Sentença de Julgado de Paz
Processo: 45/2022-JPCBR
Relator: CISTINA EUSÉBIO
Descritores: LITIGÂNCIA POR MÁ FÉ
Data da sentença: 09/10/2024
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral:
Proc.º n.º 45/2022-JPCBR

SENTENÇA
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RELATÓRIO:
[PES-1] identificado a fls. 1 propôs contra [PES-2], melhor identificada, também a fls. 1 a presente ação declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 14.366,14 € (Catorze mil, trezentos e sessenta e seis euros e catorze cêntimos), relativa a vários empréstimos que lhe fez no ano de 2016.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial de fls. 1 a 3, que aqui se dá por reproduzido.
Juntou 4 documentos que, igualmente, se dão por reproduzidos. (fls. 4 a 7)
A Demandado foi, pessoal e regularmente, citada para contestar, no prazo, querendo, tendo apresentado a sua contestação de fls.28 a 30 negando ter existido qualquer empréstimo por parte do demandante, explicando que entre o ano de 2014 a 2021, demandante e demandada viveram em condições análogas às dos cônjuges e que durante esses anos ambos contribuíam para a economia doméstica na medida dos respetivos vencimentos, sendo que nunca foi estabelecido entre as partes qualquer restituição de valores despendidos.
Requer a condenação do demandante como litigante de má fé. Juntou 2 documentos que aqui se dão por reproduzidos.
Tendo o demandante, após marcação da data da pré-mediação, afastado recurso à Mediação para resolução do litígio, designou-se o dia 15 de dezembro de 2022 para realização da Audiência de Julgamento, tendo sido desmarcada por despacho de fls. 49 e reagendada para o dia 10 de maio de 2023.
Por requerimento de fls. 58 e 59, veio o demandante apresentar resposta à peticionada condenação como litigante de má-fé.
Por despacho de fls. 67 foi a audiência de julgamento reagendada para o dia 7 de junho de 2023.
Na referida data, foi aberta a Audiência e estando todos presentes, foram juntos aos autos, pela parte demandante, dois documentos de fls. 88 a 169, tendo sido concedido prazo para análise e exercício do contraditório à demandada de 10 dias, agendada a sua continuação para o dia 26 de outubro de 2023.
Tendo sido juntos aos autos os documentos de fls. 180 a 181, 191 a 194 e 202 a 205, foi requerido prazo de vista pela demandada e foi-lhe concedido na sessão de julgamento realizada em 26 de outubro de 2023, agendando-se a sua continuação para o dia 4 de abril de 2024.
A referida data foi reagendada para o dia 31 de maio de 2024, na sequência da alteração da Juíza de Paz titular do Julgado de Paz de Coimbra, cujas férias se encontravam anteriormente marcadas para os dias 22 de março a 5 de abril de 2024.
Reagendou-se a audiência de julgamento para o dia 31 de maio de 2024 e 26 de julho de 2024, tendo as partes sido ouvidas, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 57.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho (LJP), tendo-se explorado todas as possibilidades de acordo, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 26.º, do referido diploma legal, o que não se conseguiu.
Foi produzida a prova e juntos os documentos de fls. 238 a 261 e 266 a 268.
Foram produzidas alegações orais.
Procede-se, nesta data à prolação da sentença, por necessidade de ponderação e análise dos documentos e restante prova produzida.

As questões a decidir por este tribunal circunscrevem-se à caracterização do contrato celebrado entre o Demandante e o Demandado e às obrigações e direitos daí decorrentes.
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Estando reunidos os pressupostos da estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. O demandante e a demandada viveram em união de facto desde 2014 a 21 de abril de 2021, tendo desse relacionamento nascido uma filha, [PES-3] em 21 de julho de 2015.
2. No referido período demandante e demandada trabalharam por conta de outrem auferindo os respetivos salários ou prestações sociais.
3. A demandada auferiu prestações sociais correspondentes períodos de doença e maternidade em 2015 e 2018 e auferiu subsídio de desemprego entre dezembro de 2015 a novembro de 2016. (cfr. doc. Fls. 191 a 194).
4. O demandante foi declarado insolvente em 18 de novembro de 2014 no processo n.º 5544/14.4T8CBR que correu termos na [ORG-1].
5. De outubro de 2016 a 4 de julho de 2019, o demandante procedeu a transferências bancárias da conta por si titulada do Banco CTT com o n.º [Nº Identificador-1] para a conta com o NIB [NIB-1] da [ORG-2], titulada pela demandada, no montante de 7.502,11€
6. No mesmo período, a demandada transferiu para a conta do demandante no Banco CTT a quantia de 766,00€.
7. Entre agosto de 2015 até setembro de 2016 a demandada transferiu para a conta da [ORG-3] referida em 2 , a quantia de 8.712,73€.
8. De agosto de 2015 a setembro de 2016, o demandante transferiu para a conta referida em 7 a quantia de 2.072,46€.
9. Demandante e demandada recebiam os respetivos salários e prestações sociais nas contas identificadas em 5.
10. O fim da relação de demandante e demandada pautou-se pelo conflito tendo sido apresentada queixa por violência doméstica em 21 de maio de 2021.
11. Por carta datada de 7 de janeiro de 2022, o demandante interpelou a demandada ao pagamento da quantia de 14.336,14€
Não provados:
- Que a demandada tenha assumido a obrigação de restituir quantias monetárias despendidas pelo demandante para pagamento da[ORG-4].
- Que o demandante tenha pago as prestações do carro da demandada, cartões de crédito e seguros a pedido da demandada e que esta se comprometeu a restituir.
- Que o demandante não pretendia ter a sua conta provisionada acima do rendimento disponível fixado na insolvência, motivo pelo qual transferia valores para a conta da demandada.

Não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou instrumentais, com interesse para a decisão da causa.

MOTIVAÇÃO
A matéria dada por provada resulta do conjunto da prova produzida pelas partes, nomeadamente a prova documental, declarações de parte prestadas por ambas as partes e depoimentos das testemunhas.
As testemunhas arroladas por ambas as partes relataram de forma unânime, que o dissolvido casal sempre atravessou dificuldades financeiras, socorrendo-se do auxílio dos seus familiares até para as necessidades mais básicas, como a habitação e a alimentação. Tais dificuldades resultavam de vários fatores da vivência do casal e da situação de insolvência do demandante, por ter acumulado dívidas anteriores a essa relação.
As testemunhas não souberam, naturalmente, relatar situações mais concretas ou valores em causa, mas referiram que demandante e demandada trabalhavam - ainda que a demandada tivesse mudado de emprego algumas vezes e tivesse tido períodos em que auferia o subsídio de desemprego - recebiam os seus salários, mas recorriam frequentemente aos pais (de ambos) para os ajudar.
De qualquer modo, sempre se dirá que, sendo as testemunhas [PES-4], [PES-5], [PES-6] e [PES-7], familiares próximos (pais e irmã) o seu depoimento não deixou de ser comprometido pela perceção de cada uma das partes, demonstrando até alguma animosidade.
O facto sob o n.º 1 considera-se provado por acordo.
Contribuíram para a consideração como provados dos factos ínsitos nos n.ºs 2 e 3, os documentos ali referidos em conjugação com os depoimentos das testemunhas.
Os factos constantes dos n.ºs 5 a 9 resultaram da soma dos valores de transferência constantes dos documentos de fls. 88 a 137 e 239 a 261.
Quanto aos documentos de fls 138 a 169 não foram valorados na medida em que mal se compreende a pertinência dos mesmo para as questões que nos ocupam e encontram-.se de tal maneira rasurados que se tornam ilegíveis.
Os factos sob o n.º 4, 10 e 11 resultaram da documentação junta aos autos no que àquela matéria respeita, tendo o tribunal oficiosamente verificado a insolvência do demandante na divulgação pública do Portal Citius.
Quanto à matéria não provada, resultou quer da escassez de alegação quer da falta prova apresentada que infirmasse a matéria ali elencada.
De facto, nenhuma fatura e/ou contrato, coma operadora MEO foi junto aos autos, pelo que se desconhece a titularidade e valor das prestações e em que medida a demandada seria responsável por elas ou em que termos ta foi acordado. Igualmente nenhuma prova foi feita de que a demandada houvesse de restituir valores transferidos ou pagos, por assim ter sido combinado entre as partes. Da mesma forma, nenhuma prova concreta foi trazida aos autos no que diz respeito a um contrato de compra e venda de uma viatura, seguro ou cartão de crédito (sua utilização, por quem, como e em que montantes).

FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
O demandante conforma a sua ação com base na existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes.
Nos termos do disposto no Art.º 1142.º, do Código Civil, mútuo é o contrato “... pelo qual uma das partes empresta à outro dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”.
O contrato de mútuo supõe a verificação de dois elementos constitutivos: a ) entrega de uma coisa fungível ou de determinada quantia em dinheiro; b) obrigação de restituição da coisa ou dinheiro mutuado e a cargo do demandado, acrescida de eventual remuneração.
No presente caso, o demandante alega que transferiu diversos montantes para a conta da demandada e que procedeu ao pagamento de valores devidos por esta a várias entidades.
No entanto, não logrou provar que o tenha feito com a obrigação de a contraparte lhe restituir as referidas quantias, facto constitutivo do direito de que se arroga.
Na verdade, o que resultou da prova produzida foi que as partes viveram em união de facto, sendo normal neste tipo de relação que ambas as procedam a pagamento da “economia comum” e aquisição de bens, de forma análoga à dos cônjuges e segundo conjugação das suas vontades.
Como bem se refere no Acórdão da Relação de Coimbra datado de 13 de fevereiro de 2022 publicado em www.dgsi.pt : “ Às pessoas unidas de facto é lícito, ao abrigo da sua autonomia privada, contratualizar a regulação dos aspectos patrimoniais da relação, designadamente o aspecto capital da divisão dos bens que venham a adquirir durante a vivência em comum; na falta dessa convenção, que é meramente facultativa, a divisão do património adquirido com o esforço dos membros da união de facto deve ser actuada segundo as normas e princípios gerais do direito comum, entre os quais se conta, evidentemente, os que dão corpo ao instituto do enriquecimento sem causa.
A composição dos interesses patrimoniais conflituantes dos membros da união de facto, consequente à sua extinção, deverá assentar no instituto do enriquecimento sine causa, que disponibiliza uma tutela adequada àquela composição.”( sublinado nosso).
E para que tal pudesse ser apreciado, nos presentes autos, necessário se tornaria que tivessem sido trazidos todos os elementos patrimoniais da vigência da união de facto, nomeadamente o valor dos bens (como a viatura por exemplo), bem como a concreta contribuição de cada um dos elementos do ex-casal para a aquisição de tais bens ou outras despesas da vida comum, por forma a chegar aos valores a crédito de qualquer uma das partes.
Não se tendo logrado tal desiderato, a ação haverá de estar votada ao insucesso.
Quanto á alegada má-fé do demandante no presente processo, diremos que a demandada ancora a sua pretensão no facto de o demandante ter alterado ou omitido a verdade dos factos. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 542º que dispõe que “litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para decisão da causa “.
A figura do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga, falseando os factos por forma a obter um resultado ilegítimo.
Como refere o normativo legal, a atuação de quem litiga de má-fé haverá de ser intencional, por dolo ou negligência grave, merecendo um especial juízo de censura.
Dos factos trazidos aos autos e que constam da matéria dada por provada e não provada, o tribunal não pode retirar tal conclusão, juízo de censura ou necessidade punitiva. Não podemos esquecer que o demandante deu início ao processo sem estar acompanhado por advogado e que na sua perceção da realidade se considera prejudicado ou lesado no seu património por força da relação que manteve com a demandada.
Por outro lado, a demandada não alega ou concretiza os factos pelos quais entende que o demandante haverá de ser condenado como litigante de má-fé, pelo que a sua pretensão haverá de improceder.

DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a presente ação totalmente improcedente, porque não provada, decido absolver a demandada do pedido.
Absolvo o demandante da litigância de má-fé.

As custas serão suportadas pelo Demandante, nos termos e para os efeitos do art. 3º da Portaria n.º 342/2019 de 1 de outubro devendo ser pagas, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença –ainda que o prazo de validade do DUC seja mais alargado, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efetivo cumprimento dessa obrigação.
A falta de pagamento das custas acarreta a sua cobrança por processo de execução fiscal.

Registe.
Coimbra, 10 de setembro de 2024
A Juíza de Paz

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(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 138.º/5 do C.P.C.)