Sentença de Julgado de Paz
Processo: 3/2024-JPCV
Relator: ISABEL ALVES DA SILVA
Descritores: COMPRA E VENDA DE OVINOS
Data da sentença: 06/05/2024
Julgado de Paz de : CASTRO VERDE
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 3/2024-JPCV

SENTENÇA

Matéria: Responsabilidade civil - Artigo 9.º, nº 1, alínea h), da Lei de organização, competência e funcionamento dos julgados de paz, aprovada pela Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, alterada e republicada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho

Objecto do litígio: compra e venda de ovinos

Demandante: [PES-1], portadora do CC n.º [Id. Civil-1], NIF [NIF-1], residente no [...], Caixa Postal 8775, em [Cód. Postal-1] [...]

Mandatário da demandante: Dr. [PES-2], advogado, com escritório na [...], 77-A, em [...]

Demandado: [PES-3], portador do CC n.º [Id. Civil-2], NIF [NIF-2], residente no [...], em [Cód. Postal-2] [...], [...]

Mandatária do demandado: Dra. [PES-4], advogada com escritório na [...], n.º 29, em [Cód. Postal-3] [...]

Valor da acção: €14.040,00


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I – Relatório

A demandante [PES-1] intentou a presente acção declarativa ao abrigo da alínea h) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei de competência, organização e funcionamento dos julgados de paz, aprovada pela Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, alterada e republicada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante LJP), contra o demandado [PES-3], peticionando a condenação do mesmo na devolução de 108 ovinos ou, subsidiariamente, caso o mesmo já tenha os tenha vendido, no pagamento do valor pelo qual foram vendidos. Para tanto e em resumo, alegou que celebrou um contrato de compra e venda de 105 ovelhas e 3 carneiros com o demandado, por um valor entre €100,00 e €150,00 por cabeça, tendo emitido a correspondente guia de circulação do Sistema Nacional de Informação e Registo Animal. Mais alegou que combinaram que o pagamento seria diferido para quando o demandado recebesse os subsídios, mas, antes daquele pagamento, a demandante e o demandado acordaram em desfazer o negócio e o demandado passou duas guias de circulação para devolução dos animais, mas os animais que constam da guia não se encontram na sua exploração.

O demandado foi citado e contestou, confirmando a celebração do contrato e que as partes acordaram em desfazer o negócio devido a problemas pessoais existentes entre ambos, tendo o demandado devolvido 101 animais à demandante e passado as correspondentes guias de circulação, faltando devolver 4 animais. Mais defendeu que tem 30 ovinos retidos na exploração, dos quais a demandante está a obter vantagens.

Foi marcada a audiência de julgamento e, atendendo à matéria em causa, foi determinada a comparência de técnico especialista da [ORG-1] ([ORG-1]), a fim de prestar os esclarecimentos necessários. A audiência decorreu em cinco sessões, em todas elas se procurando aproximar as partes de modo a que terminassem o litígio por acordo, mas sempre sem sucesso. No decurso da audiência de julgamento, as partes acordaram, contudo, que a “devolução” em causa nos autos se reporta à substituição ou anulação das guias emitidas e à emissão de guia de circulação relativa a 104 ovelhas, uma vez que os animais se encontram fisicamente na exploração da demandante; na sequência, foi feita uma deslocação à exploração sita no [...], onde, com a colaboração da AACB, se procedeu à identificação das ovelhas aí existentes em nome da demandante e do demandado, e, bem assim, foi feita uma deslocação aos escritórios da aludida Associação com o objectivo de determinar o ocorrido com as ovelhas constantes das guias de circulação em causa nos autos; foram ouvidas as testemunhas apresentadas pelas partes e as mesmas constituíram mandatário forense que as assistiu nas duas últimas sessões (demandado) e na última sessão (demandante), tudo conforme melhor consta da actas respectivas. Para além dos documentos oferecidos pelas partes com as suas peças, foi oficiosamente decidida a junção aos autos da documentação produzida pelas consultas e registos na base de dados do Sistema Nacional de Informação e Registo Animal e na base de dados do PISA.NET – Programa Informático de Saúde Animal com relevo para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.


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Como questões prévias a exigir decisão, figuram a alteração do pedido e a invocada incompetência relativa deste Julgado de Paz em razão do território.

Da alteração do pedido

Apesar da formulação do pedido constante do r.i., a saber, de que a demandante pretende que o demandado seja condenado a “devolver à demandante os 108 ovinos que esta lhe vendeu”, ou, “subsidiariamente, caso o demandado já tenha vendido os ovinos em falta, ou parte deles, a demandante pretende ser ressarcida com o valor pelo qual foram vendidos”, verifica-se, desde a primeira sessão da audiência de julgamento, que as partes acordam que os ovinos em causa se encontram na exploração da demandante sita no [...] em [...] e a mesma não pretende a devolução física dos animais, mas sim a substituição ou anulação das guias emitidas pelo demandado e a emissão de guia de circulação relativa a 104 ovelhas, número que foi obtido por consenso entre as partes na aludida primeira sessão.

De acordo com o disposto no artigo 264.º do Código de Processo Civil (diploma que é aplicável nos termos definidos no artigo 63.º da LJP), «Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito».

No caso em apreço a alteração não causa qualquer perturbação na tramitação do processo e a mesma é resultante do facto de, nos Julgados de Paz, não ser obrigatória a constituição de mandatário, pelo que se apresentam as partes a expor sucintamente as suas posições conforme é expressamente previsto no artigo 43.º, n.º 2 da LJP, circunstância que, em abundância, redunda em falta de explicitação e concretização dos factos a par da imperfeita enunciação do pedido, como aqui ocorreu.

Por isso, atento o circunstancialismo exposto e o acordo das partes, admito a alteração do pedido nos termos do artigo 264.º do CPC e artigo 63.º da LJP.

Da incompetência territorial

No tocante à invocada incompetência territorial do Julgado de Paz de Castro Verde para conhecer a acção, baseada no facto de o demandado residir no Ameixial – [...] e não haver convenção quanto ao lugar do cumprimento da obrigação, não assiste razão ao demandado.

De acordo com o n.º 1 do artigo 7.º da LJP, na redacção anterior à dada pelo Decreto-Lei n.º 26/2024, de 3 de Abril de 2024, atenta a data da entrada desta acção, «A incompetência dos julgados de paz é por estes conhecida e declarada oficiosamente ou a pedido de qualquer das partes e determina a remessa do processo para o julgado de paz ou para o tribunal judicial competente», prevendo o n.º 1 do artigo 12.º da mesma Lei que «A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta, à escolha do credor, no julgado de paz do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou no julgado de paz do domicílio do demandado».

Ora, no caso, compulsados os elementos dos autos, o elemento de conexão a relevar é o local do cumprimento da obrigação. Efetivamente, o r.i. e a contestação identificam como o local onde a demandante e o demandado procedem à passagem das guias de circulação dos animais, os escritórios da [ORG-1], sitos em [...] (cfr. n.º 6 do r.i., não impugnado, e n.ºs 13 e 14 da contestação), pelo que se verifica ser esse o local de cumprimento da obrigação, o qual se situa na área de jurisdição deste Julgado de Paz (cfr. Decreto-Lei n.º 22/2008, de 1 de Fevereiro). Nem pode o demandado dizer coisa diferente sob pena de incorrer em abuso de direito na modalidade de venire contra factum próprio porquanto, alegando que cumpriu a sua obrigação de passagem das guias, cumpriu-a, segundo o que consta da contestação, na [ORG-1] nos dias 08-11-2023 e 10-11-2023 (vd. n.ºs 13 e 14 da contestação).

Em face de todo o exposto, improcede a excepção invocada, declarando-se territorialmente competente para conhecer a acção o Julgado de Paz de Castro Verde.

Assim, a instância é válida e regular e nada obsta ao conhecimento do mérito.


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Nos termos do disposto nos artigos 297.º, n.ºs 1 e 2, 299.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC, fixo à presente acção o valor de €14.040,00 (catorze mil e quarenta euros).

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II. Fundamentação

Dispõe a al. c) do n.º 1 do artigo 60.º da LJP que da sentença proferida nos Julgados de Paz consta uma sucinta fundamentação, o que se cumpre como segue:

II-A. Fundamentação da matéria de facto

Factos provados

Da prova produzida, resultam provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:

1 – A demandante é proprietária de um rebanho de ovinos no [...], em [...] – [...].

2 – Em data não concretamente apurada, mas há cerca de 3 anos, porque o marido da demandante adoeceu, o demandado, genro da demandante, foi ajudar na exploração sita no [...].

3 – A demandante decidiu vender metade do rebanho ao demandado e dividiram o rebanho em duas partes iguais, ficando a demandante e o demandado com cada metade.

4 – Para fazer a divisão, levaram as ovelhas ao curral, separaram uma para um lado e outra para outro, e tiraram os números do animal através do brinco.

5 – Da divisão, realizada em data não apurada de 2022, mas anterior a novembro, cada um ficou com 105 ovelhas e 3 carneiros.

6 – Apesar da divisão, todas as ovelhas permaneceram na exploração sita no [...], em [...].

7 – As partes combinaram que o demandado pagaria as 105 ovelhas e os 3 carneiros quando recebesse os subsídios.

8 – As partes dirigiram-se aos escritórios da [ORG-1], em [...], para passarem a correspondente guia de circulação dos animais, mas não conseguiram fazê-lo porque alguns números de brinco “não passaram”, ficando a guia em aberto.

9 – Em 15-11-2022, a demandante e o demandado dirigiram-se aos escritórios da [ORG-1], em [...], onde passaram uma guia de circulação no Sistema Nacional de Informação e Registo Animal (SNIRA), através da qual, na exploração com a marca [Marca-1], que corresponde ao [...], em [...], passaram do detentor [PES-1] para o detentor [PES-3], 168 animais, sendo 163 fêmeas e 5 machos.

10 – Os 168 animais referidos correspondiam à metade do demandado que este iria pagar (sendo que os brincos de 3 fêmeas não se encontravam no sistema), a 40 fêmeas e um macho que o demandado comprou a uma vizinha mas que foram indevidamente por esta passados para a demandante, e a 22 fêmeas e 1 macho dados pela demandante ao demandado como pagamento do seu trabalho na exploração durante o segundo ano que lá esteve.

11 – Por conta do trabalho que o demandado fez na exploração no primeiro ano que lá esteve a demandante deu-lhe 25 ovelhas e por conta do trabalho que o demandado fez na exploração no segundo ano que lá esteve a demandante deu-lhe outras 25 ovelhas.

12 – Em 21-12-2021, a demandante passou para o demandado uma guia de circulação de 20 animais por conta do trabalho realizado na exploração no primeiro ano e referido em 11.

13 – Para diferenciar as ovelhas, foram cortadas as orelhas dos animais que pertenciam ao demandado, o que ocorreu após a passagem da guia referida em 9.

14 – Em junho de 2023 as relações familiares entre a demandante e o demandado deterioraram-se e o demandado abandonou a exploração.

15 – Em consequência, a demandante e o demandado decidiram terminar a parceria na exploração e acordaram em desfazer o negócio da compra e venda das ovelhas.

16 – Como o demandado ainda não havia pago o preço das ovelhas, acordaram na devolução dos animais.

17 – Nos dias 13 e 14-09-2023, a Dra. [PES-5] procedeu à vacinação do rebanho existente na exploração com a marca [Marca-1] e, com base numa lista manuscrita contendo números de brincos que lhe foi facultada pela demandante, separou os animais que pertenciam à demandante daqueles que pertenciam ao demandado e intervencionou 159 animais do demandado e 195 animais da demandante.

18 – O demandado esteve presente no início da operação referida no número anterior e depois ausentou-se.

19 – Em 14-09-2023, o demandado levou para a sua exploração no [...] com a marca [Marca-2], 46 animais (44 fêmeas e 2 machos) que haviam sido separados pela Dra. [PES-5].

20 – Em 08-11-2023, o demandado passou, na [ORG-1], uma guia de circulação, através da qual, na exploração com a marca [Marca-1], que corresponde ao [...], em [...], passou do detentor [PES-3] para o detentor [PES-1], 78 animais, sendo 75 fêmeas e 3 machos, cfr. doc. de fls. 9 a 10v., que se dá por integralmente reproduzido.

21 – Em 09-11-2024, o demandado passou, na [ORG-1], uma guia de circulação relativa à movimentação indicada em 19.

22 – Em 10-11-2023, o demandado passou, na [ORG-1], uma guia de circulação, através da qual, na exploração com a marca [Marca-1], que corresponde ao [...], em [...], passou do detentor [PES-3] para o detentor [PES-1], 23 animais, todos fêmeas, cfr. doc. de fls. 11 a 12v., que se dá por integralmente reproduzido.

23 – Em 30-11-2023, a pedido da demandante e com a presença desta, os técnicos da [ORG-1] procederam a uma leitura dos brincos dos animais existentes na exploração com a marca [Marca-1], cfr. docs. de fls. 13 e 45-46, que se dão por integralmente reproduzidos, e compararam com a identificação dos animais constantes das guias referidas em 20 e 22, de que resultou:

a) 18 ovinos estão nas guias passadas, mas não foram identificados na exploração;

b) 30 ovinos foram identificados na exploração, mas não estão nas guias passadas.

24 – Em 30-11-2023, existiam na exploração com a marca [Marca-1], 112 animais do demandado e 194 da demandante de acordo com o critério enunciado em 13.

25 – Em face do resultado indicado em 23, a demandante não aceitou, no SNIRA, as guias de circulação passadas pelo demandado.

26 – Em 10-11-2023, o demandado tinha registadas no SNIRA, no seu nome de detentor e na exploração com marca [Marca-1], 54 animais às 11h31m, e 30 animais às 12h27m, todos, fêmeas.

27 – O demandado apresentou queixa na GNR por ter 30 ovinos retidos na exploração da demandante.

28 – Em 21-03-2024, na presença de ambas as partes, a [ORG-1] procedeu a uma leitura dos brincos dos animais existentes na exploração com a marca [Marca-1], diferenciando os pertencentes à demandante e ao demandado pelo critério da orelha cortada referido em 13.

29 – Em 21-03-2024 existiam na exploração com a marca [Marca-1], 111 animais do demandado e 179 da demandante.

30 – Das 30 ovelhas indicadas em 26, em 21-03-2024, encontravam-se na exploração com marca [Marca-1], 24 animais.

31 – Em 21-03-2024, da guia de circulação indicada em 20, não se encontravam na exploração 12 animais, cfr. docs. de fls. 53 a 77, que se dão por integralmente reproduzidos, sendo que desses 12:

a) 3 passaram na leitura electrónica da vacinação de setembro de 2023 e na leitura electrónica de novembro de 2023;

b) 7 passaram na leitura electrónica da vacinação de setembro de 2023, nas leituras eletrónicas de novembro de 2023 e março de 2024, não tinham a orelha cortada e constam da guia indicada em 9 como passando do detentor [PES-1] para o detentor [PES-3];

c) 2 passaram no rastreio ao sangue em abril de 2023, passaram na vacinação de setembro de 2023 e não passaram nas leituras de novembro de 2023 e março de 2024.

32 – Em 21-03-2024, da guia de circulação indicada em 22, não se encontravam na exploração 16 animais, cfr. docs. de fls. 78 a 108, que se dão por integralmente reproduzidos, sendo que desses 16:

a) 7 não passaram na vacinação de setembro de 2023 nem ao rastreio de sangue de abril de 2023, sendo a última intervenção registada a vacinação de outubro de 2022;

b) 6 passaram no rastreio ao sangue em abril de 2023 e não passaram na vacinação de setembro de 2023;

c) 2 passaram na vacinação de setembro de 2023 e não passaram nas leituras de novembro de 2023 e março de 2024;

d) 1 passou na vacinação de setembro de 2023 e nas leituras de novembro de 2023 e março de 2024, mas não tem a orelha cortada.

33 – Dos 18 animais que constam das guias indicadas em 20 e 22 e não se encontravam na exploração da demandante em 30-11-2023,

a) 7 – a última intervenção registada é a vacinação de outubro de 2022;

b) 6 – a última intervenção registada é o rastreio ao sangue de abril 2023;

c) 5 – a última intervenção registada é a vacinação de setembro de 2023.

33 – As guias referidas em 20 e 22 foram passadas com base nas existências “digitais” e tiveram por base a listagem da colheita de sangue realizada em abril de 2023.

34 – A colheita de sangue é registada na base de dados PISA.NET – Programa Informático de Saúde Animal.

35 – Na exploração com marca [Marca-1], a actividade pecuária é exercida em regime extensivo, sendo normal que ocorram desaparecimentos e mortes.

36 – A base de dados do SNIRA - Sistema Nacional de Informação e Registo Animal e a base de dados do PISA.NET – Programa Informático de Saúde Animal são independentes uma da outra e não comunicam entre si.

37 – Para que a movimentação dos animais entre detentores no SNIRA se efetive, é necessário que o detentor de origem passe a guia de circulação e que o detentor de destino a aceite.

Factos não provados

Não se provou:

a. Que as partes tenham combinado um valor entre €100 e €150 pela venda de cada cabeça de gado;

b. Que as ovelhas que não foram identificadas na exploração da demandante tenham morrido ou desaparecido por causa do descuido ou imperícia no pastoreio efetuado pela demandante e pelo marido;

c. Que a GNR se tenha dirigido à exploração e que o marido da demandante tenha dito que as 30 ovelhas eram suas pois tomava conta das mesmas e que nunca as iria entregar ao demandado.

Motivação da matéria de facto

O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, tendo sopesado as declarações das partes, da técnica especialista da [ORG-1] (AACB) e das testemunhas inquiridas, bem como os documentos juntos aos autos, todos não impugnados, análise essa feita à luz das regras da experiência comum e norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, nos termos conjugados dos artigos 57.º, n.º 1 da LJP, 466.º, n.º 3 do CPC, 376.º e 396.º do Código Civil; foram ainda tidos em conta, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC, factos instrumentais e factos que complementam ou concretizam os alegados e resultaram da instrução e discussão da causa, os quais foram sendo comunicados às partes ao longo do processo e resultaram, em grande parte, das suas declarações que complementaram, fundamentaram e esclareceram as suas posições que constam do requerimento inicial e da contestação, peças que se revelaram lacunares mas que foram apresentados pelas partes sem assistência de advogado como é permitido pela LJP pelo que não podem as mesmas por isso ser prejudicadas ou beneficiadas.

Deste modo, os factos dados como provados resultam: (i) dos documentos que se indicam, todos não impugnados, cuja junção, na maioria, foi resultado do disposto no artigo 411.º do CPC, os quais, por si só ou em conjugação com os outros meios de prova, contribuíram para dar como provados os seguintes factos: guia de circulação do SNIRA (Ovinos e Caprinos) de fls. 6-8v. (facto 9), guia de circulação do SNIRA (Ovinos e Caprinos) de fls. 9-10v. (facto 20), guia de circulação do SNIRA (Ovinos e Caprinos) de fls. 11-12v. (facto 22), resultado da comparação da leitura electrónica da identificação dos animais de fls. 13 e 45 (facto 23), folha de campo de fls. 14-15v. (facto 24), guia de circulação do SNIRA (Ovinos e Caprinos) de fls. 29-30 (facto 12), consulta do SNIRA de fls. 31-31v. (facto 26), termo de notificação e estatuto de vítima de crime de fls. 32-35v. (facto 27), total de animais identificados de fls. 47 (facto 24), resultados do cruzamento entre os animais indicados nas guias referidas nos factos 20 e 22, nas verificações de 30-11-2023 e 21-03-2024 e no histórico sanitário dos animais constantes das guias e ausentes da exploração em 21-03-2024 de fls. 53-128 (factos 28, 31, 32 e 33), folha de campo e consulta SNIRA de fls. 109-113 (factos 29 e 30); folha de campo de fls. 114-118 e fls. 119-124 (factos 17, 31, 32 e 33), folha de campo de fls. 125-132 (factos 19 e 21), total de animais identificados de fls. 133 (facto 29), listagens manuscritas contendo n.ºs de identificação de fls. 134-138 (factos 20 e 22), consulta do SNIRA de fls. 140-140v. (factos 22 e 26).

(ii) das declarações das partes, coincidentes no tocante a todo o circunstancialismo respeitante ao negócio (nomeadamente quanto a não ter sido fixado o preço), à sua cessação por causa das desavenças familiares e aos efeitos que acordaram. Regista-se a intransigência de ambos que determinou a frustração de um acordo que pusesse fim ao litígio, sendo certo que, atendendo nomeadamente aos interesses económicos de ambos em presença (ambos estão, por exemplo, a perder prémios), tudo foi feito ao longo das cinco (!) sessões de julgamento para que tal ocorresse. Logo na primeira sessão foi por ambos dito que as ovelhas se encontram na exploração da demandante, à excepção daquelas que o demandado levou para a exploração do [...] quando foi feita a vacinação da língua azul pela Dra. [PES-8] (em 13 e 14-09-2023), tendo o demandado sempre defendido que se faltam algumas ovelhas, isso deve-se ao modo como a demandante e o marido fazem a guarda dos animais, porque desde Junho de 2023 que não vai (nem lhe é permitido ir) à exploração. Em todo o caso, não foi feita qualquer outra prova que haja problemas na guarda dos animais feita pela demandante e marido, não tendo estas declarações do demandado sido confirmadas por qualquer outro meio de prova (nomeadamente a médica veterinária da exploração não o refere), razão porque foi dado como não provado o facto elencado sob a al. b.

Quanto ao pagamento do trabalho com ovelhas no primeiro e no segundo ano em que o demandado esteve na exploração, atendeu-se às declarações do demandado e da testemunha [PES-9], que mereceram credibilidade. Esta convicção não foi abalada pelas declarações da demandante que nunca o negou, antes disse que havia entregue dinheiro, mas não foi convincente de que seria em substituição das ovelhas; aliás, ficou a suspeita que teria sido em cumulação com as ovelhas atendendo a que, segundo o declarado por todos, ocorreu numa altura em que a família se dava bem e o genro e filha estavam na exploração para ajudar face à doença do marido da demandante.

(iii) do depoimento das testemunhas ouvidas na audiência, que, no essencial, corroboraram o declarado pelas partes. Foi ouvida a médica veterinária da exploração, Dra. [PES-10], que, de modo claro, seguro e isento, explicou, em pormenor, os trabalhos de natureza sanitária que desenvolveu no período e o modo como procedeu à separação do rebanho depois das partes terem “desfeito” o negócio; explicou também a utilização (no campo) que é feita da base de dados PISA.NET – Programa Informático de Saúde Animal e foi determinante, assim como a Dra. [PES-11], técnica da AACB, para se dar como provado o tipo de exploração que é realizada (em extensivo) e que é normal que ocorram desaparecimentos e mortes (ovelhas mortas por animais selvagens, ovelhas mortas por causas naturais que depois são consumidas por animais selvagens, podendo haver ou não recuperação dos brincos por parte dos produtores, ovelhas paridas que não abandonam as crias e, por isso, não voltam ao curral e não entram nas leituras e contagens, ovelhas que seguem outras ovelhas que não pertencem ao mesmo rebanho e acabam por integrar esse outro rebanho até que os respectivos produtores se apercebam). Foi também ouvida [PES-12], mulher do demandado e filha da demandante que, não obstante essas ligações e estar de relações cortadas com a mãe, depôs sobre os factos de que teve conhecimento directo e participou, mormente, os atinentes à passagem das guias de circulação de Novembro de 2023, dizendo, em resumo, que antes de passarem as guias, dirigiram-se à AACB onde pediram uma lista da colheita do sangue que foi feita em Abril de 2023 com todos os números de identificação que estavam no contribuinte do demandado (lista da base de dados PISA.NET, segundo informado pela Dra. [PES-5]) e foi com base nos números de identificação dos animais que aí constavam que passaram as guias, sendo suas as cópias das folhas manuscritas que constam de fls. 134-138; passaram todas as ovelhas para a mãe da depoente do seguinte modo: descontaram 5 (que eram a diferença entre as 25 do primeiro ano de trabalho e a guia passada pela demandante que foi só de 20 ovelhas – cfr. facto 12), o demandado vendeu 6 ovelhas da demandada e repôs das suas essas 6; descontaram aquelas que tinham comprado à D.ª Felicidade e descontaram 23 relativas ao pagamento do 2.º ano de trabalho, passando as restantes para o contribuinte da sua mãe.

(iv) da audição técnica especializada prestada pela Dra. [PES-11], médica veterinária da [ORG-1] (da qual quer a demandante quer o demandado são associados), e que é a entidade protocolada com as autoridades oficiais e integra a rede nacional de postos do SNIRA, que prestou todo o apoio às partes e ao Julgado de Paz, através do esclarecimento dos trâmites, obrigações decorrentes e funcionamento da base de dados do SNIRA, na junção aos autos de listagens e consultas e na deslocação à exploração sita no [...], em [...], local onde realizou, com a presença das partes e do Julgado de Paz, a leitura da identificação dos animais existentes na exploração em Março de 2023. Esclareceu também que, uma vez que as guias emitidas pelo demandado não foram aceites no SNIRA pela demandante, os animais constantes das mesmas encontram-se numa espécie de “limbo” e não podem ser vendidos nem podem receber os prémios respectivos. Mais alertou a Dra. [PES-11] para o facto de que passou já um ano desde o último controlo sanitário realizado na exploração, pelo que é muito urgente proceder ao controlo deste ano.

Quanto aos factos não provados, assim foram declarados pelo acordo das partes nas suas declarações quanto ao indicado sob a al. a) e, quanto às als. b) e c) por falta de prova que corroborasse a versão que foi oferecida pelo demandado, sendo que ninguém dos ouvidos pôs em causa o pastoreio da demandante, antes foi referido que as mortes e desaparecimentos eram “normais” (inclusivamente, permitindo o IFAP a existência de uma discrepância de 10% entre o registado no SNIRA e o efectivo, segundo o informado pela Dra. [PES-11]), e, quanto ao ocorrido quando a GNR se deslocou ao [...], nenhuma prova foi feita.

II-B. Fundamentação de direito

A questão a decidir neste processo é a de saber se o demandado deve ser condenado na substituição ou anulação das guias emitidas em novembro de 2023, relativas à circulação de 78 e 23 ovelhas, e à emissão de uma guia de circulação relativa a 104 ovelhas, número que foi obtido por acordo das partes na primeira sessão da audiência de julgamento, tudo em conformidade com a alteração do pedido que foi já admitida, nos termos do artigo 264.º do CPC e artigo 63.º da LJP.

Entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda de ovinos. De acordo com artigo 879.º do Código Civil (diploma a que sem outra indicação pertencerão os preceitos legais citados), os efeitos essenciais do contrato de compra e venda, são a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entrega pelo vendedor e a obrigação do pagamento do preço por parte do comprador. Como o objecto do contrato são animais sujeitos a um registo nacional através de legislação específica, em concreto o Decreto-Lei n.º 142/2006, de 27 de Julho, com última alteração pelo Decreto-Lei n.º 32/2017, de 23 de Março (de ora em diante DL 142/2006), as partes ficam também obrigadas a uma série de deveres que emergem desta legislação, nomeadamente o dever de passar as correspondentes guias de circulação que expressam e indicam o movimento translativo dos animais entre os produtores, em conformidade com o disposto no n.º 1 artigo 13.º do citado Decreto-Lei. Essa obrigação foi cumprida pela demandante que passou uma guia com um total de 168 animais para o demandado.

O caso dos autos tem a particularidade de que, face ao rompimento das relações familiares e ao facto de o demandado não ter pago o preço, as próprias partes acertaram a cessação do contrato, constituindo-se, por acordo, o demandado na obrigação de devolver os animais. Uma vez que os animais já se encontravam na exploração com a marca [Marca-1], tal obrigação consistiu em emitir a correspondente guia de circulação que retornaria os animais à demandante, regressando assim os mesmos à sua esfera jurídica e podendo então a demandante, nomeadamente, vendê-los para deles tirar proveito.

Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 406.º, os contratos devem ser pontualmente cumpridos, devendo as partes proceder de boa fé, tal como indicado no n.º 2 do artigo 762.º. Àqueles que celebram contratos impõe-se, pois, o cumprimento pontual dos mesmos, ou seja, os contraentes ficam obrigadas a cumprir ponto por ponto o plano contratual que delinearam. Já o não cumprimento do contratado sujeita o faltoso às consequências que a lei impõe ou àquelas que, estando na disponibilidade das partes, estas hajam acordado, porquanto o princípio da liberdade contratual rege toda a vida do contrato, da sua génese à cessação.

No caso, dúvidas não se suscitam que a actuação das partes, consubstanciada no acordo revogatório do contrato com a restituição do prestado, é conforme ao direito e às normas reguladoras do contrato em causa (artigos 334.º a contrario, 405.º, 406.º, 762.º, n.º 2), e, como tal, constitui os celebrantes na obrigação de procederem como acordaram, ou seja, no caso ficou o demandado obrigado à emissão da guia de circulação que “devolvesse” as ovelhas à demandante.

A matéria em causa nos autos está regulada no já citado DL 142/2006, diploma que criou o Sistema Nacional de Informação e Registo Animal (SNIRA), o qual estabelece as regras para identificação, registo e circulação dos animais das espécies bovina, ovina, caprina, suína e equídeos, bem como o regime jurídico dos centros de agrupamento, comerciantes e transportadores e as normas de funcionamento do sistema de recolha de cadáveres na exploração (SIRCA).

O SNIRA é uma base de dados que contém o registo informatizado de âmbito nacional para as espécies indicadas e nela os produtores estão registados e individualmente identificados, assim como o estão as suas explorações, podendo cada detentor (assim são designados os produtores inscritos) ter uma ou várias explorações, sendo a cada uma delas atribuída uma marca que a permite individualizar. O acesso de cada detentor à base de dados é individualizado; é permitido, através da plataforma do IFAP idigital o acesso remoto ou o detentor pode socorrer-se de um qualquer dos postos de atendimento da rede para aceder à base de dados e aí fazer as suas declarações.

De acordo com a al. o) do DL 142/2006, «entende-se por «detentor de animais» qualquer pessoa singular ou coletiva, à exceção dos transportadores, responsável, a qualquer título, pelos animais abrangidos pelo presente decreto-lei». Este DL impõe aos detentores, estes “responsáveis, a qualquer título, pelos animais”, uma série de obrigações.

O artigo 7.º prevê, nomeadamente, que «(…)

3 - Os detentores de bovinos, ovinos, caprinos, suínos, aves, leporídeos ou de outras espécies pecuárias são obrigados a comunicar à base de dados informatizada todas as movimentações para a exploração e a partir desta, de acordo com os procedimentos a estabelecer nos termos do disposto no artigo 15.º.

4 - Os detentores de bovinos, ovinos e caprinos são obrigados a comunicar à base de dados informatizada, através da plataforma idigital, os desaparecimentos e mortes não comunicadas ao SIRCA e datas dessas ocorrências, bem como, no caso dos bovinos, as mortes não recolhidas pelo SIRCA e a data dessas ocorrências. (…)

6 - Os códigos dos animais da espécie ovina e caprina, identificados ou reidentificados eletronicamente nos termos do artigo 2.º do anexo II ao presente decreto-lei, que dele faz parte integrante, devem ser comunicados à base de dados do SNIRA, através da plataforma idigital. (…)

8 - As comunicações referidas nos n.ºs 3, 4, 5 e 6 devem ser efetuadas no prazo de sete dias, caso se trate da plataforma iDigital, e no prazo de quatro dias nas restantes situações, a contar das respetivas ocorrências, exceto no caso dos nascimentos de bovinos, em que tal prazo é contado a partir da data da aposição da marca auricular, caso não tenha sido aplicada a derrogação a que se refere o n.º 3 do artigo 2.º do anexo I.

9 - Para efeitos do disposto nos n.ºs 3, 4, 5 e 6 e nos prazos estabelecidos no número anterior, consoante os casos, os detentores devem preencher as respetivas declarações de modelo a aprovar nos termos do disposto no artigo 15.º.»

E o artigo 8.º que

«1 - É proibido o abandono de cadáveres de animais mortos na exploração, bem como a remoção de quaisquer partes dos mesmos, incluindo as suas peles.

2 - Os detentores de animais das espécies bovina, ovina e caprina são obrigados a comunicar ao SNIRA a morte de qualquer animal ocorrida na exploração, no centro de agrupamento ou no transporte para outra exploração no prazo máximo de doze horas a contar da ocorrência, para que seja promovida de imediato a recolha do cadáver. (…)»

Quanto à circulação dos animais, estabelece-se no artigo 13.º que

«1 - Todas as movimentações ou transferências de animais entre detentores devem ser acompanhadas por uma declaração de deslocação, guia de circulação ou guia sanitária de circulação, consoante os casos, com exceção das movimentações de aves e leporídeos quando destinados à venda direta, em mercado local de produtores, ao consumidor final. (…)»

O não cumprimento das obrigações a que estão adstritos os detentores, acarreta, para os mesmos, penalizações de vária ordem. Assim, e segundo o artigo 23.º,

«1 - É imposta uma limitação aos movimentos a todos os animais para ou a partir do estabelecimento em causa sempre que um ou mais animais não reúnam concomitantemente os seguintes requisitos:

a) Estar corretamente identificados ou marcados;

b) Os registos constantes no SNIRA estarem corretos e os animais estarem atribuídos a esse estabelecimento e ao detentor em que estes forem observados; (…)

2 - Os animais que sejam observados num estabelecimento e que se verifique não estarem em conformidade com os registos SNIRA ficam de imediato sob sequestro, até demonstração, no prazo de sete dias, do cumprimento pelo detentor das obrigações constantes no presente decreto-lei, podendo a autoridade competente, findo aquele prazo, ordenar a sua apreensão tendo em vista o seu abate e destruição, caso a sua rastreabilidade ou condição sanitária não possa ser assegurada.

3 - São imediatamente impostas limitações às movimentações de todos os animais presentes numa exploração ou centro de agrupamento quando o número de animais relativamente aos quais se verifique a falta de algum ou alguns dos requisitos de identificação e registo exceder 20%. (…)

5 - Se um detentor não assegurar o registo no SNIRA dos movimentos dos animais para ou a partir do seu estabelecimento, bem como o nascimento de um bovino, no prazo legalmente estabelecido, a autoridade competente impõe limitações aos movimentos de animais para e/ou a partir desse estabelecimento.

6 - As limitações de movimentos de animais referidas nos números anteriores mantêm-se até à resolução das ocorrências que estiveram na sua origem.»

Além das limitações referidas, os detentores sujeitam-se também a responsabilidade contraordenacional, podendo ser punidos com a aplicação de coimas e de sanções acessórias (como, por exemplo, a privação do direito a subsídio ou benefício). Neste seguimento e com interesse para a matéria dos autos, o artigo 24.º, dispõe que

«(…) 4 - O atraso na comunicação à autoridade competente pelos detentores de ovinos e caprinos, no prazo legalmente estabelecido, dos códigos de identificação ou reidentificação eletrónica, dos desaparecimentos e mortes não comunicadas ao SIRCA, bem como a data dessas ocorrências, constitui contraordenação punível com coima cujo montante mínimo é de (euro) 25 por animal, até ao montante máximo de (euro) 1870, no caso das pessoas singulares, e de (euro) 22 440, no caso de pessoas coletivas. (…)

7 - Constitui contraordenação, punível com coima cujo montante mínimo é de (euro) 250 e máximo de (euro) 3740, no caso das pessoas singulares, e de (euro) 44 890, no caso das pessoas coletivas: (…)

h) A não comunicação, no prazo legalmente estabelecido, da morte dos animais na exploração, bem como o não cumprimento das regras relativas à recolha dos cadáveres nos termos do disposto no artigo 8.º; (…)

o) O desrespeito das obrigações relativas à circulação de animais constantes dos artigos 13.º e 14.º».

Do dado como provado verifica-se que o demandado, depois da cessação do negócio e de forma a retransmitir as ovelhas para a demandante e repor a situação anterior ao negócio, passou as guias de circulação que a seguir se enunciam e, quanto às quais, face a todos os elementos recolhidos e confrontados, resulta o seguinte:

Em 08-11-2023, passou uma guia de circulação de 75 fêmeas e 3 machos. Dessa guia

• em 30-11-2023 não passaram na leitura feita pela AACB 3 animais, os quais tinham passado na leitura de setembro de 2023 aquando da vacinação;

• em 21-03-2023, não passaram na leitura 12 animais, sendo que desses:

 3 passaram na leitura electrónica da vacinação de setembro de 2023 e na leitura electrónica de novembro de 2023, ou seja, estavam na exploração, caso a demandante tivesse aceitado as guias;

 7 passaram na leitura electrónica da vacinação de Setembro de 2023, nas leituras eletrónicas de Novembro de 2023 e em Março de 2024 não tinham a orelha cortada e constam da guia indicada em 9 como passando do detentor [PES-1] para o detentor [PES-3], ou seja, existe uma discrepância entre o que existe registado no SNIRA e o que as partes dividiram mediante o critério da orelha cortada, ao que não será alheio o lapso temporal que mediou entre a divisão do rebanho e o corte da orelha (facto 13), circunstância que é geradora de incerteza quanto a quem pertence cada animal;

 2 passaram no rastreio ao sangue em abril de 2023, passaram na vacinação de setembro de 2023 e não passaram nas leituras de novembro de 2023 e março de 2024, ou seja, relativamente às mesmas não se sabe se estavam lá no início de novembro quando o demandado passou as guias.

Em 09-11-2023, o demandado passou a guia de circulação relativa à movimentação para a sua exploração no [...] com a marca [Marca-2], de 46 animais (44 fêmeas e 2 machos), ou seja, os animais que haviam sido separados pela Dra. [PES-5] aquando da vacinação em 14-09-2023 como pertencendo ao demandado face à lista manuscrita de números que havia sido fornecida pela demandante. Atendendo às declarações da testemunha [PES-9] e ao número constante das guias é provável que estas ovelhas correspondam àquelas que o demandado havia comprado a uma vizinha.

Em 10-11-2023, o demandado fez, pelo menos, duas operações no SNIRA que estão documentadas no processo: uma foi a consulta que revela a existência de 30 ovelhas cujo detentor é o demandado na exploração com a marca [Marca-1]; trata-se do documento de fls. 31, que o demandado juntou com a contestação. Esta consulta tem a hora de 12h27m.

Na mesma data, 10-11-2023, o demandado passou a guia referida no facto 22, correspondente à transferência para a demandante de 23 animais. Tal guia foi impressa às 12h14m. Sabemos (facto 26) que em 10-11-2023, o demandado tinha registadas no SNIRA, no seu nome de detentor e na exploração com marca [Marca-1], 54 animais às 11h31m, e 30 animais às 12h27m, todos, fêmeas. Atento o demais provado, estes 30 animais que o demandado manteve como detentor na exploração com a marca [Marca-1] reportam-se ao pagamento do trabalho do segundo ano e à diferença das 5 ovelhas não transmitidas relativas ao trabalho do primeiro ano (factos 11 e 12). O restante das ovelhas de que era detentor no SNIRA na indicada exploração foram transmitidas à demandada pela guia referida no facto 22, que é aquela que apresenta uma maior disparidade face à situação real encontrada na exploração quer na leitura de 30-11-2023 quer na leitura de 21-03-2024. Vejamos:

• em 30-11-2023 dos 18 animais que não se encontravam na exploração, 15 estão nesta guia, sendo que:

 quanto a 7, a última intervenção registada é a vacinação de Outubro de 2022, o que significa que estas 7 ovelhas não passaram já na leitura da colheita de sangue em Abril de 2023; quanto a estas, não podiam as mesmas figurar na listagem da colheita de sangue de Abril de 2023 e, portanto, não se encontravam na listagem entregue ao demandado e mulher que, segundo as suas declarações, serviu de base à passagem das guias. Tal significa que o demandado sabia – porque não podia deixar de saber – que estava a transmitir animais que já não se encontravam na exploração;

 quanto a 6, a última intervenção registada é o rastreio ao sangue de abril 2023, não havendo qualquer modo de saber ou controlar se as mesmas se encontravam na exploração em junho de 2023, quando o demandado saiu; e

 quanto a 1, a última intervenção registada é a vacinação de setembro de 2023, não se sabendo se estava lá no início de novembro quando o demandado passou as guias.

• Em 21-03-2024, a situação não é muito diferente, dado que não se encontravam na exploração 16 animais, sendo que desses 16:

 As mesmas 7 referidas no ponto anterior, que não passaram na vacinação de setembro de 2023 nem ao rastreio de sangue de abril de 2023, sendo a última intervenção registada a vacinação de outubro de 2022, ou seja, em data que é anterior à saída do demandado da exploração e as partes fizeram-nas constar nas guias do negócio, em novembro de 2022;

 6 passaram no rastreio ao sangue em abril de 2023 e não passaram na vacinação de setembro de 2023 – estavam na posse da demandante desde junho 2023

 2 passaram na vacinação de setembro de 2023 e não passaram nas leituras de novembro de 2023 e março de 2024 – estavam com a demandante

 1 passou na vacinação de setembro de 2023 e nas leituras de novembro de 2023 e março de 2024, mas não tem a orelha cortada, o que é novamente sintomático da já aludida discrepância entre o que existe registado no SNIRA e o que as partes dividiram mediante o critério do corte na orelha.

Face aos rastreios obrigatórios realizados e leituras efetuadas, é possível afirmar com relativa segurança que o demandado retransmitiu para a demandante através das guias em causa no processo, emitidas em 8 e 10-11-2023, 101 animais “digitais” sendo que na exploração, em 30-11-2023, existiam com orelha cortada 83 e, em 21-03-2024, existiam 73.

Dessas faltas, 7 ovelhas já não constavam daquelas que foram objecto do rastreio ao sangue em abril de 2023, pelo, quanto às mesmas dúvidas não há acerca do incumprimento pelo demandado das obrigações decorrentes de manter actualizado o seu registo de animais e emitir as guias de circulação correspondentes ao seu efectivo.

Quanto às demais ovelhas em falta, podem ter desaparecido ou morrido em qualquer altura depois desse rastreio, não sendo possível imputar a responsabilidade nem ao demandante nem à demandada, seja porque decorre dos riscos próprios do tipo de exploração em que é normal que ocorram desaparecimentos e mortes, o que significa também incumprimento das obrigações de comunicação ao SNIRA, seja porque o critério do corte na orelha se revelou ser impreciso, o que é uma circunstância que é imputável a ambas as partes, seja porque existiu um grande lapso temporal na passagem das guias já que entre Junho (quando ocorreu o rompimento da relação familiar e negocial) e Novembro, medeiam 4 meses, o que se mostra também em contravenção aos 7 dias que a lei prevê para a efetivação destas comunicações.

Não havendo coincidência entre o constante na guia e o constante na exploração, mas tendo o demandado passado as guias de circulação conforme estava obrigado, há cumprimento da obrigação, cumprimento esse que é tardio e inexato; há, pois, um cumprimento que é defeituoso.

Quanto a esta figura do cumprimento defeituoso, louvamo-nos no Ac. do STJ de 25-10-2012 em que, muito impressivamente, se sumariou

“II- Há, todavia, que distinguir atentamente a simples venda de coisa defeituosa, de outra figura mais ampla e, por isso, mais abrangente, que é a do cumprimento defeituoso da obrigação.

III- Acolhemo-nos à lição do saudoso e emérito civilista que foi o Prof. Antunes Varela, no seu douto Parecer, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda (a excepção do contrato não cumprido), onde o mesmo escreveu:

«Há venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no art. 913. ° do Código Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.

O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte.

E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito» [Antunes Varela, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda ( a excepção do contrato não cumprido), Parecer publicado na Col. Jur., ano XII ( 1987), T. 4, pg. 30]

IV- O artº 799º do Código Civil, como diz A. Varela, coloca o cumprimento defeituoso da obrigação ao lado da falta de cumprimento, dentro da categoria geral da falta culposa de cumprimento a que genericamente se refere o artº 798º do mesmo Código.

V- Não logrando o devedor ilidir a presunção de culpa contida no nº 1 do artº 799º do Código Civil, verifica-se o concurso de todos os pressupostos ou requisitos da sua responsabilidade contratual, na qualidade de devedor adstrito à obrigação de cumprir, nos termos explícitos no texto do acórdão ora sumariado.” (processo n.º 3362/05.TBVCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Dos ensinamentos citados decorre que há cumprimento defeituoso quanto a toda e qualquer obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte, portanto, proveniente de um acordo revogatório como é aqui o caso, e que se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito; ora, no caso, a prestação do demandado não correspondeu ao objecto da obrigação a que estava adstrito, porquanto os animais constantes das guias não correspondem aos animais existentes na exploração que o demandado se obrigou a devolver em virtude de terem as partes “desfeito” o negócio.

A consequência é a prevista no artigo 798.º, que prescreve que «O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor», impendendo sobre o devedor uma presunção de culpa tal como enunciado no artigo 799.º, presunção esta que o demandado não ilidiu, antes confirmou ao sustentar que procedeu à emissão das guias com base da lista da colheita de sangue realizada em Abril de 2023 quando nas guias constavam ovelhas que não tinham passado nesse rastreio.

Contudo, esta culpa do demandado no cumprimento defeituoso na obrigação a que estava obrigado não pode ser dissociada das demais circunstâncias apuradas nos autos e que apontam para outros fatores concorrentes que vieram agravar toda a situação: (i) o demandado saiu da exploração em Junho e a demandante ficou com a guarda dos animais, o que lhe impõe um dever jurídico de cuidado e vigilância, e, se bem que nada foi provado quanto à mesma ter omitido esses deveres (nem isso era do seu interesse porque a perda e desaparecimento das ovelhas implica um prejuízo para si), na normalidade das coisas, ovelhas há que terão desaparecido ou morrido depois do demandado ter saído da exploração; (ii) de qualquer modo, as mortes e desaparecimentos nas explorações deste tipo são consideradas normais, pelo que deverão constituir um risco normal da actividade que, em bom rigor, não pode ser assacado integralmente à demandante ou ao demandado, mas a ambos, (iii) o tempo decorrido entre todos os acontecimentos apurados é de forma a agravar o risco referido, seja o tempo decorrido desde que o negócio cessou os seus efeitos (Junho 2023), as guias foram passadas e não aceites (Novembro 2023), a acção foi proposta (Janeiro 2024), a par da intransigência demonstrada pelas partes durante o julgamento da causa que gorou todas as hipóteses de obter uma solução por acordo; e (iv) a própria incerteza do critério do corte da orelha utilizado pelas partes para diferenciar a divisão do rebanho; tudo são circunstâncias que não podem ser descuradas e devem ser também ponderadas, ao abrigo do princípio da boa-fé previsto no já citado artigo 762.º, n.º 2, que deve nortear as relações entre os contraentes, buscando-se deste modo o equilíbrio que é querido pela ordem jurídica.

Assim, face a todo o apurado e atendendo à situação apurada mais recente:

a) O demandado passou guias de circulação referentes a 101 ovelhas, faltando 3 ovelhas para as 104 que foi o número que as partes acordaram que estão em causa na acção, pelo que o demandado terá de passar uma guia com a transmissão desses animais para a demandante;

b) Das 101 ovelhas constantes das guias passadas pelo demandado, 73 estão na exploração, estando em falta 28; dessas 28, 7 já não estavam na exploração na colheita de sangue de 2023 e quanto a essas há culpa exclusiva do demandado pela sua não atualização no SNIRA, pelo que o mesmo terá de passar uma guia com a transmissão desses animais para a demandante;

c) Quanto às sobrantes, em 30-11-2023, não estavam na exploração 11 (18-7) e em 21-03-2024, não estavam na exploração 21 (28-7). Ponderando todas as circunstâncias já acima aludidas e que contribuíram para o agravamento da situação, não pode o demandado responder por todos os desaparecimentos e mortes, devendo o mesmo passar ainda para a demandante metade daquele número, ou seja, 10 ovelhas.

Assim, para cumprir integralmente a sua obrigação que resultou do negócio desfeito o demandado tem ainda de passar uma guia de circulação de 20 animais para a demandante, aceitando esta as guias de circulação que estão emitidas e integrando no seu registo digital todos os animais.

A solução assim gizada, impendendo sobre a demandante a aceitação das guias já emitidas, é aquela que se aproxima mais dos princípios que subjazem à existência de uma base de dados nacional de registo animal porque permite que os animais constantes das guias saiam do “limbo” onde estão há largos meses e permite também a correta atualização da base de dados, a realizar pela demandante, que é quem tem o domínio material das ovelhas e das circunstâncias que lhe permitem aferir com precisão quais os animais que estão na exploração e conformar a situação real à base de dados. Tal circunstância possibilitará também a intervenção sanitária que é premente fazer. Já os prejuízos derivados de toda a situação, a terem existido, não podem ser computados nesta sede por falta de dados e alegação para o efeito, devendo ser aferidos e determinados noutra acção ou, como seria louvável, por acordo entre as partes.

Em consequência e em obediência aos limites qualitativos (anulação, substituição ou emissão de guias de circulação de ovinos no SNIRA) e aos limites quantitativos (104 ovelhas) previstos no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, profere-se decisão que implica a aceitação das guias já emitidas por parte da demandante e passagem de uma guia de circulação do demandado que passe do detentor [PES-3] para o detentor [PES-1], 20 ovelhas, daqui resultando que, face ao negócio celebrado e desfeito, a demandante não vai ter reintegradas no seu detentor na base de dados do SNIRA as 104 ovelhas que peticionava, mas sim 93 ovelhas, pelo que a sua pretensão procede parcialmente.

III. Dispositivo
Em face de todo o exposto e com fundamento nas normas jurídicas indicadas, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condeno o demandado [PES-3] a manter no SNIRA as guias já emitidas em 08-11-2023 e 10-11-2023, a fim de as mesmas serem aceites e submetidas pela demandante [PES-1];

b) Condeno o demandado [PES-3] a emitir uma guia de circulação no SNIRA, através da qual, na exploração com a marca [Marca-1], que corresponde ao [...], em [...], passe do detentor [PES-3] para o detentor [PES-1], 20 ovelhas.

Custas:
As custas no montante de €70 (setenta euros) são da responsabilidade da demandante e do demandado, na proporção de 10% para a demandante, no montante de €7 (sete euros) e 90% para o demandado, no montante de €63 (sessenta e três euros), sendo ambas as partes declaradas vencidas, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do CPC e na parte final da al. b) do n.º 1 do artigo 2.º da Portaria n.º 342/2019, de 1 de Outubro.
Este pagamento deverá ser efetuado no prazo de 3 dias úteis mediante Documento Único de Cobrança a emitir e remeter às partes conjuntamente com a notificação da presente sentença. O não pagamento determina a aplicação de uma sobretaxa de 10€ por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação, não podendo o montante global da mesma exceder, em qualquer caso, o valor de 140€ (n.º 4 do artigo 3.º da Portaria citada). Se, ainda assim, persistir o incumprimento é enviada certidão da dívida à Autoridade Tributária e Aduaneira para efeitos de execução fiscal (Lei n.º 27/2019, de 28 de março).


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Registe e notifique – artigo 60.º, n.º 2 da LJP.

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Comunique a presente sentença à [ORG-1], na qualidade de entidade protocolada e integrada na rede nacional de postos do SNIRA.


Julgado de Paz de Castro Verde, em 05-06-2024

A Juíza de Paz