Sentença de Julgado de Paz
Processo: 192/2023-JPCBR
Relator: CRISTINA EUSÉBIO
Descritores: INDEMNIZAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS E PRIVAÇÃO DE USO DECORRENTES DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data da sentença: 06/24/2024
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 192/2023-JPCBR

SENTENÇA

RELATÓRIO:
[PES-1], identificado a fls. 1, propôs contra [ORG-1] S.A., ORA DESIGNADA [ORG-2] S.A. melhor identificada a fls. 1 e 37, a presente ação declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 8.488,41 € (Oito mil, quatrocentos e oitenta e oito euros e quarenta e um cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais e privação de uso decorrentes de acidente de viação .
Alega, sem suma que ocorreu um acidente de viação que descreve, no qual foi interveniente, sendo certo que o seu seguro cobria danos próprios, mas que a demandada declinou o pagamento dos seus prejuízos.
Para tanto, alegou os factos constantes do seu Requerimento Inicial de fls. 1 a 4, que se dá por integralmente reproduzido.
Juntou 7 documentos (fls. 8 a 34) que igualmente se dão por reproduzidos.
Regularmente citada, veio a demandada apresentar contestação de fls. 37 a 41 na qual se defende por exceção alegando que o embate verificado foi intencional e propositado, o que desde logo exclui a responsabilidade contratual da demandada.
Juntou 1 documento correspondente à sentença condenatória do demandante em processo crime que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra que se dá por reproduzida.
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Ao tribunal cabe decidir a) a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação; b) da obrigação da Seguradora indemnizar o Demandante pelos danos verificados
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O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.
Não existem exceções de que cumpra conhecer ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito da causa.
Fixa-se o valor da causa em 8488,41€ (Oito mil, quatrocentos e oitenta e oito euros e quarenta e um cêntimos).
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Tendo sido afastado o recurso à Mediação, procedeu-se á marcação da Audiência de Discussão e Julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal, conforme da respetiva ata melhor se alcança.
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, ficaram provados os seguintes factos:
1. No dia 9 de janeiro de 2018, pelas 19 horas, na [...], em [...], no perímetro das bombas de gasolina BP, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo [ - ID - 1] conduzido pelo demandante e o veículo [ - GZ - 2].
2. O embate teve origem na excessiva velocidade a que o demandante conduzia no encalce do veículo ID, perseguindo-o e à curta distância entre ambos os veículos.
3. Quando o ID travou para entrar na bomba de gasolina da BP foi embatido duas vezes pelo GZ.
4. Seguidamente, o veículo GZ embateu na traseira do ID várias e repetidas vezes, fazendo marcha atrás e voltando a embater cerca de 5 ou 6 vezes.
5. Dos referidos embates resultaram danos para ambos os veículos.
6. Os factos relativos ao referido acidente foram qualificados como crime de violência doméstica, tendo o demandante sido condenado no âmbito do Processo n.º 31/18.4PCCBR., considerando-se que o demandante utilizou o seu veículo como arma para atingir a integridade física das ocupantes do ID.
7. O valor de reparação do veículo GZ foi estimado em 6.488,41€ pela oficina [ORG-3] Coimbra. Cfr. fls. 16 a 23.
8. Atento o elevado valor de reparação do veiculo GZ, o demandante procedeu á sua venda, em data não concretamente apurada.
9. O demandante participou o sinistro á demandada no âmbito do contrato de seguro com Apólice n.º 003131641, cujas clausulas constam do documento de fls 93 a 13.
10. Em 31 de janeiro de 2018, a demandada remeteu ao demandante a comunicação de fls. 8 considerando excluída a sua responsabilidade nos termos da clausula 40º n.º 1 b) das Condições Gerais. (cfr. doc. Fls. 103).
11. Em 29 de setembro de 2021, por email, o demandante apresentou reclamação da decisão apresentada pela demandada referida em 9.

Factos não provados
A) Que os dois primeiros embates tenham sido fortuitos e não intencionais.

MOTIVAÇÃO
A convicção probatória do tribunal, de acordo com a qual se seleciona a matéria dada como provada ou não provada, ficou a dever-se ao conjunto da prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomados em consideração os documentos juntos por ambas as partes.
O tribunal valorou, ainda, as declarações de parte do demandante em conjugação com as prestadas pela testemunha [PES-2], [PES-3] e [PES-4].
Em depoimento de parte, o demandante referiu que os primeiros dois embates não foram intencionais e que derivaram do facto de os veículos seguirem com curta distância entre si e a excessiva velocidade. Quanto aos restantes embates, que não nega, refere não se recordar.
No entanto, das declarações da testemunha [PES-2] e da sentença junta aos autos como documento probatório, resulta que o demandante terá feito, por diversas vezes marcha atrás e embatido no veículo ID, o que denota a intencionalidade do ato.
A testemunha [PES-3] relatou ao tribunal as diligências de averiguação das circunstâncias do sinistro que encetou, tendo concluído que não se tratou de um acidente “normal”, porquanto o demandante terá embatido sucessivas vezes no ID, na sequência de uma perseguição e conflito com as ocupantes do referido veículo.
A testemunha [PES-4], coordenador de equipa de averiguações de sinistros, igualmente acompanhou as diligências efetuadas pelo perito, referindo que as declarações do demandante na participação do sinistro e no auto de ocorrência da [ORG-4] eram diferentes, pretendendo aparentar ter-se tratado de um acidente fortuito, o que não se verificou.
Mais relatou que os danos que viu nas viaturas, confirmam a existência de vários embates violentos, ao ponto de o veículo ID apresentar rasgos na porta do condutor, o que permite concluir que o veículo que embateu já tinha vários danos decorrentes da repetição dos embates.
Considera que, pelo carácter repetido dos embates e suas consequências, estes só podem ter sido intencionais e dolosos.
Nenhuma prova foi apresentada, para além das declarações do próprio demandante, no sentido do caráter fortuito dos primeiros embates porquanto, a mera transcrição de declarações de terceiros não é suscetível de produzir prova nos presentes autos.
Mesmo analisadas as referidas declarações, a revelarem-se verdadeiras, são apenas perceções ou conjeturas e não afirmações do facto.
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
O contrato de seguro, regulado no Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de abril (RJCS), encontra definição no seu art. 1º que determina. “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.”
Por outro lado, consta das clausulas gerais do referido contrato a definição de sinistro como a verificação total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato. (cláusula 1ª)
Assim, cabe ao segurado alegar e provar as circunstâncias previstas na cobertura contratual como factos constitutivos do seu direito e à seguradora, se for caso disso, demonstrar a ocorrência de circunstâncias que determinam a exclusão da cobertura.
O Demandante ancora o seu pedido no facto de o contrato de seguro que celebrou com a demandada incluir o ressarcimento dos danos próprios sofridos pela viatura segurada decorrentes de acidente de viação. Nessa medida, peticiona que a demandada seja condenada a pagar o valor de reparação do veículo e indemnização por privação de uso do mesmo.
Fundamenta tal pedido pelo facto de considerar que os dois primeiros embates verificados entre as viaturas, não foram intencionais, motivo pelo qual os considera a coberto da clausulas contratuais, conforme explicou quando instado a aperfeiçoar o seu requerimento inicial.
Mesmo que tivesse resultado provado o caráter fortuito dos referidos primeiros embates, o que não aconteceu, certo é que nunca o tribunal poderia apurar e diferenciar os danos causados por estes e os danos causados pelos sucessivos embates verificados a posteriori.
Da matéria apurada resulta, de facto, a intencionalidade na produção dos danos o que, desde logo nos conduz a considerar verificada a cláusula de exclusão do contrato, que mais não é do que a reprodução da previsão legal do art. 46º n.º 2 da Lei n.º 72/2008 de 16 de abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) que determina: “ O beneficiário que tenha causado dolosamente o dano não tem direito à prestação.

Como bem refere o autor Moitinho de Almeida (in ALMEIDA, J. C. MOITINHO DE, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, 1971) a cobertura dos atos dolosos “facilitaria a ofensa à integridade física e ao património de terceiros, estimulando-se o desenvolvimento de ódios e vinganças, e seria imoral […] que um indivíduo pudesse intencionalmente lesar terceiros ou destruir bens
próprios subsistindo o direito à garantia seguradora”.
Na senda de tal entendimento, o contrato de seguro celebrado, cujas clausulas o demandante aceitou, exclui expressamente a cobertura de danos que intencionalmente tenham sido causados pelo segurado, certamente por se considerar que tal era ofensivo da ordem pública e da boa-fé que subjazem à celebração dos contratos.
E como vimos, os danos verificados no veículo do demandante decorreram de sucessivos embates e não apenas do primeiro ou segundo, que o demandante alega terem sido fortuitos. Como se referiu não é possível fazer tal destrinça.
Pelo expendido, haverá de proceder a exceção alegada pela demandada, e sem necessidade de maiores considerações, no que diz respeito à contabilização dos danos e sua (im)procedência, a ação está votada ao insucesso.
Procede assim a exceção perentória invocada pela demandada – exclusão contratual -, nos termos do disposto no art. 576º n.º 3 do CPC.
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DECISÃO
Em face do exposto e das disposições legais aplicáveis, julga-se a exceção invocada procedente e em consequência, absolve-se a demandada do pedido.

CUSTAS
Custas a cargo do demandante, nos termos e para os efeitos do art. 3º da Portaria n.º 342/2019 de 1 de Outubro devendo ser pagas, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença –ainda que o prazo de validade do DUC seja mais alargado , sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efetivo cumprimento dessa obrigação.
A falta de pagamento das custas acarreta a sua cobrança por processo de execução fiscal.

Registe e remeta cópia.

Coimbra, 24 de junho de 2024
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 138.º/5 do C.P.C.)

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(Cristina Eusébio)