Sentença de Julgado de Paz
Processo: 338/2023-JPVNG
Relator: PAULA PORTUGAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
Data da sentença: 03/08/2024
Julgado de Paz de : VILA NOVA DE GAIA
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 338/2023-JPVNG

SENTENÇA

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES

Demandantes: [PES-1] e [PES-2], residentes na [...], n.º 7, [Cód. Postal-1] [...].

Demandada: [ORG-1], S.A.”, com sede na [...], n.º 32, [Cód. Postal-2] [...].

II - OBJECTO DO LITÍGIO
Os Demandantes vieram propor contra a Demandada a presente acção declarativa, enquadrada na al. h) do n.º 1 do art.º 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (LJP), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho, pedindo que fosse esta condenada a pagar-lhes a quantia de €4.320,25 (quatro mil trezentos e vinte euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida do IVA à taxa legal em vigor, dos quais, €3.500,00 necessários às reparações no interior da habitação e à colocação de dois novos roupeiros e do estúdio danificado, €520,25 para aquisição de um faqueiro, €100,00 para substituição do tapete, €150,00 para aquisição de umas botas de cano alto em couro e €50,00 para aquisição de umas sapatilhas da marca [Marca-1]; e ainda os valores devidos a título de custas judiciais e demais despesas legais com o presente processo, bem como eventuais honorários de advogado ou solicitador que se mostrem necessários na pendência do mesmo.
Alegaram, para tanto e em síntese, que são donos e legítimos proprietários de um imóvel sito no nº 7 da [...], em [...]; o imóvel descrito, pertença dos Demandantes, é o da sua residência habitual e permanente; a Demandada é uma sociedade anónima que se dedica à realização de todas as operações referentes à actividade seguradora e, bem assim, à prática de quaisquer actos necessários ou acessórios dessas mesmas operações; os Demandantes têm, desde há vários anos, tal imóvel segurado pela Demandada, através de dois seguros multirriscos habitação subordinados às Apólices nºs [identificador 1] e [identificador 2]; em concreto, a Apólice com o nº [identificador 2] apresenta uma protecção contratada, com cobertura a 100%, pelos sinistros decorrentes no conteúdo do edifício de: incêndio, raio e explosão, tempestades, inundações, greves, tumultos e alterações da ordem pública, actos de vandalismo ou de sabotagem, actos de terrorismo ou de sabotagem, aluimentos de terra, choque ou impacto de objetos sólidos ou animais, fumo, danos por água, quebras de vidros, derrame acidental de óleo; já a Apólice com o nº [identificador 1] apresenta uma protecção contratada, com cobertura até €10.000,00, pelos sinistros decorrentes no edifício por: fumo, danos por água, pesquisa e reposição por avarias, danos acidentais a canalizações subterrâneas, danos em jardins, muros e vedações, quebras de vidros, derrame acidental de óleo, riscos elétricos e danos à propriedade por roubo; no dia 16 de Novembro de 2022, quando os Demandantes desceram à cave da casa, aperceberam-se de que bastante água começava a entrar naquele local; importa aqui referir que se tratou de um dia, na sequência de duas semanas prévias de muita pluviosidade; tentaram perceber por onde entrava a água para tentarem interromper tal sinistro; tendo concluído que a mesma brotava do chão da cave; de imediato, contactaram o call-center da Demandada para reportar o sinistro; tendo-lhes sido indicado que deveriam tirar fotografias para que, posteriormente, fosse requerida a competente peritagem; os Demandantes, inclusivamente, filmaram a entrada da água pelo chão, incrédulos com o que ia acontecendo; certo é que, com o abrandar da precipitação, diminuiu também o caudal de água a brotar do chão; ainda assim, foi o suficiente para, mesmo com a aquisição de uma bomba para retirar a água (que acabou por não se mostrar operacional), tal intervenção tenha demorado cerca de quatro dias a concluir, uma vez que acabou por ter de ser retirada a água manualmente; requerida a peritagem, no dia 25 de Novembro de 2022, o perito deslocou-se ao imóvel dos Demandantes; aí, tirou fotografias, pediu para ver toda a área circundante, tendo dado particular atenção a uma pequena rachadela, que já existe há muito tempo, na fachada da casa, não tendo utilizado qualquer aparelho para tentar perceber por onde teria entrado a água, nem tampouco para realizar uma medição de humidade, limitando-se a dizer para que os Demandantes aguardassem o seu veredicto; atitude esta que levantou, de imediato, junto dos Demandantes, a ideia de que o perito se tinha deslocado ao seu imóvel, não para encontrar a causa do sinistro, mas sim para encontrar um factor que garantisse a exclusão de responsabilidade da Seguradora; foi, assim, sem grande surpresa, mas com enorme espanto que, os Demandantes receberam, a 28 de Novembro de 2022, uma notificação da Demandada, informando que declinava a sua responsabilidade, contratualmente estabelecida, de garantir o ressarcimento pelos danos causados; para tanto, informou que essa decisão se baseava no facto de a entrada de água, alegadamente, ter ocorrido por se tratar de uma parede enterrada, com falhas no revestimento; algo que, em absoluto, não se concebe, uma vez que os Demandantes já lá residem há 50 anos, fazem reparações regulares para garantir as melhores condições de habitabilidade possíveis e, mais importante até do que isso, aquele tipo de sinistro nunca havia acontecido até à data; mas, mais extraordinariamente ainda, tal não voltou a acontecer, mesmo na semana compreendida entre o Natal de 2022 e a passagem de ano, onde choveu abundantemente, sem que tenha existido qualquer entrada de água; e importa aqui ressalvar que a única coisa que os Demandantes fizeram, após o sinistro, foi retirar a totalidade da água da cave, limpar a mesma e retirar tudo o que ficou danificado; não fizeram qualquer tipo de reparação; ora, se a teoria do perito fosse válida ou sequer se concebesse, o mesmo problema teria ocorrido nas semanas seguintes de elevada precipitação; diga-se, a esse propósito, que são sobejamente conhecidas as cheias que ocorreram na região do grande [...], no dia 06 de Janeiro de 2023, sem que tal tivesse resultado no mesmo que ora se reporta; nem sequer entrou uma pinga de água na cave; tratou-se, assim, de um evento único, isolado e imprevisível, aquele que ocorreu no dia 16 de Novembro de 2022; e que levou a que os Demandantes ficassem com cerca de 10 cm de altura de água na cave; algo que, até por força da dinâmica das águas, ainda que existisse uma pequena fissura, não seria capaz de permitir tamanha entrada de água; nunca por conta de uma pequena fissura na fachada; nesta conformidade, inconformados com a decisão, marcaram reunião com o seu mediador de seguros, [ORG-2]”, que se prontificou a assumir a respectiva reclamação junto da Seguradora Demandada; até porque, também no entendimento deste, o sinistro ocorrido teria total cobertura por parte da sociedade Demandada, a qual respondeu à reclamação, no dia 27.12.2022, reiterando e confirmando a não aceitação de responsabilidade; algo que leva a que os Demandantes tenham de recorrer à presente acção declarativa, porquanto não concordam com essa decisão absurda; e que os levou a solicitar a uma empresa de construção uma análise ao problema, bem como um orçamento para reparação dos danos causados, que adiante se elencam; nesse documento, facilmente se infere que, na opinião de alguém especializado em construções, o argumento apresentado pela Demandada não pode colher qualquer aceitação; isto porque a parede que foi identificada como tendo problemas estruturais se encontra seca em permanência; seria impossível que, se a água tivesse entrado por ali, apenas tivesse ocorrido uma vez tamanho sinistro; mais, água estaria permanentemente a escorrer pelas paredes da cave, quase como se de uma infiltração lenta se tratasse; chega ao ponto de referir que, se fosse esse o problema que teria levado à entrada de água, a cave da habitação teria inundações sempre que houvesse precipitação intensa; apontando, de forma clara, para o argumento que ora se espera ver acolhido e que, em bom rigor, corresponde à verdade: tratou-se de uma inundação por entrada de água pluvial, por conta das chuvas fortes que caíram naquele dia, enquadrável nas coberturas previstas contratualmente; tratou-se de uma tempestade que causou uma inundação, inundação esta que causou vários prejuízos aos Demandantes, a saber: paredes de toda a zona afectada estão esfareladas até à altura de 30 cms, rodapés estão irremediavelmente danificados, tratando-se de chão em tijoleira, a mesma, miraculosamente, aguentou toda a água, não tendo sofrido qualquer dano de monta, mas já nas zonas com flutuante, este ficou todo danificado, levantando, o mesmo se podendo dizer de um móvel e de um guarda-fatos que estavam assentes no chão e que ficaram igualmente danificados, tal como um tapete, no valor de €100,00, umas botas de cano alto, de couro – que ficaram manchadas - no valor de €150,00, umas sapatilhas da marca [Marca-1], no valor de €50,00, que também ficaram irremediavelmente estragadas; mas, pior do que isso, até pelo valor sentimental associado, ficou danificado um faqueiro original (novo) de 130 peças, que se encontrava na prateleira de baixo de um dos armários, tendo a caixa em aglomerado de madeira ficado estragada e as peças ali colocadas, segundo um especialista consultado, vão ficar, com o passar do tempo, completamente enferrujadas; a inundação atingiu também várias roupas e cobertores que, com muito esforço dos Demandantes, conseguiram ser recuperadas através de várias lavagens; refuta-se, por isso, em absoluto, o argumento de que o sinistro possa ter ocorrido por falta de manutenção na fachada; os Demandantes pretendem apenas ser ressarcidos dos prejuízos sofridos em consequência do sinistro ocorrido no dia 16 de Novembro de 2022, que afectou a sua habitação; não podem ser penalizados por um sinistro a que não deram causa; apenas pretendendo da Demandada a reposição da situação existente antes da ocorrência do sinistro, apesar de todo o transtorno que toda esta situação causou aos aqui subscritores.
Juntaram documentos.

A Demandada apresentou Contestação, onde alega que é certo que, entre o Demandante marido, na qualidade de segurado e tomador de seguro, e a contestante, na qualidade de seguradora, foram celebrados dois contratos de seguro do ramo multirriscos denominado “[ORG-1]”, com referência ao imóvel sito na [...], 7, [Cód. Postal-1] [...], concretamente: um contrato de seguro titulado pela Apólice n.º [identificador 2], e que se regula pelas condições contratuais juntas, contrato que teve o seu início às 15h30 do dia 25.03.2014 e foi celebrado até às 24:00 horas de 28.02.2015, sendo automática e anualmente renovável, a partir de 01.03.2015, e que tem por objecto seguro e local de risco o imóvel propriamente dito, com as coberturas e capitais constantes da apólice; foi ainda celebrado entre as partes um segundo contrato de seguro, este titulado pela Apólice n.º [identificador 1], e que se regula pelas condições contratuais juntas; este contrato teve o seu início às 17h49 do dia 09.06.2014 e foi celebrado até às 24:00 horas de 31.05.2015, sendo automática e anualmente renovável, a partir de 01.06.2015, e que tem por objecto seguro e local de risco o conteúdo do imóvel sito na [...], 7, [Cód. Postal-1] [...], com as coberturas e capitais constantes da apólice; com relevo para a decisão da causa temos que, entre as coberturas contratadas, encontra-se a cobertura denominada de “mobiliário particular”, pelo capital seguro de €35.000,00, e que garante os danos materiais verificados nos bens constantes da definição vertida na página 38 das condições contratuais da Apólice; cumpre notar que, as apólices em causa apenas garantem os danos materiais decorrentes de “tromba de água ou queda de chuvas torrenciais” enquanto catástrofes naturais contratualmente definidas como “Precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos, no pluviómetro”; sendo certo que não se encontram garantidos pela aludida cobertura os danos causados “..Edifícios em estado de conservação que contrarie as normas técnicas ou regulamentos sobre manutenção de edifícios, ou estando em obras que reduzam as suas condições de resistência e segurança;”; encontrando-se expressamente excluídos do contrato de seguro os danos decorrentes de “patologias construtivas”; as condições contratuais dos contratos de seguro são do integral conhecimento do tomador de seguro/segurado que as aceitou e recebeu com a subscrição do contrato de seguro; em face do recebimento de comunicação do sinistro descrito pelos Demandantes, a contestante encarregou a empresa especializada em averiguação de sinistros “NAOS” para proceder à averiguação do sinistro participado e para determinar os prejuízos do mesmo resultantes, a qual encarregou um técnico para se deslocar ao local do sinistro e que constatou manifestações de humidade no imóvel localizadas no alinhamento do terraço e parede da cave; foi ainda verificado que as manifestações apresentavam maior expressão no alinhamento da junta do piso com o murete do terraço, sendo visíveis algumas juntas com algum desgaste, e que poderá não garantir a sua estanquidade, sendo que, forte precipitação associada ao défice na impermeabilização, terá permitido o trespasse de águas para o interior; do mesmo modo foi apurado que o surgimento comunicado de água na cave do edifício terá afectado a zona de uma parede enterrada onde foram identificadas falhas no revestimento exterior, com fissuras na fachada e no piso em cimento; no seguimento da peritagem foi concluído que o sinistro decorre do défice de impermeabilização que permitiu o trespasse de águas para o interior do imóvel; pelo exposto, é manifesto que o sinistro em causa nos autos não tem como origem chuvas torrenciais, mas decorre de uma patologia construtiva do próprio imóvel, concretamente a perda das características impermeabilizantes que permite o trespasse de águas para o interior; sempre dirá a contestante que as apólices contratadas não garantem os danos resultantes do sinistro em causa nos autos, uma vez que o mesmo não corresponde a um risco causado por um fenómeno natural, mas sim decorre de patologias construtivas, circunstâncias que se encontram expressamente excluídas das garantias da apólice; posição que foi comunicada ao segurado e declinada qualquer responsabilidade da ora contestante pelos danos reclamados; quanto aos danos reclamados, sem prejuízo do supra exposto, os mesmos foram avaliados em €771,20 no que ao edifício concerne e em €1.430,00 quanto ao conteúdo do imóvel.
Juntou documentos.

Procedeu-se à realização da Audiência de Julgamento com obediência às formalidades legais como da Acta se infere.

Fixo o valor da acção em €4.320,25 (quatro mil trezentos e vinte euros e vinte e cinco cêntimos).

Cumpre apreciar e decidir.

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da matéria carreada para os autos, ficou provado que:
A) Os Demandantes são possuidores de um imóvel sito no nº 7 da [...], em [...];

B) O imóvel descrito é o da residência habitual e permanente dos Demandantes;

C) A Demandada é uma sociedade anónima que se dedica à realização de todas as operações referentes à actividade seguradora e, bem assim, à prática de quaisquer actos necessários ou acessórios dessas mesmas operações – facto notório;

D) Os Demandantes têm, desde há vários anos, tal imóvel segurado pela Demandada, através de dois seguros multirriscos habitação subordinados às Apólices nºs [Nº Identificador-1] e [Nº Identificador-2];

E) A Apólice com o nº [Nº Identificador-1] apresenta uma protecção contratada, com cobertura a 100%, pelos sinistros decorrentes no conteúdo do edifício de, entre outros, incêndio, raio e explosão, tempestades, inundações, greves, tumultos e alterações da ordem pública, actos de vandalismo ou de sabotagem, actos de terrorismo ou de sabotagem, aluimentos de terra, choque ou impacto de objetos sólidos ou animais, fumo, danos por água, quebras de vidros, derrame acidental de óleo – cfr. Condições Contratuais da Apólice a fls. 68 a 94;

F) A Apólice com o nº [identificador 2] apresenta uma protecção contratada, com cobertura até €10.000,00, pelos sinistros decorrentes no edifício, entre outros, por fumo, danos por água, pesquisa e reposição por avarias, danos acidentais a canalizações subterrâneas, danos em jardins, muros e vedações, quebras de vidros, derrame acidental de óleo, riscos eléctricos e danos à propriedade por roubo - cfr. Condições Contratuais da Apólice a fls. 42 a 66;

G) No dia 16 de novembro de 2022, os Demandantes aperceberam-se de que bastante água começava a entrar na cave da casa;

H) Tratou-se de um dia chuvoso na sequência de duas semanas prévias de muita pluviosidade – cfr. consulta do Boletim Climatológico Mensal - Resumo Mensal Novembro 2022 do IPMA a fls. 119;

I) A água brotava do chão da cave – cfr. fotos a fls. 15 a 21;

J) Os Demandantes reportaram o sinistro à Demandada;

K) Os Demandantes filmaram a entrada da água pelo chão – cfr. vídeo exibido em Audiência de Julgamento;

L) Os Demandantes adquiriram uma bomba para retirar a água (que acabou por não se mostrar operacional), tendo a água acabado por ter de ser retirada manualmente;

M) Requerida a peritagem, no dia 25 de novembro de 2022, o perito deslocou-se ao imóvel dos Demandantes;

N) Aí, tirou fotografias, pediu para ver toda a área circundante, tendo dado particular atenção a uma pequena rachadela, que já existe há muito tempo, na fachada da casa, não tendo utilizado qualquer aparelho para tentar perceber por onde teria entrado a água, nem tampouco para realizar uma medição de humidade;

O) Os Demandantes receberam, a 28 de novembro de 2022, uma notificação da Demandada, informando que declinava a sua responsabilidade de garantir o ressarcimento pelos danos causados – cfr. missiva a fls. 22 e informação de sinistro a fls. 23 e 24;

P) Para tanto, informou que essa decisão se baseava no facto de a entrada de água, alegadamente, ter ocorrido por se tratar de uma parede enterrada, com falhas no revestimento exterior, com fissuras na fachada e no piso em cimento;

Q) Os Demandantes já residem no local há 50 anos;

R) Após o sinistro, os Demandantes retiraram a água da cave, limparam a mesma e retiraram o que ficou danificado;

S) No dia 06 de janeiro de 2023, ocorreram fortes chuvas na região do [...], sem que tal tivesse resultado no mesmo que ora se reporta;

T) Os Demandantes, através do mediador de seguros, reclamaram da posição assumida pela ora demandada;

U) A Demandada respondeu à reclamação, no dia 27.12.2022, reiterando e confirmando a não aceitação de responsabilidade – cfr. missiva a fls. 28;

V) Os Demandantes solicitaram a uma empresa de construção uma análise ao problema, bem como um orçamento para reparação dos danos causados – cfr. orçamento a fls. 25 e 27;

W) A descrita inundação causou vários prejuízos aos Demandantes, a saber: paredes de toda a zona afectada esfareladas, nas zonas com flutuante, este ficou danificado, levantando, o mesmo se podendo dizer de dois roupeiros que estavam assentes no chão e que ficaram igualmente danificados;

X) A caixa de um faqueiro em aglomerado de madeira ficou estragada – cfr. fotos 11 a 13 a fls. 102;

Y) A inundação atingiu também várias roupas e cobertores que conseguiram ser recuperados;

Z) Ficaram danificadas umas botas em couro de cano alto – cfr. fotos 14 e 15 a fls. 102;

AA) Entre o Demandante marido, na qualidade de segurado e tomador de seguro, e a contestante, na qualidade de seguradora, foram celebrados dois contratos de seguro do ramo multirriscos denominados “[ORG-1]”, com referência ao imóvel sito na [...], 7, [Cód. Postal-1] [...], concretamente: um contrato de seguro titulado pela Apólice n.º [Nº Identificador-2], contrato que teve o seu início às 15h30 do dia 25.03.2014 e foi celebrado até às 24:00 horas de 28.02.2015, sendo automática e anualmente renovável, a partir de 01.03.2015, e que tem por objecto seguro e local de risco o imóvel propriamente dito, com as coberturas e capitais constantes da apólice;

BB) Foi ainda celebrado entre as partes um segundo contrato de seguro, este titulado pela Apólice n.º [Nº Identificador-1], que teve o seu início às 17h49 do dia 09.06.2014 e foi celebrado até às 24:00 horas de 31.05.2015, sendo automática e anualmente renovável, a partir de 01.06.2015, e que tem por objecto seguro e local de risco o conteúdo do imóvel sito na [...], 7, [Cód. Postal-1] [...], com as coberturas e capitais constantes da apólice;

CC) Entre as coberturas contratadas, encontra-se a cobertura denominada de “mobiliário particular”, pelo capital seguro de €35.000,00 e que garante os danos materiais verificados nos bens constantes da definição vertida na página 38 das condições contratuais da Apólice;

DD) Sob a epígrafe “C. Inundações”, as apólices em causa garantem os danos materiais decorrentes de “tromba de água ou queda de chuvas torrenciais (precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos, no pluviómetro)”;

EE) Sob a epígrafe “Artigo 3º Exclusões”, n.º 2, “Não ficam garantidos, em caso algum, as perdas ou danos verificados em: a) Edifícios em estado de conservação que contrarie as normas técnicas ou regulamentos sobre manutenção de edifícios, ou estando em obras que reduzam as suas condições de resistência e segurança.”;

FF) Em face do recebimento de comunicação do sinistro descrito pelos Demandantes, a Demandada encarregou a empresa especializada em averiguação de sinistros “NAOS” para proceder à averiguação do sinistro participado e para determinar os prejuízos do mesmo, resultantes, a qual encarregou um técnico para se deslocar ao local do sinistro – cfr. Relatório a fls. 100 a 102;

GG) Os danos reclamados foram avaliados em €2.950,00 no que ao edifício concerne e em €1.430,00 quanto ao conteúdo do imóvel – cfr. fls. 100 v. e 113.

Motivação dos factos provados:
Para além dos suprarreferidos documentos, atendeu-se ao depoimento das testemunhas arroladas, como segue:
- [PES-3], comercial, filho dos ora Demandantes, declarou que nasceu no imóvel em causa mas não vive ali há já alguns anos; à data dos factos, o pai ligou-lhe a pedir ajuda, foi a casa e verificou a existência de uma grande quantidade de água; via-se a água a borbulhar no chão; foi a uma [...] comprar uma máquina para tirar a água, nesse dia estavam lá várias pessoas para o mesmo; o pai não mais se tornou a queixar da entrada de água; apenas aconteceu aquela vez; trata-se de uma cave enterrada onde há sempre humidades, é necessário ligar o desumidificador; choveu muito na altura, choveu como nunca; estragou o chão, móveis; ajudou a tirar a água; o piso da sala é de flutuante e o dos quartos, que eram da testemunha e da irmã, em tijoleira; se entrasse água pelas fissuras escorria pela lateral; os roupeiros eram em contraplacado, ficaram todos estragados com a água; os seus pais nunca tinham feito qualquer participação de entrada de água; tentaram identificar o que estava estragado e reparar o que era possível.

- [PES-4], industrial da construção civil, declarou que os Demandantes são seus clientes; foi chamado ao local pelo Demandante na altura da ocorrência em questão; ainda havia alguma água no chão, via-se a marca nas paredes da altura a que chegou; tratou-se de uma situação pontual; não entrou mais água mesmo quando choveu muito; não realizou qualquer intervenção na casa, foi lá só para ver; faz habitualmente obras na vizinha; na casa dos Demandantes andou a pintar o teto da cozinha e arranjou uma sanita; fez um teste com uma mangueira a ver se a água entrava por qualquer lado mas não entrou; não sabe por onde entrou a água aquando da inundação mas sabe que veio do chão e não da parede; havia muita coisa estragada; a água andou a cerca de 7 cm, tudo o que era de madeira estava estragado; as paredes empolaram com a humidade; não fez qualquer intervenção na parede que tem fissuras; elaborou o orçamento junto aos autos a fls. 25.

- [PES-5], perito averiguador, funcionário da empresa “NAOS” que presta serviços à Demandada, declarou que esteve na casa dos Demandantes; tem a ideia que na altura lhe foi transmitido pelos Demandantes que sempre que chovia mais intensamente entrava água; tratando-se de uma situação cíclica e não pontual, foi identificar patologias, tendo verificado a existência de fissuras na rampa e na fachada; mas não sabe se era por ali que entrava a água, simplesmente essa patologia pode potenciar o trespasse de águas para o interior; a peritagem foi feita no dia 25.11.2022; na participação que lhe chegou da Seguradora é feita referência a que o sinistro ocorreu na sequência de chuvas fortes; quando foi ao local, não se recorda de ainda ter água, apenas manchas de humidade nas paredes, piso empolado e danos no recheio; procedeu apenas a uma análise visual, não se lembra se avaliou o teor de humidade nas paredes; não se lembra de ter verificado humidade na parede interior contígua à que tinha fissuras da parte de fora; é possível a água entrar pelo chão, nível freático; ou a água entra pela fachada/pátio onde havia fissuras ou pelo chão que não estaria bem impermeabilizado, senão não entraria; é uma moradia antiga; é perito desde 2015; não sabe se os talheres enferrujam, se for de prata sim, mas não viu.

Não foi provado que:
I. Os Demandantes fazem reparações regulares no imóvel;
II. A parede que foi identificada pela Demandada como tendo problemas estruturais encontra-se seca em permanência;
III. Ficou danificado um faqueiro original (novo) de 130 peças, que se encontrava na prateleira de baixo de um dos armários;
IV. As peças ali colocadas vão ficar, com o passar do tempo, completamente enferrujadas;
V. Ficaram irremediavelmente estragados um tapete, no valor de €100,00, e umas sapatilhas da marca [Marca-1], no valor de €50,00;
VI. O sinistro decorre do défice de impermeabilização que permitiu o trespasse de águas para o interior do imóvel;
VII. O sinistro em causa nos autos não tem como origem chuvas torrenciais, mas decorre duma patologia construtiva do próprio imóvel, concretamente a perda das características impermeabilizantes que permite o trespasse de águas para o interior.

Motivação da matéria de facto não provada:
Por ausência de mobilização probatória credível que atestasse a veracidade dos factos.

IV - O DIREITO
O contrato de seguro é um negócio jurídico que, por imposição da lei, está sujeito à forma escrita, regulando-se, em primeiro lugar, pelas disposições da respectiva apólice, instrumento que o formaliza.
Situando-se fora do âmbito dos seguros obrigatórios e reduzido a escrito, o contrato ora em causa, não se coloca qualquer dúvida quanto à validade e eficácia do respectivo clausulado, enquanto regido pela liberdade de fixação dos riscos cobertos e do âmbito das respectivas coberturas pelas partes, dentro dos limites permitidos pela lei (art.º 405º C. Civil).

Dos factos apurados, temos que os Demandantes celebraram com a [ORG-1], S.A.”, não um mas dois contratos de Seguro Multirriscos denominado “[ORG-1]”, titulados, respetivamente, pela Apólice n.º [identificador 2], que tem como objecto o imóvel propriamente dito sito à [...], n.º 7, [Cód. Postal-1] [...], e a Apólice n.º [Nº Identificador-1], que tem por objecto o conteúdo do referido imóvel.

Tais contratos regem-se pelas Condições Gerais e Particulares das Apólices, contemplando o ressarcimento dos danos diretamente causados, entre outros, e para o que aqui importa, “Inundações”: Garante os danos causados aos bens seguros em consequência de chuvas torrenciais (precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos, no pluviómetro).

Incumbe ao Segurado o ónus da prova das ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC.

Nesse sentido, apurou-se que, no dia 16 de novembro de 2022, ocorreu uma inundação na cave da habitação onde residem os Demandantes, na sequência das fortes chuvas que se fizeram sentir nesse dia e nos dias que se lhe antecederam.

Veja-se a informação constante do Boletim Climatológico Mensal, a fls. 119, que consultámos no site do IPMA, referente ao mês de novembro de 2022, onde consta que a precipitação máxima diária (milímetros) registada na Estação Meteorológica mais próxima ([...]/[...]) foi de 48,2, precisamente no dia 16 do mês em causa.

Atente-se ainda no relatório junto aos autos, erroneamente, pela Demandada que alude a uma outra peritagem, realizada pelo mesmo perito, no mesmo dia, à habitação de uma outra segurada, em que é feita referência a chuvas fortes ocorridas no dia 16.11.2022.

De facto, nesse dia, os Demandantes verificaram que a água brotava do chão da cave.

Estamos convictos que se tratou de uma situação pontual, desde logo, porque não consta que os Demandantes tenham vindo a realizar qualquer intervenção no local ao nível da estrutura do imóvel após a ocorrência de forma a debelar a sua origem, e não consta que tenha voltado a entrar água aquando das chuvas torrenciais que se viriam a fazer sentir no início de Janeiro de 2023, que, como é do conhecimento público, afetaram de sobremaneira a baixa da cidade do [...].

Mais, tendo os Demandantes os seguros em apreço em vigor desde o ano de 2014, não consta que alguma vez tenham efetuado uma qualquer participação por factos semelhantes.

Mais ainda, pelo que foi dito pelos Demandantes e corroborado pelo seu filho, que nasceu e viveu até há alguns anos naquele imóvel, onde tinha o seu quarto precisamente na cave, o piso flutuante na sala terá sido ali colocado há cerca de 15 anos, sendo que, se já tivesse sido anteriormente afectado por água, ter-se-ia seguramente ressentido dada a particular sensibilidade daquele material à humidade.

Assim, lograram os Demandantes demonstrar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco.

Já a Demandada, tendo invocado causas de exclusão da sua responsabilidade, não logrou provar que a inundação e os subsequentes danos verificados sejam decorrentes de patologias construtivas.

De facto, não se apurou que a água tenha entrado por uma qualquer fissura/rachadela existente na fachada ou no pátio em cimento.

Até porque, não obstante se tratar de uma cave enterrada, propícia à verificação de humidades, não se apurou que a água tenha escorrido pelas paredes, muito menos a jorro, de forma a fazer acontecer a descrita inundação, sendo que, como é bom de ver, os únicos registos fotográficos de humidade nas paredes visíveis nas fotos constantes do relatório de peritagem (fotos 8, 9 e 10) situam-se ao nível inferior das mesmas, próximo do chão, junto aos rodapés.

Ademais, os Demandantes desmentem categoricamente que alguma vez tenham transmitido ao perito ou à Demandada que surgia água no piso da cave em dias de maior precipitação.

E não deixa de ser relevante mencionar que o perito não terá feito qualquer teste/verificação que não fosse a meramente visual.

Aqui chegados, apurada a responsabilidade da Demandada nos termos supra expostos, há que apurar o montante indemnizatório a atribuir aos Demandantes.

O evento descrito provocou danos ao nível do flutuante da sala, paredes e dois roupeiros, para cuja reparação/substituição é necessária a quantia de €3.500,00.

Quanto ao demais peticionado,

Relativamente ao faqueiro, não se apurou que as 130 peças que o constituem tenham ficado enferrujadas ou venham a enferrujar, sendo certo que os talheres são objetos preparados para serem sujeitos a lavagens frequentes e não se apurou, nem sequer foi alegado, que se tratasse de um faqueiro em prata.

Já quanto à caixa que o acomoda, sendo de aglomerado de madeira, é muito provável, como é visível nas fotos juntas, que tenha ficado danificada pela água, sendo que, da consulta de sites da especialidade foi possível apurar que por cerca de €60,00, os Demandantes conseguirão adquirir uma caixa similar, pelo que é este valor que teremos em consideração.

Relativamente ao tapete e sapatilhas, atento as características destes objetos, do que podemos perceber das fotos juntas, não vislumbramos que possam ter ficado irremediavelmente estragados por acção da água.

Quanto às botas, é consabido que a água pode deformar e manchar o couro, pelo que entendemos tratar-se de um dano ressarcível, para o qual teremos como razoável o valor atribuído pela Seguradora, a saber, €100,00.

Vai, por conseguinte, a Demandada condenada a pagar aos Demandantes a quantia de €3.660,00 (€3.500,00+€60,00+€100,00), valor ao qual deverá acrescer o IVA sobre a quantia de €3.500,00 contraentrega de factura/recibo.

À quantia assim apurada acrescem os juros de mora, à taxa legal vigente, contabilizados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento – cfr. art. ºs 804º e 805º, n.º 1, do C. Civil.

V – DISPOSITIVO
Face a quanto antecede, julgo parcialmente procedente a presente acção, e, por consequência, condeno a Demandada “[ORG-1], S.A.”, a pagar aos Demandantes [PES-1] e [PES-2], a quantia de €3.660,00 (três mil seiscentos e sessenta euros), acrescida do valor do IVA contra factura sobre a quantia de €3.500,00, e dos juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Custas na proporção de 85% pela Demandada e 15% pelos Demandantes, devendo estes pagar a quantia de €10,00 (dez euros) e aquela a quantia de €60,00 (sessenta euros), no prazo de três dias úteis a contar da notificação da presente Sentença, sob pena de incorrerem numa penalização de €10,00 (dez euros) por cada dia de atraso, não podendo exceder a quantia de €140,00, nos termos do n.º 4 do art. 3º da Portaria 342/2019, de 01 de Outubro.

Registe e notifique.

Vila Nova de Gaia, 08 de março de 2024

A Juiz de Paz

(Paula Portugal)