Sentença de Julgado de Paz
Processo: 67/2024–JPSCR
Relator: CELINA ALVENO
Descritores: APRECIAÇÃO DA LEGALIDADE DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VIATURA USADA – GARANTIA – DIREITO DO CONSUMIDOR
Data da sentença: 07/26/2024
Julgado de Paz de : SANTA CRUZ - FUNCHAL
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

Processo n.º 67/2024 – JPSCR

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES

Demandante: [PES-1], NIF [NIF-1], residente no caminho [...], n.º 35 B, [Cód. Postal-1] [...].
Demandada: [ORG-1] Lda., também conhecida pela firma [ORG-2], NIPC [NIPC-1], com sede na [...], n.º 29, [Cód. Postal-2] [...].

II - RELATÓRIO
O Demandante instaurou contra a Demandada a presente ação declarativa enquadrada na alínea h) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001 de 13 de julho, na sua atual redação, pedindo a condenação da Demandada a reconhecer a legalidade da resolução contratual, devolvendo integralmente o valor pago pelo veículo. Juntou: 9 documentos (cfr. fls. 8 a fls. 16). * A Demandada foi citada (fls. 31), contestou extemporaneamente o que determinou a sua inadmissibilidade e respetivo desentranhamento, conforme despacho fundamentado de 19 de junho de 2024 (cfr. fls. 61). As partes aceitaram submeter o litígio à mediação, mas não chegaram a acordo. * A audiência de Julgamento foi agendada e regularmente notificada às partes. Iniciou-se a audiência de julgamento dando cumprimento ao artigo 26.º, n.º 1 da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, na sua atual redação, sem, contudo, lograr obter o consenso entre ambas as partes. Foram cumpridas as formalidades legais, tendo o Demandante, efetuado as suas alegações de forma livre e no sentido de confirmar as posições já vertidas, no Requerimento Inicial. A Demandada, representada pelo seu gerente, também fez as suas alegações de forma livre, impugnando o alegado pelo Demandante da forma como estava contextualizado no seu Requerimento Inicial. Seguindo-se para a audição da testemunha apresentada pelo Demandante e de seguida pela audição da testemunha apresentada pela Demandada. Terminando com as conclusões finais por cada uma das partes.
*
O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor.
O processo é próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não há exceções, nulidades ou quaisquer questões prévias que cumpra conhecer.
*
III- VALOR DA AÇÃO
Fixa-se em € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros), o valor da presente causa (artigos 296.º, 297.º n.º 2, 299.º, 300.º e 306.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 63.º da LJP).
*
IV- OBJETO DO LITÍGIO
Apreciação da legalidade da resolução do contrato de compra e venda de viatura usada – garantia – direito do consumidor
*
V - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Assim e com relevância para a decisão da causa, e de acordo com as declarações das partes, a prova documental e testemunhal carreada para os autos, resultaram os seguintes:
FACTOS PROVADOS:
1. A 16 de dezembro de 2021 o Demandante comprou à Demandada um veículo ligeiro de passageiros, de marca [Marca-1], modelo 307 e matrícula [ - - 1], pelo valor de € 6.500,00.
2. A Demandada entregou ao Demandante uma declaração de garantia de um ano, que excluía os componentes eletrónicos e peças de desgaste.
3. Um mês após a aquisição da viatura, esta começou a fazer um ruído, pelo que o Demandante contactou o gerente da Demandada que lhe comunicou que devia dirigir-se à oficina [ORG-3], por ser a oficina que prestava serviços à Demandada.
4. O diagnóstico da viatura é que esta estava com uma avaria num injetor.
5. O Demandante levou a viatura a outra oficina – [...] – que testou os quatro injetores e considerou que estavam em perfeitas condições e sem avarias.
6. O Demandante dirigiu-se à [ORG-3] para que substituíssem as “tuches”.
7. As “tuches” foram substituídas.
8. O ruído manteve-se.
9. A viatura foi então levada à [ORG-4], que confirmou o diagnóstico da [ORG-3], verificando a avaria num injetor.
10. Para além da avaria no injetor, foi detetado que quando o veículo foi levado para a oficina [...] esta deixou o injetor nº 3 largo, as porcas dos injetores largas e programou os injetores pela ordem incorreta.
11. O veículo foi reparado pela [ORG-4].
12. Cerca de duas/três semanas, após a reparação, em outubro de 2022, o veículo teve um início de incêndio,
13. na instalação elétrica do motor.
14. O Demandante reclamou a situação junta da Demandada que comunicou que o incêndio não estava coberto pela garantia e que a viatura tinha perdido a garantia a partir do momento que o Demandante a levou à oficina [...], que mexeu no veículo.
15. O Demandante deixou a viatura na [...] para reparação durante um ano e quatro meses, sem que esta procedesse à reparação,
16. uma vez que ainda não se encontrou uma instalação igual à do veículo em causa que permita a sua substituição.
17. No dia 29 de janeiro de 2024 o Demandante enviou uma carta registada com aviso de receção a comunicar a resolução do contrato de compra e venda. Consideram-se reproduzidos os documentos de fls. 8 a fls. 16 e de fls. 72 a fls. 78. * Motivação da matéria fática: O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência, as declarações e os documentos juntos pelo Demandante e pela Demandada, conjugados com o depoimento de cada uma das testemunhas apresentadas e inquiridas em sede de audiência de julgamento. Nos termos do n.º 2, do art.º 574.º, do CPC, aplicável ex vi, art.º 63.º, da LJP, consideram-se admitidos por acordo os factos constantes nos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 12, 15 e 17. A restante matéria resulta provada pela análise crítica de todas as provas que foram dadas a conhecer em sede de audiência, o que foi ponderado de acordo com as regras da experiência e no âmbito da prova global produzida de modo a não existir contradições entre os documentos e a prova testemunhal. Durante a audiência procedeu-se à audição de testemunhas. O depoimento da testemunha [PES-2], na qualidade de pai do Demandante, foi efetuado de forma idónea e credível e isenta, tendo explicado em suma que o filho comprou um carro à Demandada; que o carro está há cerca de 17 meses na oficina para reparação; que o carro quando foi comprado começou logo com um ruído; que a Demandada disse para o Demandante levar o carro à [ORG-3]; que disseram que era dos injetores mas depois já não era; que o filho pagou cerca de € 600,00 por umas “tuchas”; que o carro não tinha força e por isso voltou à oficina; que mais tarde soube que o tubo do injetor tinha fugido da posição; que um dia foram fazer uma espetada na serra e no regresso o carro começou a pegar fogo; que abriram o capôt e viram que o tubo do injetor tinha fugido; que o filho ligou para o gerente da Demandada; que não assistiu no período pós incêndio aos contactos entre o seu filho e o gerente da Demandada; que o filho está sem carro há quase dois anos. O depoimento da testemunha [PES-3], na qualidade de engenheiro e gerente da [ORG-3], empresa que presta serviços de mecânica à Demandada, foi efetuado de forma idónea e credível e isenta, tendo explicado em suma que o Demandante apareceu na oficina com um problema de perda de água e a Demandada assumiu a reparação; o Demandante queixava-se de um ruído e o diagnóstico é que a viatura tinha uma avaria num injetor; o Demandante não acreditou e teimou que o problema era da “tucha”; que o Demandante disse que ia testar os injetores com um amigo de uma outra oficina – [...] - e a informação dessa oficina é que o problema não era dos injetores mas sim das “tuchas”; que o Demandante foi à [ORG-3] e pediu para mudar as “tuchas”, mesmo tendo sido alertado várias vezes que o problema não era das “tuchas”; que o ruído permaneceu; que o Demandante levou novamente a viatura à [ORG-3] e então levaram a viatura à [ORG-4] que comprovou que a viatura tinha um injetor danificado, fora do parâmetro; que a [ORG-4] reparou este injetor; que o Demandante não pagou o trabalho mas devia ter pago porque o injetor não está na garantia porque é um material de desgaste, tendo em conta a idade do carro e os Km que tem é normal ter danificado; que os injetores podem durar 6 meses ou 20 anos, tem a ver com o desgaste, combustíveis, qualidade do combustível, uso, quilometragem, uso excessivo do motor, excedendo as rotações; que o Demandante levou a viatura e um ou dois dias depois reclamou de um odor a combustível e passou na oficina para verificar; que um dos seus técnicos verificou que se tratava de uma anilha e esta foi substituída; que cerca de duas ou três semanas depois houve um incêndio; que o Demandante telefonou-lhe a contar o sucedido; que lhe disse que estavam com muito trabalho mas para levar a viatura que iam verificar; a viatura chegou lá de reboque; que verificaram um início de incêndio na instalação elétrica do motor; que contactaram o Demandante a dizer o problema e quais eram as soluções: adquirir uma instalação elétrica nova, mas isso era impossível porque já não é comercializado ou então arranjar uma instalação igual à do carro; que desde a altura do incêndio que a viatura se encontra na oficina e ainda não foi reparada porque ainda não encontraram uma instalação elétrica para este carro; não faz ideia de quais são os valores de uma instalação elétrica para este carro; quando a viatura chegou às instalações detetaram que já tinha sido mexida e sabe disso porque os injetores estavam largos, injetor n.º 3 largo, as porcas dos injetores largas e os injetores programados por uma ordem incorreta; não é possível neste tipo de viaturas que o derrame de gasóleo para cima da viatura a faça pegar lume; o gasóleo só entra em auto combustão a altas temperaturas nesta viatura; não pode haver auto combustão porque quando os motores são projetados as patentes de fábrica têm que ter termos de segurança os quais envolve fugas de combustível para assegurar a segurança dos ocupantes; a fuga de gasóleo não poderia ter causado o curto circuito; tratou o Demandante como um cliente qualquer; não informou o gerente da Demandada que tinha recebido a viatura porque a viatura não estava na garantia e o contrato de reparação era com o Demandante e não com a Demandada; a folha de obra está em nome do Demandante; a Demandada nunca disse que ia assumir os custos com o incêndio; os tubos de retorno do sistema de injeção estão todos ligados ao injetor e ao sistema de injeção pelo que nenhum saltou; depois do incêndio os tubos chegaram à sua oficina ligados.
*
O depoimento da testemunha [PES-2] foi determinante para formar convicção sobre os factos 1, 3, 12, e 15.
O depoimento da testemunha [PES-3] foi determinante para formar convicção sobre os factos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16.
A prova testemunhal foi considerada idónea, credível e isenta no seu conjunto. *
Considerou o Tribunal o teor dos documentos de fls. 8 a fls. 10, para prova do facto 1; de fls. 11 para prova do facto 2; de fls. 72 a fls. 78, para prova do facto 10; de fls. 13 a fls. 14 para prova do facto 12; de fls. 13 para prova do facto 15; e, de fls. 15 a fls. 16 para prova do facto 17.
*
Em suma, a fixação da matéria dada como provada resultou dos factos admitidos e do teor dos supra referenciados documentos juntos aos autos, além das declarações das partes e da prova testemunhal, o que devidamente conjugado com regras de experiência comum e critérios de razoabilidade, alicerçou a convicção do Tribunal. A demais factualidade não provada resultou da ausência de prova credível ou suficiente e da prova de factos contrários ou aptos a tornar duvidosos aqueles outros.
*
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos, com interesse para a decisão da causa, dada a inexistência ou a insuficiência de prova nesse sentido. Os factos não provados resultam, portanto da ausência de elementos que permitam formar convicção positiva sobre os mesmos. Consigna-se que, para apuramento da matéria de facto não foi considerado o teor dos articulados com matéria tida por irrelevante, conclusiva ou de direito.
*
VI – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O caso em apreço é revelador do espírito de litigância que ainda impera nas relações sociais, avessas à conciliação como modo de resolução consensual dos conflitos. No caso era essa a via indicada para que a justiça fosse feita. Contudo, uma vez que as partes não perfilharam esse caminho há que apreciar a questão que nos é colocada sob o prisma da legalidade. No que concerne ao contrato de compra e venda resultou, suficientemente, para este Tribunal da matéria de facto dada como provada, que o Demandante adquiriu à Demandada um bem em conformidade com o referido contrato, ou seja, o bem não se revelou defeituoso em virtude de cumprir a função para a qual foi adquirido. Se é verdade que após a aquisição surgiram alguns problemas no automóvel, não é menos verdade que a Demandada assegurou a sua reparação a expensas suas ao abrigo da garantia contratual. O que está em causa nos presentes autos é a natureza de alguns “defeitos” denunciados pelo Demandante que este qualifica como sendo faltas de conformidade com o contrato e que a Demandada qualifica, por sua vez, como consumíveis, por um lado, ou eventual má utilização do veículo, por outro. Resultou provado, que o Demandante permitiu, durante o período da garantia, que um terceiro interviesse no automóvel alegadamente para diagnóstico, mas que acabou por ter uma intervenção ao deixar o injetor n.º 3 largo, as porcas dos injetores largas e os injetores programados por uma ordem incorreta. Conforme sentença do Tribunal Arbitral de Conflitos de Consumo de Braga – Processo n.º 670/2021, “Ora, essa circunstância seria suficiente para fazer cessar a garantia contratual e desse modo desobrigar a Demandada da reparação de qualquer “defeito” suscetível de ser qualificado com falta de conformidade, nos termos e para os efeitos previstos no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de julho” (na redação em vigor aquando da celebração do contrato de compra e venda). A este respeito dispõe o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril (na redação em vigor aquando da celebração do contrato de compra e venda), no seu artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 “1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda. 2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.” Por sua vez, o artigo 4.º consagra que “1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.” De igual modo dispõe, ainda, o referido artigo 4.º que “5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.” Aquele diploma consagra, ainda, no seu artigo 3.º que “1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue. 2 – As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.” Assim sendo, nos termos supra referenciados e aplicando o Direito aos factos que resultaram provados temos, então, que o Demandante, na qualidade de consumidor, não lhe assiste o direito, relativamente ao bem em causa, à reposição, sem encargos, da falta de conformidade daquele, por meio da reparação, ou sequer à resolução do contrato e à devolução do preço que pagou pelo automóvel. * Pelo que, por todos os fundamentos já expostos, a presente ação não poderá proceder.

VII - DECISÃO
Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente, e, consequentemente, absolvo a Demandada do pedido.

VIII – RESPONSABILIDADE POR CUSTAS
As custas no montante de € 70,00 (setenta euros) são suportadas pelo Demandante, que se declara parte vencida, nos termos e para os efeitos do artigo 2.º, n.º 1 b) da Portaria n.º 342/2019, de 1 de outubro, devendo ser notificado para vir pagar as custas que lhe são devidas, num dos três dias úteis subsequentes ao conhecimento da presente decisão, incorrendo numa sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação, até um máximo de € 140,00 (cfr. Portaria 342/2019, de 1 de outubro).
O prazo legal para proceder ao pagamento das custas é o mencionado na presente decisão, isto é, três dias úteis, pelo que, o prazo que vai indicado no Documento Único de Cobrança (DUC) é um prazo de validade desse documento, que permite o pagamento das custas fora do prazo legal. Assim, o facto de o pagamento ser efetuado com atraso não isenta o responsável do pagamento da sobretaxa, nos termos aplicáveis. Transitada em julgado a presente decisão sem que se mostre efetuado o pagamento das custas, emita-se a respetiva certidão para efeitos de execução por falta de pagamento de custas, e remeta-se aos Serviços da Autoridade Tributária, pelo valor das custas em dívida, acrescidas da respetiva sobretaxa, com o limite máximo previsto no art.º 3.º da citada Portaria.
Registe e notifique e após trânsito em julgado, arquive.

Caniço, 26 de julho de 2024.
*
A Juíza de Paz
__________________________
Celina Alveno