Sentença de Julgado de Paz
Processo: 102/2023–JPVNP
Relator: JANETE RODRIGUES FERNANDES
Descritores: AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
POR USUCAPIÃO
Data da sentença: 03/27/2024
Julgado de Paz de : VILA NOVA DE PAIVA
Decisão Texto Integral:
Processo nº 102/2023 – JPVNP

SENTENÇA

Identificação das partes:
Parte demandante: [PES-1], NIF [NIF-1], viúva, residente na [...], 132, freguesia e concelho de [...], [Cód. Postal-1] [...], por si e na qualidade de cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de [PES-4] com o NIF [NIF-2].
Parte demandada: [PES-2], NIF [NIF-3], residente na [...], n.º 14, [...], [Cód. Postal-2] [...].
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Objeto do litígio:
A demandante intentou contra a demandada a presente ação declarativa, enquadrável na alínea e) do nº 1 do artigo 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, alterada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, pedindo que a mesma seja julgada procedente, por provada e a demandada condenada:
a) “A reconhecer que o prédio rústico sito no [...], composto por pinhal, com a área de 280 m2, e que confronta do norte com [...], de sul com [PES-3], de nascente com [PES-4] e de poente com [PES-5], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º [Nº Identificador-1], e descrito na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição [Nº Identificador-1] é propriedade da Herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do falecido [PES-4] e da Demandante por o terem adquirido por via do instituto da usucapião;
b) Ser ordenado o cancelamento da inscrição que pende sobre o prédio atrás identificado, a favor da Demandada, mediante a Apresentação [Nº Identificador-2] de 09/09/2009;
c) Ser restituído o mesmo bem à herança atrás identificada, junto da respetiva cabeça de casal, a ora demandante, com todas as consequências legais.”

Juntou documentos de fls. 6 a 23 com o respetivo requerimento inicial e o documento de fls. 73 a 76 por determinação do tribunal.
Pessoal e regularmente citada a fls. 48, a demandada não contestou, abstendo-se de qualquer intervenção no processo, apesar de especialmente notificada para intervir na defesa dos respetivos interesses.
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O litígio não foi objeto de Mediação.
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O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Mantêm-se os pressupostos de regularidade e validade da instância.
Não se verificam quaisquer exceções ou nulidades, nem quaisquer questões prévias, que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Valor da ação: fixa-se em € 260,00 (duzentos e sessenta euros), em conformidade com a posição das partes e as disposições conjugadas dos artigos 296º, nº 1, 299º, 302º, nº 1, 305º e 306º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, alterada pela Lei nº 54/2013, de 31 de julho.
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento na data e hora previamente agendada – 8 de março de 2023, pelas 9 horas e 30 minutos- com observância do legal formalismo, conforme resulta da ata de fls. 88 e 89, verificando-se a falta da demandada, apesar de pessoal e regularmente notificada.
Apesar de considerarmos que neste tipo de processos não deve operar o efeito cominatório previsto no n.º 2 do artigo 58º nº 2 da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, a audiência de julgamento foi igualmente suspensa para que a demandada pudesse vir justificar a sua falta, no prazo legal, e comparecer numa próxima sessão, que foi agendada para o dia 23 de março de 2024, pelas 9 horas e 30 minutos.
Decorrido o prazo legal e novamente notificada das suas faculdade e deveres, a demandada não justificou a sua falta, nem compareceu na segunda sessão de julgamento, na qual, foram ouvidas as testemunhas apresentadas pela demandante, proferidas alegações e agendada data para prolação da sentença, conforme ata de fls. 96 a 99 dos autos.
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Questão a decidir: aquisição do direito de propriedade pela demandante, por usucapião, sobre o prédio dos autos.
Assim, cumpre apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Discutida a causa, consideram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma:
1. No dia 9 de abril de 1986, o falecido marido da demandante e a demandada celebraram um contrato promessa de compra e venda relativo ao prédio rústico, sito no [...], composto por pinhal, com a área de 280 m2, e que confronta do norte com [...], de sul com [PES-3], de nascente com [PES-4] e de poente com [PES-5], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º 757, pelo preço de 55.000§00 (cinquenta e cinco mil escudos), e que a demandada declarou no referido contrato ter recebido para integral pagamento;
2. Em 22 de setembro de 2016, faleceu [PES-4], sendo que a demandante é cabeça de casal da herança por óbito deste [PES-4], seu falecido marido, sendo a sua única e universal herdeira;
3. Por óbito do falecido [PES-4], por lapso, não foi relacionado no acervo de bens da herança o identificado artº 757 freguesia e concelho de [...];
4. Desde os anos oitenta e seis, que a demandante e o seu falecido marido procediam e procedem à limpeza, cortam o mato, lenha e pinheiros no referido prédio;
5. Desde a compra do mencionado prédio rústico que a demandante por si e agora também na qualidade de cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por aberta por óbito de [PES-4] se assume como legítima proprietária, praticando os atos correspondentes ao exercício desse direito;
6. Desde o ano de 1986 até hoje e, pois, há mais de trinta anos, que a demandante tem usado o prédio identificado no número um de forma contínua e ininterrupta, fruindo dos seus proveitos, zelando pela sua conservação, designadamente procedendo ao seu amanho e limpeza;
7. O que o fizeram e faz sempre à vista e com conhecimento de toda a gente, incluindo da demandada, sempre de forma pública, continuamente e na convicção de que não lesavam e nem lesa os direitos de outrem, incluindo da demandada, e exercitam direito que lhes cabe e pertence;
8. Sem violência e sem oposição ou perturbação de quem quer que seja, incluindo da demandada;
9. Agindo sempre na convicção de que o prédio lhe pertence como coisa exclusiva e própria, sendo reconhecida por todos que é proprietária e possuidora do referido prédio;
10. De forma contínua e ininterruptamente, de boa fé, ignorando lesar direito alheio, nomeadamente da demandada;
11. Pacificamente, pois, sem violência, sem oposição de ninguém e sendo reconhecidos por todos como sua dona, na intenção e convicção de exercerem um direito próprio de propriedade;
12. A demandante está na detenção, gozo e fruição do referido prédio há mais de 40 anos, por o terem adquirido à demandada, sendo a posse exercida pelo marido da demandante, o Sr. [PES-4] e pela demandante;
13. Após isso, nunca a demandada pôs os pés em tal prédio rústico e nunca ali levou a cabo um único ato de limpeza ou corte de lenha ou pinheiros;
14. Quando a demandante resolveu regularizar a situação do referido prédio rústico é que se apercebeu que este já estava registado na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição número [Nº Identificador-1];
15. Uma sobrinha da demandante, a Sra. [PES-7], entrou em contacto com a demandada, tendo a mesma confirmado que tinha vendido o citado prédio à demandante, e que esta não tinha regularizado a situação para o colocar no nome dela, tendo referido ainda que a demandante já tinha tido tempo para o colocar em seu nome;
16. O prédio rústico em questão (artigo [Nº Identificador-5] da freguesia e concelho de [...]), fica longe do [...], [...], donde é natural e onde reside a demandada;
17. A demandada não pratica atos de posse sobre o prédio em causa nos autos;
18. A demandante não lê jornais e também não foi alertada da situação por publicação de qualquer edital seja nos jornais seja na sede da Junta de Freguesia;
19. A demandada outorgou a escritura de justificação notarial de quinze de dezembro de dois mil e seis, no [ORG-2], onde declarou ser dona, com exclusão de outrem, nomeadamente do prédio “rústico ao [...], composto de pinhal com duzentos e oitenta metros quadrados, a confrontar do norte com [...], do nascente com [PES-4], do sul com [PES-3] e do poente com [PES-5], inscrito na respetiva matriz sob o art.º [Nº Identificador-6], com o valor patrimonial de 2,68€”.
Factos não provados:
A. A demandada interveio de má fé na escritura de justificação notarial;
B. O ato praticado pela demandada constitui crime que foi participado;
Não há quaisquer outros factos provados ou não provados a especificar com relevância para a decisão dos autos.
Motivação dos factos provados:
A convicção do tribunal fundou-se na apreciação e conjugação crítica de toda a prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, ou seja, nos documentos juntos aos autos, na prova testemunhal apresentada pela demandante e nas declarações da demandante efetuadas no início da audiência (artigo 57º, nº 1 da Lei nº 78/2001, de 13 de julho).
Atendeu-se também às regras de repartição do ónus da prova (artigos 342º e seguintes do Código Civil, diploma ao qual pertencem todas as normas seguidamente indicadas sem expressa menção da sua fonte), bem como às presunções legais aplicáveis ao caso concreto dos autos (artigo 350º).
Quanto à prova documental, foram relevantes os seguintes documentos:
- cópia do contrato promessa de compra e venda, de fls. 6 e 7, que confirma a factualidade dada como provada sob os números 1 e 12;
- cópia da certidão do assento de óbito de fls. 8 e 9, que confirma a factualidade dada como provada sob o número 2;
- cópia de participação do óbito e de comprovativo de participação de transmissões gratuitas (Imposto do Selo) e respetiva liquidação de imposto do selo, de fls. 10 a 15, que confirma a factualidade dada como provada sob o número 3;
- cópia da caderneta predial rústica respeitante ao artigo matricial rústico [Nº Identificador-7] da freguesia de [...], de fls. 17 e cópia de certidão da descrição n.º 4556 da freguesia de [...], da Conservatória do Registo Predial de [...], de fls. 16, que confirma a factualidade dada como provada sob o número 14;
- cópia da escritura de justificação notarial, de fls. 18 a 23, que confirma a factualidade dada como provada sob o número 19;
- cópia da certidão de habilitação de herdeiros, de fls. 73 a 76, que confirma a factualidade dada como provada sob o número 2.
Para além da prova documental junta aos autos, foram ouvidas as seguintes testemunhas:
[PES-8], de 70 anos, que se identificou como sendo moradora da mesma freguesia que a demandante, declarou que conhece bem o terreno em causa nos autos, não só porque lá passa com regularidade mas também porque, a pedido da demandante e de seu marido, limpa e limpou o terreno em causa muitas vezes, o que faz há mais de vinte anos. Disse ainda que quem inicialmente lhe disse que tal terreno era da demandante foi o sogro da testemunha e este já faleceu há mais de vinte anos. Referiu que sempre viu o terreno a ser tratado pela demandante como se fosse dela e que a última vez que limpou o terreno, a pedido da demandante, foi há cerca de um ano, pois mesmo após o falecimento do marido da demandante continuou a limpar do terreno a pedido desta, e que nunca lá foi ninguém dizer que o terreno não era da demandante. Disse, ainda, que nunca viu a demandada no terreno e que nunca ouviu dizer que esta achasse que o terreno era seu e que qualquer pessoa do lugar sabe identificar que o terreno é da demandante. Soube identificar a composição do terreno e a sua localização. O seu depoimento afigurara-se credível, atentas as referidas razões de ciência.
[PES-9], de 70 anos, disse ser conhecido da demandante, por viver em [...] e que conhece o terreno em causa nos autos porque mora perto do mesmo e que sabe que a demandante sempre corta pinheiros e carvalhos e que limpa todos os anos o terreno. Disse que já viu no terreno muitas pessoas a limpar o mesmo, a mando da demandante, nomeadamente a testemunha atrás referida. Disse ainda que, desde os anos oitenta, que a demandante possui o terreno e que desde essa altura que sempre a viu a cuidar o terreno como sua proprietária e que, desde os idos anos oitenta, nunca viu a demandada no terreno nem nunca ouviu dizer que esta queria o terreno para si ou dele se pretendia assenhorar. Referiu, também, que, mesmo depois de o marido da demandante falecer, esta continuou a cuidar do terreno, nomeadamente a mandar cortar os pinheiros e carvalhos e que “nunca teve nenhuma complicação”, nomeadamente por parte da demandada, pois “toda a gente do lugar que por lá anda sabe identificar de quem é o terreno”, acrescentando que o mesmo é da demandante. A Testemunha soube identificar a localização e composição do terreno. O seu depoimento afigurara-se credível, atentas as referidas razões de ciência.
Foi também ouvida [PES-7], de 44 anos de idade, que se identificou como sendo sobrinha da demandante e que disse que, “desde miúda”, sempre ajudou a tia na “limpeza do mato” no terreno em causa nos autos. Referiu que sempre ouviu dizer que a tia comprou o terreno à demandada e, confrontada com o documento de fls. 6 e 7 dos autos, identificou que a tia já lhe tinha falado e mostrado este documento. Disse que nunca viu a demandada no terreno e que nunca viu oposição desta ou de outra pessoa na limpeza do terreno. Acrescentou que a demandante, sua tia, cortou árvores e que a demandada nunca lá foi dizer que o terreno era dela. Referiu, ainda, que foi com a demandante “fazer o BUPi” e que foi nessa sequência, e após consulta da certidão da conservatória, que verificaram que o terreno estava em nome da demandada e que, então, souberam da escritura de usucapião. Ao terem constatado essa situação, acompanhou a sua tia (demandante) a casa da demandada para apurarem o que se passou, tendo a demandada assumido que o terreno era da demandante e que nunca negou que o terreno era desta. Disse que, mesmo depois disso, a demandante continua a cuidar e limpar do terreno e que não houve qualquer manifestação por parte da demandada, referindo que, normalmente, a testemunha Felismina procede à limpeza do terreno e esta testemunha ([PES-7]) lá vai com o trator buscar o mato. Referiu, ainda, que há muito mais de vinte anos que acompanha os tios (e agora a tia), nomeadamente nos trabalhos de limpeza do terreno, porque como os tios não têm filhos sempre os acompanhou. Soube precisar as confrontações do terreno, bem como a sua localização e composição. O seu depoimento afigurara-se credível, atentas as referidas razões de ciência.
A factualidade dada como provada sob os números 4 a 13 e 17 foi dada como provada atendendo às declarações de todas as testemunhas referidas, tendo a testemunha [PES-7] comprovado, além da referida factualidade mencionada números 4 a 13 e 17, a factualidade dada como provada sob os números 14 a 16 e 18. A factualidade vertida nos números 1, 2 e 14, foi dada como provada atendendo também à conjugação da prova documental, nos termos acima já referidos, com a prova testemunhal referida e apresentada pelo demandante e produzida em audiência de julgamento, e que foi, criticamente, apreciada pelo tribunal, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (artigo 396º) e à luz das regras de experiência comum (artigo 351º).
De assinalar também que a demandada não veio apresentar qualquer contestação ou oposição quanto à pretensão da demandante - o que – noutro tipo de processo, com outro tipo de pedido e causa de pedir – seria o suficiente para que se considerassem confessados os factos aduzidos pela demandante, nos termos do n.º 2 do artigo 58º nº 2 da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, só não operando aqui esse efeito, por considerarmos ser essencial que se demonstrem os atos materiais de posse sobre os quais a demandante alicerça o seu pedido de reconhecimento de propriedade por via da usucapião alegada.
Em suma, conjugando todos os referidos meios de prova, o tribunal ficou convencido que o prédio rústico sito no [...], composto por pinhal, com a área de 280 m2, e que confronta do norte com [...], de sul com [PES-3], de nascente com [PES-4] e de poente com [PES-5], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º [Nº Identificador-8], e descrito na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição [Nº Identificador-1], é propriedade da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do falecido [PES-4] e da demandante, por o terem adquirido por via do instituto da usucapião.
Motivação dos factos não provados: não foi produzida prova quanto a tal factualidade.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Veio a demandante, por si e na qualidade de cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de [PES-4], com o NIF [NIF-2], propor a presente ação com vista à impugnação de um facto sujeito a registo e que consiste na circunstância do direito de propriedade do prédio rústico, identificado no n.º 1 dos fatos assentes, se encontrar definitivamente inscrito, na competente Conservatória de Registo Predial, a favor da demandada.
Estabelece o artigo 1º do Código do Registo Predial que “o registo predial, destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.
Deste modo, nos termos do artigo 7.º do mesmo Código do Registo Predial, se o registo predial se encontra inscrito a favor da demandada, tal circunstância faz presumir a existência do direito e a sua titularidade a favor dos inscritos, nos precisos termos em que o registo o define.
No entanto, esta presunção derivada do registo pode ser afastada, uma vez que constitui uma presunção legal relativa ou juris tantum que, à luz do n.º 2 do artigo 350º do Código Civil, é suscetível de ser ilidida mediante prova em contrário.
Como é consabido, a presunção derivada do registo cede perante a prova de factos que a infirmem, designadamente, cede perante a posse exercida por terceiro, em termos que possam conduzir à aquisição do direito de propriedade (ou outro direito real), como corolário do que se dispõe no artigo 1268.º do Código Civil.
Por outro lado, a demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se mediante prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 342º do Código Civil, o que implica, neste caso, a demonstração da aquisição originária desse direito pela demandante e seu falecido marido, de quem é única e universal herdeira.
Segundo o artigo 1316º do Código Civil, são formas de aquisição originária do direito de propriedade o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a ocupação, a acessão e demais modos previstos na lei.
A demandante, como referido, fundamenta a sua pretensão na aquisição do direito de propriedade sobre o prédio descrito no número 1 dos fatos provados com base na usucapião.
Ora, a usucapião, nos termos do artigo 1287.º do Código Civil, mais não é do que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, desde que se revista de determinadas características e durante certo período temporal.
Por seu turno e nos termos do artigo 1251.º do mesmo código, a posse é o poder que se manifesta (exercício de poderes de facto) sobre uma coisa, em termos equivalentes ao direito de propriedade ou de outro direito real, traduzindo-se no corpus ( o elemento material, ou seja, a prática de atos sobre a coisa e no animus (o elemento psicológico, ou seja, a intenção de agir como titular do direito real correspondente àqueles atos).
O nosso Código Civil consagrou uma conceção subjetiva da posse, no sentido de que não basta o exercício de poderes de facto, exigindo-se, também, a intenção de os exercer pela forma correspondente à do direito real invocado.
A usucapião traduz-se numa forma originária de aquisição do direito, ou seja, em que o titular recebe o seu direito independentemente do direito do anterior titular, pelo que, para a mesma poder ser eficaz, necessário se torna avaliar se existem atos de posse e se os mesmos foram exercidos em moldes conducentes à aquisição do direito, isto é, com a intenção de corresponder ao direito real invocado, in casu, o direito de propriedade, durante um certo lapso de tempo e com determinadas características.
No que toca às características da posse, de acordo com o disposto nos artigos 1258.º a 1262.º do Código Civil, a mesma pode a ser titulada ou não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, o que tem relevância para a quantificação do prazo necessário para que se verifique a usucapião, nos termos do artigos 1294.º a 1296.º do Código Civil.
Em suma, encontramos no artigo 1287º do Código Civil três requisitos cumulativos: i) uma posse efetiva (atual, existente); ii) posse essa mantida por certo lapso de tempo; iii) uma atuação do possuidor correspondente ao exercício do direito real cuja aquisição pretenda.
Veja-se, então, se a demandante logrou demonstrar que o prédio rústico sito no [...], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º [Nº Identificador-9], e descrito na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição [Nº Identificador-1] se manteve na sua posse, do seu falecido marido (e na herança por ela administrada, enquanto cabeça de casal), não obstante ter havido o registo da sua aquisição, no ano de 2009, a favor da demandada.
Para este efeito, importa apurar se ficou provado que, durante certo lapso de tempo e de acordo com a posse exercida pela demandada, pelo seu falecido marido (e por aquela na qualidade de cabeça de casal da herança por si administrada), foi o prédio rústico em causa nos autos objeto de aquisição originária por via da usucapião.
Ora, atendendo à matéria de facto dada como provada (nomeadamente à matéria de facto dada como provada sob os números 4 a 13 e 17) verifica-se a reunião, a favor da demandada (para si e na qualidade de cabeça de casal da herança por si administrada) dos pressupostos do instituto da usucapião, nos termos exigidos pelo Código Civil.
Na verdade, considerando o modo da aquisição, a posse exercida pela demandante (para si e na qualidade de cabeça de casal da herança por si administrada), relativamente ao prédio rústico em causa nos autos conduziu à sua aquisição, nos termos da alínea b) do artigo 1263º do Código Civil, uma vez que estes adquiriram à demandada (anterior possuidora) o prédio em questão, mediante o pagamento de determinada quantia em dinheiro, conforme o comprova o documento de fls. 6 dos autos, bem como as declarações prestadas nos autos.
Com efeito, apesar de a demandada ter efetuado o registo de aquisição do imóvel a seu favor (AP. [Nº Identificador-3]de 2009/09/09), que teve como causa a usucapião, a demandante logrou provar que esta causa de aquisição por parte da demandada não correspondeu à realidade, e que o prédio rústico sito no [...], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º [Nº Identificador-4], e descrito na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição [Nº Identificador-1], foi objeto de total posse e fruição, desde a data em que outorgaram o contrato promessa de compra e venda com a demandada (9 de abril de 1986) e, por isso, há mais de 20 anos.
Porém, não obstante a outorga do referido contrato promessa de compra e venda, porque a aquisição, naquela data, não revestiu a forma legalmente exigida, a posse da demandante considera-se não é titulada, pelo que, nos termos do n.º 2 do artigo 1260º do mesmo código, se presume de má fé. No entanto, esta presunção foi ilidida pela demandante, provando-se que esta supunha que havia título e sempre esteve na convicção de que não lesava e nem lesa os direitos de outrem e exercia direito que lhes cabe e pertence, nos termos do n.º 1 do artigo 1260º do Código Civil. Aliás, em sede de audição de partes, a demandante disse sempre julgar que o contrato promessa de compra e venda, que outorgou com a demandada, tivesse plena validade para adquirirem o prédio em causa nos autos, nomeadamente por terem procedido, à data, ao pagamento da correspondente sisa.
Ainda de acordo com os artigos 1261º e 1262º do Código Civil, a posse em causa nos autos é pacífica e pública, uma vez que a demandante (e seu falecido marido) sempre praticaram todos os atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o prédio rústico em causa nos autos, limpando, ou mandando limpar, ano após ano, o respetivo terreno (nomeadamente o mato/vegetação), cortando as correspondentes árvores (pinheiros e carvalhos), retirando do terreno todos os proveitos que o mesmo dá, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente sem qualquer oposição da demandada, na convicção de não lesar interesses alheios e de forma ininterrupta.
Quanto ao lapso de tempo necessário à aquisição do terreno em causa nos autos por via da usucapião, verifica-se que a posse sobre o mesmo foi exercida, até aos dias de hoje, pela demandante e seu falecido marido, desde a data da celebração do contrato promessa de compra e venda de fls. 6 e 7 dos autos, outorgado em 9 de abril de 1986, e, por conseguinte, há mais de 20 anos, o que, nos termos do artigo 1296.º do Código Civil, é condição plena e suficiente, atento o preenchimento dos pressupostos anteriores, para a aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Aqui chegados, havendo a demandante demonstrado e provado a aquisição, por via da usucapião, do prédio rústico sito no [...], composto por pinhal, com a área de 280 m2, e que confronta do norte com [...], de sul com [PES-3], de nascente com [PES-4] e de poente com [PES-5], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º 757, e descrito na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição [Nº Identificador-1], e de que nenhuma oposição foi manifestada pela demandada, durante ou, sequer, no início da sua posse, tendo esta, em declarações à demandante, confirmado que lhe tinha vendido o citado prédio, procedem inteiramente os pedidos formulados, sendo, consequentemente, ordenado o cancelamento da inscrição que incide sobre tal prédio a favor da demandada, em conformidade com os artigos 8º e 13º do Código do Registo Predial.
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DECISÃO:
Em face do exposto e pelos fundamentos invocados, julga-se a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Declaro que o prédio rústico sito no [...], composto por pinhal, com a área de 280 m2, e que confronta do norte com [...], de sul com [PES-3], de nascente com [PES-4] e de poente com [PES-5], inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de [...] sob o art.º 757, e descrito na Conservatória do Registo Predial de [...] sob a descrição [Nº Identificador-1], é propriedade da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do falecido [PES-4] e da demandante, por o terem adquirido por via do instituto da usucapião;
b) Ordeno o cancelamento da inscrição que pende sobre o prédio atrás identificado, a favor da demandada, mediante a Apresentação [Nº Identificador-2] de 2009/09/09, de acordo com os artigos 8º e 13º do Código do Registo Predial;
c) Ordeno a inscrição na matriz e o registo do acima referido prédio rústico, nos termos declarados na alínea a);
d) Mais ordeno que o prédio rústico em causa seja restituído à demandada e à herança atrás identificada, junto da respetivo cabeça de casal, a ora demandante.
Consequentemente:
e) Condena-se a demandada a reconhecer o declarado na alínea a).
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As custas totais, no valor de € 70,00 (setenta euros), são da responsabilidade da demandada, vencida na ação, nos termos do disposto no artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, alterada pela Lei nº 54/2013, de 31 de julho, e dos artigos 1º e 2º, nº 1, alínea b) da Portaria nº 342/2019, de 01 de outubro, sendo que tal quantia deve ser paga num dos três dias úteis imediatamente subsequentes ao do conhecimento da presente decisão, sob pena de aplicação e liquidação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação, não podendo o montante global da sobretaxa exceder o valor de € 140,00 (cento e quarenta euros).
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Adverte-se a demandada que a falta de pagamento das custas da sua responsabilidade, através do documento único de cobrança (DUC) emitido pelo Julgado de Paz e no referido prazo, terá como consequência a submissão de certidão de dívida de custas para efeitos de execução fiscal junto da Administração Tributária, após o trânsito em julgado da presente decisão (artigo 35º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais).
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Adverte-se a demandante que, verificado o trânsito em julgado da presente decisão, será dado cumprimento oficioso ao disposto no artigo 63º, nº 1 do Código de Imposto de Selo, comunicando-se a presente decisão à Autoridade Tributária.
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Para tal efeito, oportunamente, emita-se e remeta-se a competente certidão ao Serviço de Finanças de Sátão.
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Adverte-se também a demandante que, como têm legitimidade para promover o registo da decisão final ora proferida nesta ação, deverá observar os prazos legais do artigo 8º-C do Código do Registo Predial, sob pena do pagamento acrescido de quantia igual à que estiver prevista a título de emolumento (artigo 8º-D do referido Código), considerando-se desonerado este tribunal de promover oficiosamente tal registo.
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Para tal efeito, oportunamente, emita-se e remeta-se a competente certidão à demandante.
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Registe e notifique.
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Consigna-se que, ainda que, em abstrato, os factos declarados na escritura de Justificação outorgada no dia quinze de dezembro de dois mil e seis, no [ORG-3], junta aos autos, pudessem configurar a prática do crime de falsas declarações perante oficial público, nos termos ali advertidos, atendendo ao tempo decorrido e ao eventual decurso dos respetivos prazos de prescrição, não serão os factos participados ao Ministério Público.
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A presente sentença compõe-se de catorze folhas, com os respetivos versos em branco, e foi elaborada (por meios informáticos) e revista pela signatária.

Vila Nova de Paiva, 27 de março de 2024

A juíza de paz,

(Janete Rodrigues Fernandes