Sentença de Julgado de Paz | |
Processo: | 111/2023-JPSRT |
Relator: | MARTA NOGUEIRA |
Descritores: | AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL |
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Data da sentença: | 06/04/2024 |
Julgado de Paz de : | SERTÃ |
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Decisão Texto Integral: | SENTENÇA (art. 57º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho – LJP, alterada pela lei n.º 54/2013, de 31 de julho) * Processo n.º 111/2023-JPSRT. Demandante: [PES-1]. Demandada: [ORG-1], Lda. Objeto da ação: Ação de Responsabilidade Civil, enquadrada na alínea h) do n.º 1 do art. 9º da LJP. Valor da ação: € 13.760,00 (treze mil setecentos e sessenta euros). * OBJETO DO LITÍGIOO demandante, [PES-1], veio propor, em 11-12-2023, a presente ação, com fundamento na alínea h) do n.º 1 do art. 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho (LJP), peticionando a condenação da demandada no pagamento de 13.760,00 €, acrescido dos valores vincendos a título juros à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento. Para tanto alegou os factos constantes do seu requerimento inicial de fls. 1 a 10, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. Juntou: 5 (cinco) documentos, que se dão por integralmente reproduzidos. TRAMITAÇÃO A demandada foi regularmente citada, cfr. fls. 22 dos autos, e apresentou a contestação de fls. 23 a 34, na qual se defendem por impugnação, a qual se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. Requereu a intervenção principal provocada de terceiro, que foi indeferida, cfr. Despacho de fls. 46 a 50. * Foi designado o dia 16-04-2024, pelas 10h00m, para realização da audiência de julgamento, a qual se realizou com todas as formalidades legais, cfr. da respetiva ata se alcança. Foi esta audiência suspensa para continuar no dia 17-05-2024, pelas 10h00m, a qual se realizou com todas as formalidades legais, cfr. da respetiva ata se infere, tendo sido ouvidas as testemunhas apresentadas pelas partes e produzidas breves alegações. Foi esta audiência de julgamento suspensa para continuar na presente data e hora para prolação de sentença.* O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do território e do valor.Verificam-se os pressupostos processuais de regularidade e validade da instância, inexistindo questões prévias ou nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa ou invalidem totalmente o processo. * VALOR DA AÇÃOFixa-se à ação o valor € 13.760,00 (treze mil setecentos e sessenta euros), cfr. indicação do demandante e artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1, 297º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi do artigo 63º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho (de ora em diante, abreviadamente, designada por LJP). * FUNDAMENTAÇÃOCom interesse para a decisão da causa ficaram provados os seguintes factos: 1 – O Demandante comprou a 18.04.2023 o veículo [ - - 1] à Demandada (Cfr. doc. n.º 1, que se considerada como reproduzido para todos os efeitos legais); 2 – A Demandada exerce a atividade de – entre outras – comércio de veículos automóveis (Cfr. doc. n.º 2, que se considerada como reproduzido para todos os efeitos legais); 3 – O Demandante dirigiu-se às instalações da Demandada comprou o veículo [ - - 1], marca [Marca-1], modelo 120, pelo valor de 11.000,00 € (onze mil euros); 4 – Passadas duas semanas o referido veículo começou a apresentar indicadores de alerta no tablier, alerta de motor, de Start/stop, alerta de filtro de partículas e até as horas ficavam incorretas; 5 – O Demandante comunicou imediatamente à Demandada a ocorrência dessas situações; 6 – Por ordem da Demandada, face às diversas comunicações de problemas por parte do Demandante, o veículo foi levado a um mecânico (Sr Nuno) para que fosse efetuada a reparação do veículo [ - - 1]. 7 – Foi trocada a bateria do[ - - 3] e foi limpo o filtro de partículas; 8 – No dia 23.07.2023, pelas 22.30 horas, estava o Demandante a circular na [...], [...], [...], quando o veículo se desligou; 9 – O Demandante saiu do carro, abriu o capô do mesmo e verificou que estava a sair fumo e já apresentava labaredas; 10 – Foi ajudado por vários populares e chamou imediatamente os Bombeiros; 11 – O sucedido ocorre na estrada contínua à habitação do Sr. [PES-2] ([...], 4) que acaba por se ferir no incêndio do veículo; 12 – Foram ainda provocados danos numas vinhas de propriedade do Sr. [PES-2] e num veículo estacionado propriedade de [PES-3], com a matrícula [ - - 2]; 13 – Em consequência dos danos advenientes do sinistro, o [ - - 4] ficou impossibilitado de circular; 14 – Entre a reparação do veículo e o incêndio do mês decorreu mais de 1 mês e meio. Não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou instrumentais, com interesse para a decisão da causa, nomeadamente que: A – A demandada tendo comunicado que o veículo estava em ótimo estado de conservação; B – O mecânico que fez a reparação foi indicado pela demandada; C – A reparação tenha sido efetuada sob as ordens e supervisão da demandada; D – Decorridas três semanas sobre o levantamento do veículo da mencionada oficina, o veículo acendeu o aviso de filtro de partículas; E – A demandada sabia que o veículo que vendia tinha problemas cuja reparação era necessária, tanto que, promove a sua mitigação parcial quando é interpelado pelo demandante por diversas vezes; F – A demandada não promove a reparação dos danos no veículo como deveria, dado que, por força disso, e embora os avisos fossem vários – alertas consecutivos sobre o filtro de partículas; G – Face à ausência de reparação do filtro de partículas, o veículo se incendiou; H – A demandada vendeu ao demandante um bem que, nos termos do artigo 2.º, alíneas a) e d) do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, que estabelece o regime jurídico das garantias dos bens de consumo, não estava conforme; I – Não estava conforme com a descrição que foi feita pela demandada, nem tão pouco possuía as qualidades que a demandada apresentou ao demandante; J – A demandada transmitiu ao demandante que o veículo se encontrava em excelente estado de conservação e que não detinha quaisquer problemas mecânicos ou outros; K – O FX era utilizado pelo demandante para a sua vida profissional, sobretudo para a realização de deslocações para o trabalho; L – E também era utilizado em todas as deslocações pessoais e quotidianas, por exemplo, deslocação dos seus filhos à escola, pequenas compras, deslocações de lazer; M – Com a impossibilidade de utilização do FX o demandante se viu impedido de desenvolver a sua vida profissional e pessoal, como habitualmente. Motivação dos factos provados e não provados A convicção probatória do tribunal, de acordo com a qual seleciona a matéria dada como provada ou não provada, ficou a dever-se ao conjunto da prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomados em consideração as declarações das partes, os documentos juntos por ambas e as declarações das testemunhas apresentadas. DO DIREITO No âmbito da presente ação trata-se de saber se ao Demandante pode ser reconhecido o direito indemnizatório de que o mesmo se arroga titular nestes autos; isto é, o direito a haver da Demandada o pagamento, com juros de mora, da quantia de 13.760,00€, devidos pelo incumprimento contratual que lhe imputa, motivado pela destruição do veículo automóvel que lhe comprou (de matrícula [ - - 1]), que se incendiou quando, no dia 23-07-2023, circulava na [...], [...], [...]. Ora, como cremos ser intuitivo, esse direito só lhe pode ser reconhecido se o referido incêndio tiver sido originado por alguma desconformidade no dito veículo em relação às qualidades que é suposto serem-lhe inerentes ou que a Demandada se tenha comprometido a assegurar ao Demandante. Se, por outras palavras, esse veículo, à época, padecesse de «defeitos intrínsecos, inerentes ao seu estado material, e não ser, portanto, conforme ao contrato ou legitimamente esperadas pelo comprador». Vejamos, então, se é esse o caso. Observando a matéria de facto provada, verificamos, antes de mais, que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda de um bem de consumo. Ou seja, o Demandante adquiriu o veículo automóvel já identificado, enquanto consumidor, isto é, para ser por si utilizado, e a Demandada, por sua vez, vendeu-lhe esse veículo no exercício da sua atividade profissional. Ora, quando assim é, ou seja, quando estamos perante um contrato de compra e venda de bens de consumo, impõe a lei que «O profissional deve entregar ao consumidor bens que cumpram os requisitos constantes dos artigos 6.º a 9.º, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º», cfr. art. 5º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, isto é, bens que estejam conformes com o contrato de compra e venda, que correspondem à descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade e detêm a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características previstas no contrato de compra e venda, são adequados a qualquer finalidade específica a que o consumidor os destine, de acordo com o previamente acordado entre as partes, são entregues juntamente com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, tal como estipulado no contrato de compra e venda, e são fornecidos com todas as atualizações, tal como estipulado no contrato de compra e venda, e que, por isso mesmo devem ser adequados ao uso a que os bens da mesma natureza se destinam, corresponder à descrição e possuir as qualidades da amostra ou modelo que o profissional tenha apresentado ao consumidor antes da celebração do contrato, sempre que aplicável, ser entregues juntamente com os acessórios, incluindo a embalagem, instruções de instalação ou outras instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber, sempre que aplicável, e corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo considerando, designadamente, a sua natureza e qualquer declaração pública feita pelo profissional, ou em nome deste, ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de negócio, incluindo o produtor, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem. Se assim não for, isto é, se faltar alguma destas características, pode concluir-se que tais bens não são conformes com o contrato. Assim, presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem. E, se assim for, o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, sendo que a falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos a contar da data de entrega do bem se presume existente já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade, cfr. artigo 13º do mesmo diploma legal. Por outro lado, «se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador», cfr. artigo 921º nº 1 do Código Civil). Pressuposto, assim, da responsabilidade do vendedor, em qualquer uma das suas dimensões, é o mau funcionamento da coisa vendida ou, dito por outras palavras, a falta da sua conformidade com o contrato. O que, naturalmente, tem de ser invocado e provado por quem se arroga titular dos direitos daí resultantes, ou seja, o consumidor (artigo 342º n.º 1 do Código Civil) – Neste sentido, Ac. STJ de 20/03/2014, Processo n.º 783/11.2TBMGR.C1.S1, Ac. STJ de 26/04/2012, Processo n.º 1386/06.9TBLRA.C1.S1 e Ac. RC de 20/11/2012, Processo n.º 6646/05.3TBLRA.C1, consultáveis em www.dgsi.pt, referindo-se neste último que «segundo a «teoria da norma» e porque facto constitutivo do direito, compete ao autor o ónus de alegar e provar o defeito, ou seja, a falta de conformidade (art. 342º n.º 1 do CC), tanto para o direito civil comum, como para a legislação específica da tutela do consumidor». Ainda Ac. RG de 13/05/2021, Processo n.º 2927/18.4T8VCT.G1, consultável no mesmo endereço eletrónico. No mesmo sentido se pronunciou também, João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, Comentário, 3ª edição, Almedina, pág. 74, quando refere que «a prova da falta de conformidade, vale dizer, a não correspondência do bem recebido ao bem convencionado, cabe ao comprador, com a ajuda, na falta de cláusulas específicas, das presunções do n.º 2 do art. 2º [do Decreto Lei n.º 67/2003], demonstrando as qualidades ou características que as ditaram para se considerarem devidas». Ora, tendo presente este enquadramento, verificamos que o demandante alega a desconformidade do bem, mais concretamente da viatura por si adquirida em relação ao contrato que celebrou com a demandada, cfr. art. 14º do requerimento inicial, tendo avançado como motivo justificativo que o que motivou o incêndio foi uma deficiente reparação feita pelo mecânico que reparou a viatura após queixas do demandante quanto ao facto de se acender a luz do motor, serem apresentados alertas no filtro de partículas, deficiente funcionamento do sistema de Start/stop e desregulação das horas, mecânico este que, segundo se apurou fazia trabalhos de reparação de viaturas quer do demandante, quer do demandado e que, segundo o próprio, foi instruído pelo Legal Representante da Demandada para ver o que se passava com a viatura e reparar a mesma, sem este ter estabelecido qualquer limitação às reparações necessárias. No decorrer da audiência de julgamento, segundo declarações do próprio demandante, refere o mesmo que o que motivou o incêndio foi uma deficiente reparação do veículo (não só quanto ao filtro de partículas, como também na substituição da bateria por uma que não seria adequada, o que já vinha alegado, cfr. artºs. 6º, 7º, 16º, 17º e 18º do seu requerimento inicial, mas não resultou provado. E é perante esta descrição que importa questionar se, nesta hipótese, estamos ou não perante uma desconformidade contratual, nos termos já assinalados. Ora, do nosso ponto de vista, desde já o adiantamos, a resposta deve ser negativa. Com efeito, continua a desconhecer-se o que provocou o referido incêndio, sendo certo que o mesmo pode ser o sintoma de algum vício ou defeito da viatura coberto pelo programa contratual ou, ao invés, tratar-se de uma consequência que de todo lhe é alheia. Basta pensar na hipótese de tal sobreaquecimento ser pontual e resultante da falta de manutenção por parte do demandante, por exemplo falta de óleo no motor, para facilmente se afastar aquela causa. Dito por outras palavras: à luz das regras da experiência comum, não se pode concluir que esse aquecimento excessivo tenha sido provocado necessariamente por a dita viatura não ter as qualidades que era suposto que tivesse à época ou que a demandada se comprometeu a assegurar. De qualquer modo, mesmo que assim não se entenda e se considere que o sobreaquecimento de um veículo automóvel em circulação é já, em si mesmo, um vício ou defeito cuja origem ao vendedor compete demonstrar, porque, designadamente, não é suposto que um veículo automóvel tenha esse tipo de problemas, havendo, assim, inadequação, cremos, ainda assim, que, neste caso concreto, a responsabilização da demandada não deve ter lugar. Com efeito, a demandada tem o direito a conhecer a causa do acidente, ou seja, tem, por outras palavras, o direito à descoberta da verdade material, uma vez que o demandante lhe imputa uma obrigação cuja existência está dependente justamente da determinação de tal causa. Acresce que, por negligência (processual) do demandante não foi realizada qualquer prova pericial ao veículo sinistrado, porquanto a mesma foi requerida extemporaneamente, o que levou ao seu indeferimento, cfr. Despachos proferidos e juntos aos autos, uma vez que a realização da prova pericial foi requerida após o início da audiência de julgamento, e sem sequer ser indicado o objeto da perícia e formulados os quesitos, o que contraria do disposto no art. 59º da LJP e o CPC. Este é um dos pontos fulcrais desta ação: saber se o incêndio teve origem numa avaria mecânica proveniente duma má reparação do veículo, nomeadamente no filtro de partículas e/ou substituição da bateria por outra desadequada. Verificada a totalidade da prova produzida nestes autos (do relatório pericial e restante documentação escrita juntos aos autos, aos depoimentos testemunhais prestados em audiência de julgamento) cremos que, retirar qualquer conclusão, será mera especulação, porquanto, em lado algum se consegue tirar tais conclusões, nomeadamente se foi a reparação do filtro de partículas a causa do incêndio ou a bateria nele colocada. Aliás, nem sequer o demandante logrou provar que houve uma reparação defeituosa, nomeadamente quanto ao filtro de partículas, nem, tão-pouco, se o incêndio do veículo teve origem no filtro de partículas. De facto, da prova efetivamente produzida nada resulta no sentido de que até ao momento do incêndio a viatura que se incendiou tivesse algum problema de funcionamento que levasse à produção do sinistro (isto apesar das queixas do demandante quanto às avarias detetadas, que foram prontamente resolvidas pela demandada, assim que teve conhecimento das mesmas pelo demandante, tendo ordenado a imediata reparação da viatura numa oficina de confiança de ambos, demandante e demandada). Aliás, entre a reparação da viatura (em início de junho) e o sinistro (no final de julho) decorreu sensivelmente um mês e meio a dois meses, período durante o qual o veículo em causa não apresentou qualquer avaria. Ou seja, nada nos autos nos autoriza qualquer conclusão quanto à origem do incêndio, nem nos permite saber o que é consequência do incêndio e o que é que lhe é anterior, e muito menos permite dizer que foi por causa do filtro de partículas que ele ocorreu. E é este salto que não é possível dar, com a seriedade que a apreciação da prova exige. Repare-se, aliás, que os cenários da deficiente reparação do filtro de partículas e/ou da bateria substituída que não era a adequada (repita-se que nenhum destes factos resultou provado) possíveis para ocorrência do sinistro, são puramente especulativos e exigiriam prova de outros factos que permitisse tirar conclusões sérias e causais quanto à produção do sinistro. Sublinhe-se, por outro lado, que nem sequer a fonte de ignição do incêndio foi apurada. E ainda que fosse realizada prova pericial haveria uma forte probabilidade de não ser possível chegar a conclusões úteis em face do estado de danificação em que o carro ficou com o incêndio. E se com esta prova documental, já o demandante não podia pretender considerar como provados os dois factos em causa (deficiente reparação do filtro de partículas e/ou substituição de bateria para uma não adequada), quando ela é concatenada com a apreciação dos depoimentos das testemunhas, nomeadamente da testemunha [PES-5], mecânico que fez a reparação (imparcial, credível e conhecedor dos factos sobre os quais testemunhou), essa pretensão ainda fica mais enfraquecida. Repetindo-se que resulta que a causa do incêndio verificado no veículo não se apurou, tudo se limitando a hipotéticos cenários apresentados pelo demandante. Isto tudo para dizer que a pretensão do demandante é a de que a demandada lhe pague o valor que deu aquando da compra do veículo à demandada, com a matrícula [- - 1]. O demandante alegou que o incêndio no veículo teve origem numa deficiente reparação do filtro de partículas e/ou na substituição da bateria por uma que, segundo o mesmo, não era a adequada, mas não logrou provar essa factualidade (prova essa que lhe cabia, por constituir a prova do facto gerador da obrigação de indemnizar). A argumentação do demandante vai no sentido de que, nos termos do art. 2º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, o comprador é considerado consumidor e, nos termos do artigo 4º, na falta de conformidade do bem com o contrato, tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. Cumpre salientar que o diploma invocado pelo demandante foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro. Ora, esta ação está configurada pelo demandante como uma ação de responsabilidade civil contratual por venda de coisa defeituosa, por força de um incêndio ocorrido numa viatura fornecida pela demandada. Em face dos factos apurados tem-se como assente que o sinistro originou a perda total do veículo. Resta saber se o incêndio se ficou a dever a defeito no próprio veículo. São os artigos 913º e 921º do CC que começam por estar convocados para análise, sendo certo que o que era alegado era que o referido incêndio teve origem numa deficiente reparação do filtro de partículas e/ou na substituição da bateria por uma que não era a adequada, o que não resultou provado. E perguntar-se-á a quem cabia a prova dessa factualidade? A posição assumida pela doutrina e pela jurisprudência têm sido unânimes: nos termos do art. 342º n.º 1 do CC, ao demandante impunha-se o esforço probatório quanto à circunstância de o veículo em causa apresentar defeito. E não um defeito qualquer, mas um defeito que fosse suscetível de originar o incêndio. Esse seria o facto gerador da obrigação de indemnizar. A simples circunstância de estar provado no processo a existência de um incêndio num veículo, não autoriza a conclusão de que tal veículo não apresentava qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar. Numa situação similar (veículo dentro do prazo de garantia que se incendeia e em que se não provam defeitos ou falta de qualidade das suas peças), o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 20 de março de 2014 (Processo n.º 783/11.2TBMGR.C1.S1-Moreira Alves), considerou que a Ré (produtora do veículo) não poderia ser responsabilizada. E, para chegar a essa conclusão, afirmou que a existência de um «incêndio não é, seguramente, um defeito, uma falta de qualidade ou deficiente funcionamento, mas a consequência de um processo causal anterior». Ou seja, entende a jurisprudência que: «Ora, se é certo que não tinha de demonstrar a causa do defeito, competia-lhe, no entanto, provar o defeito. Acontece que o incêndio não é um defeito, uma falta de qualidade, um deficiente funcionamento, é, antes, a consequência de um processo causal anterior e é no interior desse processo causal que há-de encontrar-se o defeito, isto é, o facto concreto (curto-circuito, ligação mal efetuada, instalação elétrica com comportamento anormal, etc., etc..), a partir do qual se deduz a falta de qualidade e a inexistência do desempenho que seria, nas circunstâncias, expectável, o que, por sua vez, faz presumir a desconformidade da coisa (automóvel, no caso) com o contrato. É certo que não é suposto que os automóveis se incendeiem, mas a verdade é que tal aconteceu, sem que o Demandante impute a ocorrência (e prove a imputação) a um específico defeito ou deficiência de funcionamento que, independentemente da prova da sua causa (causa do defeito), e de acordo com as regras da experiência comum e do bom senso, indicie uma falta de qualidade e desempenho anormal, em função do que razoavelmente seria de esperar de uma coisa daquela natureza. Ora, as mesmas regras da experiência comum e o bom senso, revelam que um veículo automóvel, dotado de todas qualidades normais que lhe são características, com desempenho também perfeitamente normal, pode, não obstante, incendiar-se por motivos absolutamente alheios e exteriores ao próprio veículo, designadamente, por ação de terceiro ou caso fortuito. Quer dizer que a ocorrência do incêndio pode ocorrer e ocorre, de facto, na vida real, mesmo na ausência de qualquer defeito ou deficiência de funcionamento. Por isso, do incêndio do veículo, só por si, desacompanhado da prova da existência de defeito (repete-se, o incêndio não consubstancia qualquer defeito) não pode deduzir-se a falta de qualidades e de desempenho habituais a que se refere o nº 2 do art. 2º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril (reitera-se, entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro) desde ou a falta de conformidade ou adequação prevista nas alíneas a) b) e c) do preceito. Assim, salvo melhor opinião, entendemos que, provado, pura e simplesmente, o facto incêndio (que, como se disse repetidamente, é uma consequência de um facto anterior, e não um defeito visto que nenhum foi alegado), não ficam densificados quaisquer dos conceitos abertos do art. 2º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, o mesmo é dizer não ficam provados os factos índices ou os factos base da presunção legal, pelo que não pode presumir-se a falta de conformidade do veículo vendido pela Demandada ao Demandante, com o respetivo contrato de compra e venda». Assim, um consumidor, para beneficiar das presunções de não conformidade que o Decreto-Lei n.º 67/2003 consagrava, tinha de alegar e provar os factos em que presunção assentava, e ainda que tudo ocorreu dentro do prazo de garantia de 2 anos: se se prova apenas que o incêndio consumiu o veículo, apenas se prova a consequência do processo causal, mas não a sua origem e muito menos o putativo defeito que o possa ter originado, ou seja, o demandante não logrou provar um qualquer defeito que pudesse ter (e não necessariamente que tivesse sido esse o seu elemento efetivamente desencadeador) dado origem ao incêndio. Não sendo provada qualquer explicação para a produção do sinistro/incêndio, não se pode concluir (ainda que de forma presumida) que o mesmo se tenha ficado a dever necessariamente a qualquer vício ou defeito da viatura, tendo como referência as qualidades que era suposto que tivesse à época, ou que a demandada se tivesse comprometido a assegurar ao demandante. Ou seja, neste contexto, competia ao demandante o ónus de demonstrar a causa do incêndio, o que não fez. Daí que sobre si devam recair as consequências negativas de tal falta de prova. Em resumo, portanto, a pretensão indemnizatória do demandante não pode, de todo, ser acolhida, sendo de julgar, assim, improcedente a presente ação. DECISÃO Face ao que antecede, considero a presente ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a demandada dos pedidos contra si formulados. * Custas: € 70,00 (setenta euros), a suportar pelo demandante.Considerando o disposto no art. 536º do CPC e nos termos da Portaria n.º 342/2019, de 1 de outubro, condeno o demandante no pagamento das custas, pelo que deverá proceder ao pagamento (através de terminal de pagamento automático, multibanco e homebanking, após emissão do documento único de cobrança (DUC) pelo Julgado de Paz) da quantia de € 70,00 (setenta euros), no prazo de três dias úteis a contar da presente data, sob pena do pagamento de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso e até um máximo de € 140,00 (cento e quarenta euros). Transitada em julgado a presente decisão sem que se mostre efetuado e comprovado nos autos o pagamento das custas, emita-se a respetiva certidão para efeitos de execução por falta de pagamento de custas, e remeta-se aos Serviços da Autoridade Tributária competentes, pelo valor das custas em dívida, acrescidas da respetiva sobretaxa, com o limite previsto no art. 3.º da citada Portaria. * Registe e envie cópia da decisão final às partes e aos seus I. Mandatários, sendo que ao demandante também o DUC para pagamento das custas de sua responsabilidade.Sertã, Julgado de Paz, 4 de junho de 2024. A Juíza de Paz ___________________________ (Marta Nogueira) |