SENTENÇA
I – IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A
Demandado: B
II – OBJECTO DO LITÍGIO
O Demandante veio propor contra o Demandado, a presente acção declarativa respeitante a incumprimento contratual, enquadrada na alínea i) do nº 1 do Art.º 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, pedindo a condenação deste a pagar a quantia de € 1.417,00 (mil quatrocentos e dezassete euros).
Alegou, para tanto e em síntese, que, após informação difundida na internet, mais em concreto no site “X”, de diversos veículos de marca VW, modelo Golf 4, localizou uma viatura colocada à venda pelo B, pelo que, de seguida, estabeleceu contacto telefónico, através do n.º x, com o mesmo para combinar ver o referido veículo; em 21 de Março de 2010, pelas 15 horas, juntamente com a sua filha C, o seu genro D e o filho destes E, deslocaram-se ao Stand Automóvel do B, situado num terreno contíguo à residência do mesmo e visualizaram o citado veículo, acompanhados pelo vendedor, observando o interior e o exterior da viatura; ainda nesse mesmo dia, o Demandante e seus familiares verificaram que no stand do B estavam para venda quatro a cinco veículos, todos da marca VW, pelo que, após conversar com o mesmo sobre o valor da venda e verificação do estado da viatura, foram experimentar a mesma, tendo sido o Demandante a conduzi-la; foi acordado entre as partes que o valor da venda da viatura de matrícula SG era de € 10.250,00, valor que seria entregue segundo exigência do B em cheque visado na data da entrega do veículo; no dia 27 de Março de 2010, conforme o acordado, deslocaram-se novamente o Demandante, a filha e o genro ao Stand do B para levantar a viatura e efectuar o seu pagamento através do cheque visado do “Banco X”, no montante de € 10.000,00 e € 250,00, em numerário; chegados ao referido local, foram informados pelo B de que a viatura ainda se encontrava numa estação de serviço em Vila Nova de Gaia, a concluir a limpeza; deslocaram-se, então, ao local para ir levantar o veículo, tendo já no Stand recebido os documentos referentes à viatura, bem como fotocópia da Declaração de Compra e Venda, levando a viatura para casa; no mês de Agosto de 2010, o comando das portas do veículo deixou de funcionar, pelo que o Demandante se deslocou à oficina “F", onde foi verificado que o problema era do alarme da viatura, o qual foi reparado, tendo pago por tal a quantia de € 64,86; no início do mês de Junho de 2011, o Demandante começou a notar problemas em engrenar as velocidades no referido veículo, pelo que se deslocou à oficina “G”, a fim de verificar o que se passava; experimentada a viatura pelo mecânico, este informou o Demandante que a avaria era da embraiagem, pelo que teve que ser substituída por um Kit Embraiagem, bem como os Sinoblocos, tendo tal reparação o custo de € 1.352,14; em 13 de Junho de 2011, o Demandante telefonou ao B, expondo-lhe a situação ocorrida com a sua viatura, bem como o valor da referida reparação da embraiagem, ao que o mesmo retorquiu, alegando que tinha passado 1 ano e 3 meses após a venda, pelo que o veículo já não se encontrava na garantia, negando-se a pagar as reparações acima mencionadas, pelo que o informou de que iria fazer valer os seus direitos no sentido de ser ressarcido pelos prejuízos que lhe foram causados com tais avarias; as reparações foram efectuadas dentro do prazo de dois anos após a compra, não existindo qualquer acordo que reduza a garantia da viatura usada após a sua venda.
Juntou documentos.
Regularmente citado, o Demandado apresentou Contestação, onde alega que é falso que o Demandante tenha tido acesso à viatura, marca Volkswagen, com a matrícula SG pela internet, uma vez que, só teve conhecimento que a mesma se encontrava à venda quando o seu genro, D, comprou ao aqui requerido uma viatura também Volkswagen, que era utilizada pela sua esposa; por decurso normal da conversa, o aqui Demandante foi informado que a viatura Golf utilizada pelo pai do ora Demandado, também se encontrava à venda, tendo logo de imediato o Demandante demonstrado interesse em adquiri-la; foi o chamado negócio de ocasião, realizado de forma simples e espontânea entre dois particulares; e como é de particulares que falamos não se aplica ao negócio aqui em causa qualquer tipo de garantias, nomeadamente, as previstas no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08.04, alterado pelo Decreto-Lei 84/2008, de 21.05; o ora aqui Demandado não é comerciante de automóveis, nem tão pouco exerce essa actividade comercial, tendo como qualquer cidadão promovido a venda de uma viatura pertença da “casa”; carecem também de peritagem técnica e especializada todas as intervenções realizadas na viatura em questão; bem como, não se faz prova de que efectivamente as fotografias juntas aos autos correspondam a componentes do Golf, com a matrícula SG; bem mais é de estranhar que só após o primeiro litígio entre o genro do Demandante e o ora Demandado é que o Demandante venha reclamar defeito na viatura; convém salientar que, também a oficina que procedeu às reparações invocadas é a mesma que intervencionou a viatura do genro do Demandante, oficina essa que não se trata de uma entidade oficial e autorizada Volkswagen, e que, tal como é publicitado, se dedica também ao comércio de veículos.
Juntou documentos.
O Demandado faltou à sessão de Pré-Mediação, pelo que se determinou o agendamento da Audiência de Julgamento, a qual se realizou com observância das formalidades legais como da acta se infere.
Cumpre apreciar e decidir.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Da prova carreada para os autos, resultaram provados os seguintes factos:
A) Após informação difundida na internet, mais em concreto no site X, de diversos veículos de marca VW, o genro do Demandante localizou uma viatura colocada à venda pelo B, ora Demandado, pelo que de seguida estabeleceu contacto telefónico com o mesmo para combinar ver o referido veículo;
B) Em 21 de Março de 2010, o Demandante, juntamente com a sua filha C, o seu genro D e o filho destes E, deslocaram-se a casa do B, onde, num terreno contíguo à residência do mesmo, visualizaram o mencionado veículo, observando o interior e o exterior da viatura;
C) Ainda nesse mesmo dia, o Demandante e seus familiares verificaram que no local estavam para venda quatro ou cinco veículos, todos da marca VW, com um cartão de visita com o nome do Demandado e o vocábulo “Automóveis” em cima do pára-brisas, tendo-lhe interessado uma dessas viaturas (Golf) pelo que, após conversar com o Demandado sobre o valor da venda e verificação do estado da viatura, foram experimentar a mesma, tendo sido o Demandante a conduzi-la;
D) Foi acordado entre as partes que o valor da venda da viatura de matrícula SG era de € 10.250,00, valor que seria entregue segundo exigência do B em cheque visado na data da entrega do veículo;
E) No dia 27 de Março de 2010, conforme o acordado, deslocaram-se novamente o Demandante, a filha e o genro a casa do B para levantar a viatura e efectuar o seu pagamento através do cheque visado do “Banco X”, no montante de € 10.000,00 e € 250,00, em numerário;
F) Chegados ao referido local, foram informados pelo B de que a viatura ainda se encontrava numa estação de serviço em Vila Nova de Gaia, a concluir a limpeza;
G) Deslocaram-se, então, ao local para ir levantar o veículo, tendo já na residência do Demandado recebido os documentos referentes ao veículo, bem como fotocópia da Declaração de Compra e Venda, levando a viatura para casa;
H) No mês de Agosto de 2010, o comando das portas do veículo deixou de funcionar, pelo que o Demandante se deslocou à oficina “F”, onde foi verificado que o problema era do alarme da viatura, o qual foi reparado, tendo pago por tal a quantia de € 64,86, tendo, entretanto, o Demandado enviado ao Demandante um comando;
I) No início do mês de Junho de 2011, o Demandante começou a notar problemas em engrenar as velocidades no referido veículo, pelo que se deslocou à oficina “G”, a fim de verificar o que se passava;
J) Em data que não foi possível apurar mas que terá sido em Junho de 2011, o Demandante telefonou ao B, expondo-lhe a situação ocorrida com a sua viatura, bem como o valor da reparação da embraiagem, reclamando o seu reembolso.
Motivação dos factos provados:
Atendeu-se às declarações das partes conjugadas com as declarações das testemunhas, como segue:
D, genro do Demandante, por ter estado presente nas negociações da viatura em questão, tendo declarado que andava à procura de uma viatura para comprar, tendo visto na Internet uma carrinha Passat que aparecia no “X” sem fotografia; entrou em contacto com o Demandado que a havia publicitado e a 20.03.2010 deslocou-se a casa deste onde havia um terreno vedado onde se encontravam algumas viaturas com um cartão no pára-brisas com o nome do Demandado e a menção “Automóveis”; no dia seguinte voltou ao local com o sogro, ora Demandante, que viu lá uma viatura que lhe interessava e foram experimentar as viaturas; o Demandado exigiu-lhes um cheque visado para pagamento; no dia 27.03.2010, regressaram ao local para levantar as viaturas conforme haviam acordado com o Demandado, tendo este lhes dito que as mesmas se encontravam a acabar de ser preparadas numa estação de serviço em Gaia, tendo, então, ido lá buscar as viaturas; o Demandado tinha a declaração de venda assinada pelo anterior proprietário da viatura, tendo a testemunha preenchido a declaração e o Demandado ficou de tratar da alteração do registo de propriedade, tendo enviado o certificado de matrícula para casa do sogro; houve um problema com um comando da viatura do Demandante, tendo o Demandado lho enviado para casa mas, entretanto, o Demandante já tinha ido ao electricista onde foi detectado que o problema era do alarme que teve que ser reparado; mais tarde, o Demandante começou a ter problemas na embraiagem e foi à oficina onde sempre fez as revisões e reparações, tendo-lhe sido dito que era a embraiagem que já estava gasta e teve que ser substituída.
C, filha do Demandante, por ter estado presente nas negociações da viatura em apreço, declarando que ela e o marido andavam à procura de uma carrinha com determinadas características e viram no “X” um anúncio sem foto; foram a casa do Demandado onde existia um espaço amplo vedado com um portão contíguo à casa, onde se encontravam quatro ou cinco viaturas mais a que o Demandado conduzia e que se disponibilizou também para vender; no dia seguinte, retornaram ao local já com o pai e efectuaram o negócio, tendo o Demandado exigido um cheque visado porque já tinha tido problemas noutros carros; uma semana depois foram levantar as viaturas; surgiram problemas no comando da viatura do Demandante, tendo verificado que era por causa do alarme; o Demandado acabou por lhe mandar um comando mas não funcionava; depois surgiu um problema de embraiagem, que é uma peça de desgaste rápido.
Não foi provado que:
I. Para reparar a avaria da embraiagem foi necessário substituir o Kit Embraiagem, bem como os Sinoblocos;
II. Confrontado com o facto supra referido em J), o Demandado retorquiu, alegando que tinha passado 1 ano e 3 meses após a venda, pelo que o veículo já não se encontrava na garantia.
Motivação da matéria de facto não provada:
Resultou da ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao Tribunal aferir da veracidade dos factos.
Refira-se que, quanto ao facto I., não foi arrolada qualquer testemunha da oficina que terá procedido à intervenção na viatura ou uma outra qualquer com especiais conhecimentos sobre a matéria que nos esclarecesse sobre a causa da avaria – sem esquecer que afinal se tratava de uma viatura com nove anos de existência e o componente em questão constitui material de desgaste - e tão pouco temos conhecimento se as fotos juntas se reportam às peças da viatura em causa e o que pretendem demonstrar, se seria ou não indispensável a substituição integral do Kit de embraiagem e demais componentes, etc., etc..
IV - DO DIREITO
Perante os factos articulados e dados como apurados é inequívoco que entre Demandante e Demandado se celebrou um típico contrato de compra e venda.
Há na compra e venda a transmissão correspectiva de duas prestações: por um lado, o direito de propriedade ou outro direito, por outro lado, o preço.
Da definição dada pelo art.º 874º do C. Civil (diploma a que doravante se referem todos os normativos que citamos sem alusão à sua fonte), resultam as características fundamentais deste tipo de contrato, quais sejam, onerosidade, bilateralidade, prestações recíprocas e eficácia real ou translativa.
O art.º 879º prescreve os efeitos essenciais deste típico contrato.
Ora,
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos, e as partes que neles outorgam cumprem as obrigações deles derivadas quando realizem a prestação a que estão vinculadas (artigos 406º, nº 1, e 762º, n.º 1).
No âmbito das modalidades da inexecução da obrigação conta-se, além da mora e do incumprimento definitivo, a execução defeituosa, na lei designada por cumprimento defeituoso (artigo 799º, n.º 1).
É o caso de o devedor executar materialmente a prestação, mas incumprir o contrato, por virtude de a executar deficientemente, isto é, em desconformidade com o convencionado.
Nos presentes autos aparecem-nos suscitadas várias questões.
A questão primordial é a de saber se o Demandante deve ou não ser reembolsado pelo Demandado, do montante pago pela reparação da viatura que lhe adquiriu, por as alegadas avarias terem supostamente ocorrido no período da garantia.
Comecemos então pelo enquadramento, ou não, da relação jurídica sub judice, atenta a natureza e qualidade das partes, na legislação sobre defesa do consumidor, mais concretamente o Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de Abril. Concluímos pela sua não aplicação.
Vejamos porquê:
Nos termos do artigo 2º, nº 1, da Lei de Defesa do Consumidor, para o qual o artigo 1º, nº 1, do referido Decreto-Lei nº 67/2003 remete, considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional.
No caso presente interessa em primeiro lugar determinar quem é consumidor nos termos da lei de defesa do consumidor e quem está obrigado à garantia e em segundo lugar como se reparte o ónus da prova por consumidor e vendedor.
Nos termos da Lei de defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), e designadamente nos termos do n.º 1, do art.º 2.º, consumidor é “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Daqui se retira que o Demandante, ao adquirir a viatura para seu uso próprio, preenche o primeiro pressuposto da definição, por ter adquirido um bem para uso não profissional.
Contudo para que seja consumidor nos termos desta lei, e beneficiar dos direitos a este concedidos, tem também de se verificar o segundo pressuposto da definição. Este exige que o fornecimento de bens, a prestação de serviços ou transmissão de direitos seja efectuada por quem, seja pessoa singular, seja colectiva, vende bens no âmbito da sua actividade profissional, ou seja exerça uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Não foi provado que o Demandante tivesse contratado com uma pessoa singular ou colectiva que se dedica à venda de veículos, e que preencheria este segundo pressuposto.
É que,
todo o cenário legal à volta das garantias pressupõe um vendedor profissional (com uma actividade específica dentro da qual se enquadra a venda) e um comprador/consumidor. A transacção é sempre descrita como sendo do profissional para o consumidor. Não se aplicando este regime nas vendas de particular a particular.
Não podemos deixar de salientar as dificuldades com que nos deparámos, face aos elementos de prova que nos foram disponibilizados, em qualificar o Demandado como um vendedor de automóveis a título pessoal ou no âmbito de uma actividade profissional, ou seja no exercício de uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Por um lado, foi dito em Audiência que o Demandado tinha um longo historial ligado aos automóveis, tendo sido piloto de rali e fazendo parte da organização do rali de Portugal onde, pelo que entendemos, presta serviços ligados à mecânica e equipamentos das viaturas, tendo como Hobby os automóveis, tendo-lhe sido fixada uma incapacidade de 60%, a qual consta do seu cadastro fiscal (fls.28 a 32),na sequência da amputação de uma perna. Esse seu interesse pelo sector foi apresentado pelo mesmo como justificação para o facto de os seus cartões de visita referirem o vocábulo “Automóveis”, sem no entanto fazerem qualquer menção a “comércio”, ou “compra e venda”. Ademais, no local onde tinha aparcadas quatro ou cinco viaturas junto à sua residência, não havia qualquer anúncio ou referência que indiciasse tratar-se de um Stand Automóvel, nem qualquer guichet de atendimento de apoio. Mais, o Demandado referiu que apenas vendia as viaturas da “casa” mas tal não foi provado, sendo certo que apresentou documentos referentes à manutenção periódica da viatura em questão e à sua última inspecção datada de 03.07.2009, em que teria 121346 Km, sendo que, passados cerca de nove meses, quando a vendeu ao Demandante, esta teria cerca de 126000 Km, o que não deixa de suscitar alguma estranheza o facto de o Demandado, caso fosse vendedor profissional, tivesse ali a viatura para venda há quase um ano e ainda por cima tenha feito com ela cerca de 5000 Km (quando carece de um veículo de caixa automática para se deslocar dada a sua deficiência), o que ainda constitui mais um factor de desvalorização.
É claro que podemos encontrar sempre aqueles particulares "profissionais" disfarçados e aí o caso já é diferente pois inclusive estão a fugir aos impostos...sendo certo que não possuímos dados suficientes nos presentes autos para aferir se estaremos perante uma destas situações. Ficámos no entanto com a nítida convicção de que, atendendo ao meio em que se move o Demandado, relacionado com o sector automóvel, não estará fora de causa que tenha ali por casa viaturas à consignação, promovendo a sua venda…
Outra questão,
Ainda que o Demandado fosse um profissional…e a viatura tivesse uma garantia de dois anos, a Lei estabelece direitos para protecção do consumidor mas também lhe impõe determinados ónus de procedimento, sob pena de caducidade do direito à reparação do bem, à sua substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
Designadamente, estabelece o art.º 5.º-A, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril (redacção do DL 84/2008, de 21 de Maio), no seu n.ºs 2 que “para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado” e que os direitos conferidos ao consumidor caducam decorridos dois anos (seis meses antes desta nova redacção do diploma), no caso de bens móveis e três anos no caso de imóveis, a contar da data da denúncia.
Tendo-se os eventuais defeitos manifestado no período de garantia e cumpridos pelo lesado os prazos de denúncia e de acção que a Lei lhe impõe, é o bem havido, por presunção legal, como não em conformidade com o contrato celebrado, como se os defeitos se apresentassem no momento da entrega do bem e compete ao vendedor, provar que pelos defeitos denunciados não lhe cabe a si responsabilidade mas a outrem (ao comprador ou a terceiro) ou são devidos a caso fortuito.
Ou seja,
ao comprador, nos termos do n.º 1, do art.º 342.º do Código Civil, cabe a prova dos factos constitutivos do seu direito, desde logo que tem a qualidade de consumidor, o que significa que tem a seu cargo o ónus de demonstrar que o bem foi adquirido para uso não profissional e que o vendedor se dedica àquela actividade económica com carácter profissional, que o bem tem defeito e que este se manifestou no período de garantia.
No caso em apreço, como se viu, o Demandante desde logo não provou que o Demandado fosse vendedor com carácter profissional, ficando desde logo prejudicada a sua qualificação como consumidor, não lhe sendo em consequência aplicáveis as leis de defesa do consumidor.
Mais…
deve ainda dizer-se que o Demandante não alegou sequer ter proporcionado ao Demandado a possibilidade de verificar a coisa e reparar os defeitos, o que lhe trouxe para si próprio o ónus acrescido de ter que demonstrar qual a avaria e que a mesma se enquadrava na garantia. E a verdade é que não trouxe qualquer testemunha da arte que pudesse esclarecer a origem da avaria para a poder enquadrar no âmbito de eventual garantia, limitando-se a juntar facturas de reparações feitas em oficinas por si escolhidas onde se encontram descritas supostas intervenções na viatura e fotos de peças que não sabemos identificar e muito menos se pertencem ou não à viatura em questão.
Ademais,
não nos esqueçamos que as coisas vão-se deteriorando com o uso ou pelo simples decurso do tempo.
A propósito desta matéria, escreve Pedro Romano Martinez (“Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, págs. 235):
"Era usual considerar-se que a responsabilidade por incumprimento defeituoso estaria tacitamente excluída com respeito a coisas usadas, porquanto era de prever que estas tivessem vícios. O devedor só seria responsável no caso de ter garantido determinadas qualidades. Estes problemas colocavam-se, em especial, a propósito da venda de veículos usados. Em certos casos, as circunstâncias concretas podem levar a aceitar-se uma exclusão tácita da responsabilidade, mas não é lícito alastrar essa ilação a todas as vendas de objectos usados.
Por outro lado, o defeito não se identifica com a deterioração motivada pelo uso ou pelo decurso do tempo.
O bem usado pressupõe-se com um desgaste normal, em função da utilização (p. ex., número de quilómetros percorridos) ou do tempo (por ex., número de anos a contar da data de fabrico), mas não tem de ser defeituoso.
Para além do desgaste normal, a coisa usada pode ter um vício oculto.
Assim, se o sistema de travagem do veículo que foi vendido em segunda mão não funciona convenientemente, há um defeito que excede o desgaste normal.
A tendência actual vai no sentido de se admitir a aplicação do regime de cumprimento defeituoso, mesmo às compras e vendas de coisas usadas".(sublinhado nosso).
O mesmo Autor acrescenta, logo a seguir (obra citada, pág. 236):
"No sistema jurídico português, a distinção entre coisas novas e usadas não tem consagração legal e não pode ser fundamento para efeitos de excluir a responsabilidade.
Todavia, sendo vendida uma coisa usada, o acordo incide sobre o objecto com qualidade inferior e idêntico a um bem novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal”.
À parte isto,
mesmo vendendo a título pessoal, o vendedor também é responsável pela qualidade dos produtos que vende. A lei prevê situações específicas de cumprimento defeituoso dos contratos de compra e venda nos artigos 913º a 922º, que importa ter em conta no caso vertente, visto que prevalecem em relação às regras gerais de responsabilidade civil contratual.
Expressa, por um lado, que se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias à realização daquele fim, observar-se-á, com as necessárias adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes (artigo 913º, nº 1).
E, por outro, que se do contrato não resultar o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria (n.º 2 do mesmo artigo).
Ao remeter para o disposto na secção precedente adaptado e a título subsidiário, a lei, por um lado, confere ao comprador de coisas defeituosas, no confronto com o vendedor, além do mais, o direito à anulação do contrato, por erro ou dolo, verificados os respectivos requisitos de relevância exigidos pelo art. 251º (erro sobre o objecto do negócio) e pelo art. 254º (dolo); redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior (art. 911º); indemnização do interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, cumulável com a anulação do contrato e com a redução ou minoração do preço (art.ºs 908º, 909º e 911º, por força do art. 913º); reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição (art.º 914º, nº 1, 1ª parte), independentemente de culpa do devedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (art.º 921, nº 1). Este regime dispõe, nomeadamente, um prazo de garantia supletivo de seis meses, o que significa que o vendedor poderia responder, naquele prazo, pelos defeitos surgidos, sendo o prazo de denúncia de defeitos, neste caso, de trinta dias.
Assim, atentas as datas de compra do veículo (21 de Março de 2010) e de detecção das avarias (Agosto de 2010 e Junho de 2011), há que concluir que, nesta última data, já o prazo de garantia de bom funcionamento do bem vendido havia decorrido, pelo que, o peticionado tem que improceder e quanto à primeira avaria, a do comando, não foi provada a denúncia do defeito ao vendedor e muito menos a data em que teria sido feita.
Aliás, ficámos com a clara sensação de que o Demandante, primeiro mandou reparar a viatura – não juntou qualquer prova de que tenha denunciado os defeitos, aliás, nem sequer o alegou - e só depois é que terá confrontado o Demandado com as despesas feitas, exigindo-lhe o seu reembolso.
Em face do exposto, absolvo o Demandado do pedido.
V – DECISÃO
Face a quanto antecede, julgo improcedente a presente acção, absolvendo o Demandado do pedido.
Custas pelo Demandante. Cumpra-se o disposto nos artigos 8º e 9º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro.
Registe e notifique.
Vila Nova de Gaia, 01 de Junho de 2012
A Juiz de Paz
(Paula Portugal)
Processado por computador Art.º 138º/5 do C.P.C.
Revisto pelo Signatário. VERSO EM BRANCO
Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia