um sinal no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), cujo contrato definitivo de compra e venda foi outorgado em 17 de setembro de 2018;

E consideram-se não provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma:

a) Que o demandante, no dia 30 de novembro de 2017, emprestou à demandada, a pedido desta, a quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), que a demandada deveria restituir ao demandante;
b) Que a quantia referida na anterior alínea a) foi entregue à demandada através da transferência bancária, no valor de € 2.000,00 (dois mil euros) referida no anterior número um dos factos provados, e através de um depósito em numerário, no valor de € 2.000,00 (dois mil euros), feito pelo demandante na conta da demandada;
c) Que a quantia referida na anterior alínea a) foi utilizada pela demandada para sinalizar a compra de um imóvel;
d) Que entre o demandante e a demandada foi acordado que a restituição da quantia referida na anterior alínea a) seria efetuada pela demandada até ao fim do mês de março de 2018;
e) Que a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), transferida pelo demandante para a conta da demandada, referida no número um dos factos provados serviu para o demandante contribuir no pagamento de despesas de alimentação na constância da relação amorosa de ambos e para pagamento da aquisição do referido cartão do Grupo ---;

Motivação:

A convicção do tribunal fundou-se na posição das partes quanto aos factos admitidos por acordo e na apreciação e conjugação crítica de toda a prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, ou seja, nos documentos juntos aos autos que infra se identificarão, na prova testemunhal apresentada e nas declarações das partes.

Atendeu-se às regras respeitantes ao ónus da prova, de acordo com os artigos 341º e seguintes do Código Civil (diploma a que pertencem todas as normas posteriormente referidas sem expressa menção da sua fonte legal) e também às regras de experiência comum (artigo 351º e artigo 607º, nº 4, parte final do Código de Processo Civil).

Quanto aos documentos juntos aos autos, foram considerados o documento comprovativo da transferência bancária de fls. 4; o documento comprovativo do depósito em numerário de fls. 5; a carta registada com aviso de receção de fls. 6 a 7/verso ; o contrato número PPD 76813 de fls. 39 e 40; a comunicação do Grupo --- de fls . 23 e 24; a carta registada com aviso de receção de fls. 25 e 26; o contrato promessa de compra e venda de fls. 45 a 57; o contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca de fls. 58 a 69; e os comprovativos de pagamento de fls. 71 a 79 dos autos. Com efeito, a realidade que demonstram foi corroborada pela conjugação com os demais meios probatórios produzidos em audiência de julgamento, conforme infra se explanará.

A prova testemunhal e por declarações de parte foi, criticamente, apreciada pelo tribunal, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (artigo 396º do Código Civil e artigos 466º, nº 3 e 607º, nºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil).

A testemunha C, apresentada pelo demandante, considerando a razão de ciência invocada, que referiu ser amigo do demandante há vários anos, que frequentava a casa deste, incluindo durante a relação amorosa que o mesmo manteve com a demandada, mereceu reservas do tribunal porque muito vago e impreciso, fazendo frequente referência ao que lhe foi dito pelo demandante, demonstrando um limitado conhecimento direto dos factos em discussão, especialmente no que respeita ao empréstimo aqui em discussão.

Por sua vez, a testemunha apresentada nos autos pela demandada, D, considerando a razão de ciência invocada, que referiu ser amiga da demandada há muitos anos, que “tomam café juntas todos os dias” e chegou a tomar café também com o demandante, declarou que não sabia nada sobre o empréstimo em discussão nos autos e também não se afigurou pertinente na descoberta da verdade porque muito vago, fazendo também frequente referência ao que lhe foi dito pela demandada, demonstrando um limitado conhecimento direto dos factos em discussão, incluindo sobre as concretas circunstâncias da relação amorosa estabelecida entre as partes.

As declarações das partes, atento o manifesto interesse que têm no desfecho da presente causa, só foram valoradas na medida do que se mostraram coerentes entre si ou corroboradas pelos supra referidos meios de prova e as regras de experiência e da lógica. Sendo que, por isso mesmo, o tribunal, tanto em si mesmas, como quando conjugadas entre si, não lhes deu total credibilidade quanto às respetivas versões dos factos apresentadas, uma vez que as declarações de ambas as partes foram contraditórias e não se revelaram suficientemente espontâneas, coerentes e objetivas, mas claramente cautelosas e reservadas. O demandante apresentando uma versão dos factos quanto aos motivos do pedido de empréstimo pela demandada não espelhada no seu requerimento inicial, confusa e imprecisa, sem qualquer suporte nos demais meios de prova apresentados. A demandada negando o pedido de empréstimo, referindo-se a uma vida em comum na casa do demandante até junho de 2017 e após na sua própria casa até fevereiro ou março de 2018, mas sendo notória alguma mágoa e ressentimento pela forma como a relação com o demandante acabou. Circunstâncias que motivaram que as respetivas declarações fossem valoradas com reserva.

Assim, considerando ainda a relevância dos princípios da imediação na produção da prova oral e da livre e fundada convicção do julgador, os supra referidos factos foram considerados, respetivamente, provados e não provados atendendo à conjugação dos apontados meios de prova nos termos seguintes e que, sucintamente (artigo 60º, nº 1, alínea c) da Lei nº 78/2001, de 13 de julho), se passam a indicar:

Factos provados sob o nº 1: admitidos por acordo das partes, e corroborados pelo documento de fls. 4 dos autos;

Factos provados sob o nº 2: resultam comprovados pelo documento de fls. 5 dos autos; sendo que, quanto à data, ao valor total depositado e titularidade da respetiva conta, as declarações das partes se mostraram conformes entre si, já que não podiam negar tais factos, que resultam expressamente do documento;

Factos provados sob o nº 3: resulta da carta registada com aviso de receção de fls. 6 a 7/verso dos autos, estando a interpelação escrita admitida por acordo das partes, e encontrando-se o aviso de receção assinado pela própria demandada.

Factos provados sob o nº 4: resultam comprovados pelas próprias declarações das partes, já que ambas admitiram a existência de um relacionamento amoroso nessa ocasião e que terminou no início de 2018, referindo a demandada que teria sido em fevereiro ou março. Note-se, porém, que apesar da demandada referir na respetiva contestação que a relação com o demandante era uma “relação de cama, mesa e habitação”, não foram alegados factos que permitissem chegar a tal conclusão. Aliás, o tribunal pode constatar em audiência como as próprias partes definiam e encaravam a sua própria relação amorosa de forma diferente, o demandante como sendo de “namorados” e a demandada como sendo de casal. As testemunhas apresentadas também confirmaram a existência da referida relação amorosa entre as partes, atenta a respetiva razão de ciência invocada, acima já mencionada, mas sem demonstrarem pormenorizado conhecimento pessoal e direto das concretas circunstâncias da relação.

Factos provados sob o nº 5: resultam admitidos por acordo das partes, uma vez que comprovados pelo contrato número PPD 76813 de fls. 39 e 40 dos autos, não impugnado quanto à celebração e condições contratuais indicadas.

Factos provados sob o nº 6: resultam comprovados pela conjugação do contrato número PPD 76813 de fls. 39 e 40 dos autos com o documento de fls. 23 e 24 dos autos (no que respeita à conta bancária aí indicada destinada ao pagamento do referido cartão) e com os documentos de fls. 71 a 79 dos autos, cujo teor foi confirmado pelo demandante, resultando expressamente dos documentos de fls. 71, 73 a 75 e 77 a 79 que foram transferências feitas pelo demandante para a conta bancária indicada no documento de fls. 23, com a referência do número do contrato constante de fls. 39 dos autos; sem contraprova.

Factos provados sob o nº 7: resulta da carta registada com aviso de receção de fls. 25 e 26 dos autos, cujo aviso de receção está assinado pelo próprio demandante; sem contraprova.

Factos provados sob o nº 8: resulta do contrato promessa de compra e venda de fls. 45 a 57 dos autos e do contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca de fls. 58 a 69 dos autos, corroborados pelas declarações da demandada e sem prova do contrário pelo demandante.

Factos não provados sob as alíneas a) a d): resultaram não provados por falta de prova inequívoca e concludente nesse sentido, e cujo ónus competia ao demandante, nos termos do artigo 342º, nº 1, e permanecendo controvertidos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova (artigo 346º). Com efeito,

Os documentos de fls. 4 e 5 dos autos, por si só, apenas comprovam, respetivamente, os factos elencados nos anteriores números um e dois dos factos provados, e não que a sua causa foi o empréstimo invocado pelo demandante (um empréstimo de € 4.000,00 (quatro mil euros) deve ser titulado por documento assinado pelo mutuário). O documento de fls. 5 dos autos não se encontra sequer assinado, não comprovando, portanto, que o depósito foi realizado pelo demandante (procedimento bancário habitual quando um terceiro faz um depósito numa conta). Cada parte referiu que foi ela própria que fez o depósito no banco, referindo a demandada que todo o dinheiro era seu, enquanto o demandante que só € 2.000,00 (dois mil euros) eram seus e os restantes € 1.000,00 (mil euros) da demandada.

A testemunha C apenas esclareceu que durante um jantar na casa do demandante, onde também estava a demandada, o demandante disse que ia “vender um carro dele, um ---, que era uma relíquia do pai ou do avô” e que com o subsídio de Natal ia emprestar algum dinheiro à demandada; e que a demandada comentou que queria “comprar algo ou amortizar algo” e que o demandante devia ser uma pessoa mais ativa e ambiciosa. Estes foram os únicos factos que a testemunha relatou terem ocorrido na sua presença e pela ordem indicada. No mais referindo que o demandante disse que ia emprestar dinheiro à demandada; que a demandada não lhe pagou, pelo que diz o demandante; e referindo, em jeito de conclusão, que a demandada pediu dinheiro emprestado ao demandante e que este aceitou fazê-lo. Não relatou com precisão e pormenor qualquer outro momento em que tivesse presenciado o pedido de empréstimo pela demandada aqui em causa ou o compromisso desta restituir qualquer dinheiro que lhe tivesse sido entregue pelo demandante.

O demandante, em declarações, não fez qualquer alusão ao dito jantar, antes tendo afirmado que a demandada lhe fez o pedido de empréstimo, primeiro, numa viagem que faziam do Porto, na sequência daquela ter recebido um telefonema do banco; para logo de seguida referir que foi num telefonema que a demandada lhe fez quando ele estava a trabalhar na Câmara (do ---). Referiu que vendeu o dito carro por € 2.300,00 (dois mil e trezentos euros), mas que ainda tem a declaração de venda e que ainda está registado em seu nome porque o carro está numa oficina em reparação, mas não apresentou qualquer meio de prova a corroborar a realização deste negócio e que entregou esse dinheiro à demandada, a título de empréstimo.

O documento de fls. 45 a 57 dos autos demonstra que a compra do imóvel alegada pelo demandante foi sinalizada em setembro de 2017 pela demandada, quando os documentos referidos anteriormente se reportam a 30 de novembro de 2017. O demandante procurou, então, nas respetivas declarações dar uma outra explicação para o motivo do empréstimo, que a demandada lhe pediu esse dinheiro emprestado porque nessa ocasião se encontrava a fazer negociações com o banco, relacionadas com empréstimos bancários e respeitantes à aquisição de um veículo e do referido imóvel aludido nos autos e que, por isso, precisava de dinheiro disponível naquele dia 30 de novembro de 2017, o que não foi corroborado pela demandada nas suas declarações, e a testemunha supra aludida apenas soube dizer o que se deixou mencionado.

Por sua vez, a demandada referiu que o valor da transferência bancária de € 2.000,00 (dois mil euros) feita, nesse dia na sua conta, pelo demandante seria para “acerto de contas” no pagamento de despesas correntes domésticas, incluindo futuras, da casa da demandada, como água, luz, gás, gasóleo para o aquecimento, empregada doméstica, onde disse que na ocasião vivia com o demandante. Acabou por admitir que tal valor não se destinou a pagar o cartão do Grupo --- (o que resulta também dos documentos de fls. 71, 73 a 75 e 77 a 79 dos autos, considerando as datas dos pagamentos). Sendo que, quanto ao depósito em numerário de € 3.000,00 (três mil euros), disse ser dinheiro seu (que juntava em casa e que os pais lhe davam), mas não mencionou qualquer justificação para ter sido depositado exatamente no mesmo dia da realização da aludida transferência, tratando-se de mera coincidência.

O demandante referiu ainda que “partiu do pressuposto que quando ela tivesse dinheiro lho devolvia” e que a demandada disse que quando estivesse mais desafogada lhe devolvia o dinheiro, portanto, mesmo que o demandante tivesse feito prova do invocado empréstimo, não teria ficado demonstrado nos autos que foi acordado qualquer prazo para a alegada restituição (até ao fim de Março de 2018, que, nesse caso, coincidiria com o fim da relação amorosa!).

Ademais, resulta das regras de experiência comum que no contexto de uma relação amorosa, como comprovadamente existiu entre as partes, a entrega de dinheiro por qualquer delas pode ter diversos motivos e causas, atenta a multiplicidade e diversidade das vivências interpessoais existentes na vida. Ora, no caso dos autos, considera-se que não ficou demonstrado, sem qualquer dúvida, que a causa da entrega sequer dos € 2.000,00 (dois mil euros) da transferência bancária foi um acordo de empréstimo estabelecido entre as partes, impondo a lei que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (artigo 414º do Código de Processo Civil).

Factos não provados sob a alínea e): resultaram não provados atendendo à conjugação dos documentos respeitantes ao contrato número PPC 76813 de fls. 39 e 40 dos autos com os comprovativos de pagamento de fls. 71, 73 a 75 e 77 a 79 dos mesmos; às declarações da própria demandada, que admitiu que tal quantia não serviu para pagamento do referido cartão das férias; e quanto às despesas de alimentação, a demandada acabou por admitir que cada um comprava umas coisas, que não pediam dinheiro um ao outro para as despesas de alimentação e que na casa dela assumia todas as despesas da casa, incluindo de alimentação. Por sua vez, o demandante esclareceu que cada um pagava as despesas da sua própria casa, incluindo de alimentação, e negou que lhe tivesse dado esse valor monetário.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Na presente ação, invocando o empréstimo e entrega à demandada da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), que esta deveria restituir, o demandante pede que a demandada seja condenada na restituição daquela quantia, por força da declaração de nulidade do empréstimo celebrado, por inobservância da forma escrita legalmente imposta.
Vejamos se lhe assiste razão em face da matéria de facto acima elencada.
O artigo 1142º dispõe que o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes (o mutuante) empresta à outra (o mutuário) dinheiro ou outra coisa fungível (que se determina pelo seu género qualidade e quantidade – artigo 207º), ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
O mútuo é um contrato nominado (consagrado na lei como instituto jurídico), típico (dotado de regime próprio), solene ou consensual consoante o valor (a lei só não faz qualquer exigência de forma escrita quando o valor é igual ou inferior a € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros); real quoad constitutionem (a entrega do dinheiro ou outra coisa fungível é essencial à perfeição do contrato); oneroso ou gratuito (consoante as partes convencionem ou não o pagamento de juros como retribuição do empréstimo, respetivamente), bilateral ou sinalagmático (importa direitos e obrigações recíprocos para ambas as partes; o mutuante tem a obrigação de entregar a coisa e o mutuário a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género e qualidade) e revestido de temporalidade, atenta a aludida obrigação de restituir (se o mútuo fosse perpétuo, o mútuo gratuito poder-se-ia confundir com a doação e o mútuo oneroso com a compra e venda).
Assim, são elementos constitutivos deste contrato a entrega a outrem de dinheiro ou coisa fungível e a obrigação do mutuário de restituir a coisa ao mutuante.
Nas palavras do Ilustre Professor A. Santos Justo, “O contrato de mútuo é constituído pelos seguintes elementos: a) acordo em que o mutuário se obriga a restituir ao mutuante a quantidade de dinheiro mutuado ou coisa do mesmo género, qualidade e quantidade; b) datio da coisa: a sua entrega é elemento essencial à perfeição do contrato; c) objeto: coisa fungível (…).”, (vide in Manual de Contratos Civis Vertentes Romana e Portuguesa, pág. 356 e 357, 2017, Petrony Editora).
Segundo o artigo 1143º, o contrato de mútuo de valor superior a € 25.00,00 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2.500,00 se o for por documento assinado pelo mutuário. De modo que, um empréstimo de € 4.000,00 (quatro mil euros) só é válido quando for celebrado por documento assinado pelo mutuário.
No caso dos autos, o próprio demandante reconhece que o empréstimo que invocou como causa de pedir não se encontra titulado por qualquer documento assinado pela demandada, logo não se encontra munido de tal meio de prova (daí que tenha invocado como causa da peticionada restituição a nulidade formal do alegado contrato).
Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular (no caso dos autos bastaria um documento particular assinado pela demandada), o documento não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior (artigos 363º e 364, nº 1). No caso dos autos, não foi junto tal documento, nem o empréstimo foi confessado pela demandada.
Ademais, de acordo com o disposto no artigo 393º, nº 1 se, por força de disposição legal (como o referido 1143º), a declaração negocial houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida a prova testemunhal.
Sucede que, no caso dos autos, o demandante não invocou a existência de um contrato de mútuo válido e o incumprimento da obrigação de restituição, mas a existência de um contrato de mútuo nulo por inobservância da forma escrita legalmente prescrita, com a consequente obrigação de restituir o que lhe foi prestado (artigos 220º e 289º, nº 1). E, assim sendo, o demandante não se encontrava limitado pelas referidas disposições quanto aos meios de prova a realizar nos autos.
Assim sendo, como àquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (artigo 342º, nº 1), competia ao demandante fazer prova dos referidos elementos constitutivos do contrato de mútuo, para que o tribunal pudesse concluir pela sua efetiva celebração entre as partes, ainda que sem observância da forma escrita e, portanto, nulo por inobservância da forma legal (artigo 220º). Ou seja, competia ao demandante provar a entrega à demandada do referido valor de € 4.000,00 (quatro mil euros) em dinheiro e a obrigação daquela lhe restituir a coisa, esse montante em dinheiro.
Ocorre que, atenta a factualidade considerada provada sob o número um e a não provada acima elencada sob as alíneas a), b) e d), o demandante apenas conseguiu demonstrar que entregou à demandada a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), através da transferência bancária que efetuou, no dia 30 de novembro de 2017, da sua conta para a conta bancária da demandada, mas não provou a entrega de igual quantia através do depósito em numerário de fls. 5 dos autos, nem provou que a demandada estava obrigada a restituir-lhe outro tanto do mesmo género e qualidade, isto é, que se obrigou a restituir-lhe a quantia total de € 4.000,00 (quatro mil euros) em dinheiro. Sendo que, a entrega de dinheiro não faz presumir a obrigação de restituição, que tem de ser provada.
Isto é, para que o tribunal pudesse concluir pela nulidade formal do contrato de mútuo invocado, era essencial que o demandante tivesse feito prova da existência do acordo de empréstimo entre as partes, ou seja, da entrega da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) em dinheiro à demandada, com a obrigação de esta lhe restituir igual quantia, o que, contudo, não conseguiu nos autos, conforme resulta da conjugação da factualidade considerada provada e não provada e respetiva motivação.
A exigência de forma escrita para validade do acordo de empréstimo de valor superior a € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) visa, precisamente, acautelar os contraentes (os mutuantes) das dificuldades que podem ter em provar a existência de um tal acordo por outros meios de prova, designadamente testemunhal, com maiores dificuldades ainda quando estão subjacentes relações familiares, conjugais, amorosas, laborais, comerciais ou societárias entre os contraentes, em que diversas outras causas, que não um empréstimo, podem estar subjacentes à entrega de dinheiro.
A tal respeito ensinam os Ilustres Professores Pires de Lima e Antunes Varela que, “As razões justificativas do carácter formal do contrato - tiradas da extrema falibilidade da prova testemunhal - levariam, em último termo, a impedir o oferecimento de testemunhas para prova da entrega do dinheiro e sua consequente restituição ao abrigo da nulidade do contrato.
Não se trata, porém, duma consequência forçosa, necessária, do regime estabelecido.
Concebe-se perfeitamente que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato (sem prejuízo da prova testemunhal da entrega da coisa mutuada), para garantir a observância da forma visada. (…)” (vide Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, pág. 765, Coimbra Editora).
Daí que, não havendo, embora, as referidas limitações aos meios de prova a realizar no caso concreto dos autos, seria, no entanto, fundamental e imprescindível, que o demandante fizesse prova da referida factualidade constitutiva do direito que alegou, o que não se verifica, como já referido. (No sentido que aqui propugnamos e a título meramente exemplificativo, vejam-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20-09-2007, proferido nos autos do processo 07B1963, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 29-06-2010, proferido nos autos do processo 749/08.0TBTMR.C1 e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 18-11-2010, proferido nos autos do processo 536/07.2TBFAF.G1, todos disponíveis para consulta pública no sítio da internet www.dgsi.pt).
Referindo-se à repartição do ónus da prova, a Ilustre Juiz de Direito Helena Cabrita, refere que “(…) Cremos que a maneira mais acertada de o fazer será por reporte à norma jurídica da qual a parte pretende prevalecer-se: cada uma das partes terá o ónus de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à excepção, ou seja, cada uma das partes tem de provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável. Com efeito, para que o juiz possa aplicar uma norma jurídica é necessário que se encontrem provados os factos que essa norma pressupõe, o que significa que é a parte que deduz uma pretensão em juízo e invoca determinada regra de direito como suporte dela que tem de fazer a prova dos factos que condicionam a aplicação dessa regra.”, (vide in A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, pág. 120 e 121, 1ª Edição, 2015, Coimbra Editora).

De modo que, a parte que pretende fazer valer determinada pretensão (ónus do pedido), tem o ónus de alegar os factos que a fundamentam (ónus da alegação) e, simultaneamente, tem o correspondente ónus de demonstrar a existência desses factos (ónus da prova), ónus que o demandante não cumpriu nos presentes autos, pelo que, considera-se sem interesse efetuar maior pronúncia sobre os pedidos deduzidos nos presentes autos, uma vez que o demandante não provou a existência do contrato de mútuo, e só provando os seus elementos constitutivos (artigo 1142º), poderia o tribunal emitir juízo sobre a sua invalidade formal (artigos 220º e 1143º), com a consequente obrigação de restituir outro tanto do mesmo género e qualidade por parte da demandada (artigos 289º, nº 1 e 1142º).
Nesta conformidade, como não se pode concluir pela nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo invocado, fica precludida a possibilidade de obtenção dos efeitos jurídicos visados com a instauração da presente ação.

IV- Decisão:
Em face do exposto, julgo a ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo a demandada dos pedidos.
As custas totais, no valor de € 70,00 (setenta euros), são da responsabilidade do demandante, que declaro parte vencida, sendo que a segunda parcela de tal importância, no valor de € 35,00 (trinta e cinco euros), deve ser paga nos três dias úteis imediatamente subsequentes ao do conhecimento da presente decisão, sob pena da aplicação e liquidação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso, até ao valor de € 140,00 (cento e quarenta euros), atento o disposto no artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho, e dos artigos 1º, 8º e 10º, todos da Portaria nº 1456/2001, de 28 de dezembro, na redação que lhe foi conferida pela Portaria nº 209/2005, de 24 de fevereiro.-

Reembolse-se a demandada, nos termos do artigo 9º da mesma Portaria.

Notifique e registe.

Aguiar da Beira, 12 de novembro de 2018
A juíza de paz,

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Cristina Maria da Costa Rodrigues Poceiro)
Processado por meios informáticos (artigo 131º, nº 5 do Código de Processo Civil), versos em branco e revisto pela signatária.---