Sentença de Julgado de Paz
Processo: 40/2008-JP
Relator: MARTA NOGUEIRA
Descritores: CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES
Data da sentença: 11/17/2008
Julgado de Paz de : VILA NOVA DE POIARES
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

(arts. 26.º, n.º 1 e 57.º da Lei n.º 78/2001, de 13-07 – LJP)
Identificação das partes

Demandante: A

Demandado: B

Objecto do Litígio

A demandante veio intentar a presente acção, consubstanciada no cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva (art. 9.º, n.º 1, alínea a) da LJP), alegando para o efeito e em síntese, que se dedica ao fabrico e comercialização de mobiliário, e que, no exercício dessa sua actividade, instalou na residência do Demandado as peças de mobiliário constantes nas facturas nºs 4574, 4640 e 4703, datadas respectivamente de 02/05/2005, 08/06/2005, 07/07/2005, todas com vencimento na data da sua emissão, tudo no valor de € 465,41 (quatrocentos e sessenta e cinco euros e quarenta e um cêntimos). Alega que o material fornecido foi colocado à disposição da demandada na data da emissão das facturas.

A demandante já reclamou a dívida no montante de € 465,41 (quatrocentos e sessenta e cinco euros e quarenta e um cêntimos), mas até à presente data, o demandado, apesar de interpelado para o efeito, nada pagou.

Termina pedindo a procedência da acção e a condenação do demandado no pagamento do valor em divida, € 520,85 (quinhentos e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos), já acrescido de juros de mora vencidos até à data da propositura da acção, e ainda os vincendos a partir da data da citação, à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento, bem como as custas do processo.

Devidamente citada, contestou o demandado, deduzindo excepção de incompetência material, prescrição e reconvenção.

A demandante, apesar de notificada da contestação, não respondeu ao pedido reconvencional formulado.

Tendo em consideração as excepções deduzidas, cumpre apreciar e decidir.

Da excepção de incompetência material

"A fundamentação que segue, em resposta à excepção de incompetência material, é transcrição da sentença do Julgado de Paz de Coimbra de 28-06-2007: Processo n.º 49/2007 - JPCBR - Dionisio Campos, in www.dgsi.pt"

Veio o demandado, através da sua mandatária, contestar excepcionando a incompetência territorial do Julgado de Paz para a apreciação e decisão da presente acção, com fundamento em que a alínea a) do n.º 1 do art. 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (LJP) exclui da competência dos Julgados de Paz as acções em que se peça o cumprimento de obrigações pecuniárias quando o titular originário seja uma pessoa colectiva.

A incompetência em razão da matéria, a proceder, constitui uma excepção dilatória que obsta a que o Julgado de Paz conheça do mérito da causa, e implica, em consequência, a remessa do processo para o tribunal judicial competente (art. 7º LJP).

Assim, e no sentido de responder fundamentadamente à excepção deduzida pela demandada, cumpre interpretar a segunda parte da alínea a) do n.º 1 do art. 9º LJP, nomeadamente quanto ao sentido e alcance dos efeitos da exclusão aí consignada.

A demandante é uma pessoa colectiva (micro-empresa familiar), titular originária do crédito, pede agora a condenação da demandada no pedido, que tem por objecto uma prestação pecuniária.

A demandante estruturou a sua acção, alegando, em suma, que forneceu à demandada pneus, bem como lhe terá prestado vários serviços, que resultaram na emissão de seis (6) Facturas, que a demandada não pagou, razão pela qual vem, com fundamento no incumprimento contratual, pedir a condenação desta nessa prestação.

De acordo com o art. 405º e segs. do Código Civil (CC), os contratos constituem fontes de obrigações, que originam, no caso da compra e venda, obrigações recíprocas para com os contraentes: o vendedor tem a obrigação de entregar a coisa ao comprador, e este tem a obrigação de pagar o preço convencionado no prazo estabelecido ao vendedor, transmitindo-se a propriedade dos bens por mero efeito do contrato (arts. 874º, 879º e 885º CC). Caso exista incumprimento por parte do devedor, a obrigação em falta (ou seja, o pagamento do preço) é, a maioria das vezes, uma obrigação pecuniária (art. 550º CC), que confere ao credor o direito ao cumprimento coercivo da prestação em falta, nomeadamente através do recurso ao direito de acção (arts. 886º e 817º CC).

A situação jurídica apresentada teve como fundamento o incumprimento contratual por parte da demandada, o que levou a que, ao ser recepcionada, a acção tivesse sido enquadrada (com base no seu objecto) na alínea i) do n.º 1 do art. 9º LJP (“incumprimento contratual”), e como tal registada, e não na alínea a) do mesmo preceito (“cumprimento de obrigações”).

De facto, ao ser proposta uma acção no Julgado de Paz, a mesma é, como não poderia deixar de ser, enquadrada numa das várias alíneas dos n.ºs 1 ou 2 do art. 9º LJP, de acordo com a natureza seu objecto, e, de seguida, registada na aplicação informática disponibilizada pelo Ministério da Justiça para o registo e produção dos requerimentos iniciais. O registo da acção não coloca automaticamente, embora assim fosse desejável, a menção do referido enquadramento no próprio requerimento inicial, o que origina o desconhecimento das partes, nomeadamente do demandado, quanto a esse mesmo enquadramento.

No entanto, tal deficiência informática não afecta a substância da situação jurídico-processual em crise, tal como não afecta os direitos e garantias das partes. Desta forma, e em relação ao caso sub judice, o enquadramento dado à acção é o correcto.

Dispõe o art. 9º n.º 1 LJP que: “Os Julgados de Paz são competentes para apreciar e decidir: a) acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido titular originário uma pessoa colectiva; (…)”.

No entanto, não podemos deixar de referir que, além do plasmado na alínea a), outras do mesmo n.º 1 do art. 9º respeitam a acções em que podem ser demandantes pessoas colectivas ou equiparadas, credores de obrigações pecuniárias traduzidas num pedido; e que também estas alíneas contêm em si mesmas excepções, mas não a da alínea a).

É o caso das alíneas c) (direitos e deveres dos condóminos), g) (arrendamento urbano), h) (responsabilidade civil) e i) (incumprimento contratual).

A interpretação da excepção consagrada na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do art. 9º LJP tem merecido a atenção da doutrina, distinguindo-se duas posições distintas:

Por um lado, a posição de J. O. Cardona Ferreira, que tem considerado o carácter cumulativo das locuções da excepção em causa, admitindo a exclusão da competência dos Julgados de Paz no que se refere às acções que se destinem a efectivar o cumprimento de obrigações pecuniárias e de que seja ou tenha sido titular originário uma pessoa colectiva – “A alínea a) não significa que as pessoas colectivas não possam ser partes nos Julgados de Paz. Não podem é entupi-los com questões pecuniárias, o que nada teria a ver com a razão humanista dos Julgados de Paz; para as questões pecuniárias invocáveis pelas pessoas colectivas existem os Tribunais Judiciais e, principalmente, o regime de injunção (…).” (J. O. Cardona Ferreira, “Julgados de Paz – Organização, Competência e Funcionamento”, 2001, pp. 29-30).

Por outro lado, a posição de Joel Timóteo Ramos Pereira, que tem defendido o carácter nominativo dos elementos que consubstanciam a exclusão, o que conduz a duas excepções autónomas. Assim, exclui da competência material dos Julgados de Paz todas as acções que, destinando-se a efectivar o cumprimento de obrigações, tenham por objecto prestação pecuniária e/ou todas as acções que, destinando-se a efectivar o cumprimento de obrigações, tenham por credor originário uma pessoa colectiva. (Joel Timóteo Ramos Pereira, “Julgados de Paz – Organização, Trâmites e Formulários”, 3ª ed., 2005, pp. 62-64).

A jurisprudência tem-se debruçado também sobre esta questão, tomando, também ela, posições não coincidentes.

Por um lado, o Ac. STJ de 05-07-2005 (em CJ-STJ, ano XIII/2005, tomo 2, pp. 154-155), defende que “nas acções para cobrança de dívidas das pessoas colectivas, tendo em conta que estas não visam o lucro económico, não há lugar à justa composição dos litígios por acordo das partes, pelo que seria um contra-senso incluí-las na competência material dos Julgados de Paz (art. 157º CC); e, se as mesmas acções (com causa de pedir complexa) forem também enquadráveis na alínea h), deve esta ser interpretada de forma a harmonizá-la com aquela exclusão da alínea a)”. No mesmo sentido, o Ac. RP de 14-11-2006 (em www.dgsi.pt) refere que existiu da parte do legislador a preocupação de excluir, de forma explícita, da competência dos Julgados de Paz o conhecimento das acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações pecuniárias quando a entidade credora seja uma pessoa colectiva (no sentido de pessoa moral) que por natureza não prossiga o lucro (por exemplo, associações que não visem especificamente e como objectivo principal o lucro económico dos associados, fundações de interesse social, instituições públicas que não visem o lucro económico, ou instituições particulares de solidariedade social). Para estes casos em que o credor seja pessoa colectiva no sentido de pessoa moral e em que a obrigação que se pretende efectivar tenha valor pecuniário determinado, que não se enquadre no lucro económico dos associados, vale a norma excepcional, até “(…) pelo facto de não ser necessário inundar os Juízos de Paz com acções cuja perspectiva de litígio não tenham assentado em lucro económico ou cuja solução para ser justa, não exija, por via de regra, transacção ou acordo das partes.”

Por outro lado, no sentido oposto, da não extensão dos efeitos da exclusão da alínea a) a todos os outros casos da competência dos Julgados de Paz, designadamente às acções de responsabilidade civil da alínea h), quando propostas por pessoas colectivas, cfr. Ac. RP de 21-02-2005 e Acs. RL de 18-05-2006 e de 29-06-2006 (em www.dgsi.pt).

Das duas posições enunciadas, a explanada por J. O. Cardona Ferreira parece ser a mais razoável e a que tem tido mais acolhimento, inclusive por parte da jurisprudência. No entanto, ao privilegiar a análise do elemento literal, em detrimento das consequências que decorrem dos elementos sistemático e teleológico, impossibilita considerações que se poderiam afigurar decisivas. O mesmo autor reconhece a necessidade de “revisão, a meu ver, num sentido menos abrangente porque nada, creio, justifica que pessoas colectivas sem objecto lucrativo (filantrópicas, desportivas, etc.) ou mesmo micro-empresas, designadamente do tipo familiar, não possam ser utentes activos destes sistemas de justiça, de jure constituendo, mesmo no âmbito daquele normativo”. (J. O. Cardona Ferreira, “Justiça de Paz, Julgados de Paz, Abordagem numa perspectiva de Justiça/Ética/Paz/Sistemas/Historicidade”, 2005, p. 59, nota 89).

É nosso entendimento, no entanto, que é necessário ir mais além do elemento literal para alcançar o real sentido desta norma, e considerar como determinante o elemento teleológico comummente fixado que não se encontra revelado adequadamente na linguística da norma.

Por seu lado, a posição manifestada por Joel Timóteo Ramos Pereira faz incidir a interpretação desta norma apenas e só no elemento gramatical, o que traria como consequência a não competência dos Julgados de Paz para julgar acções que tivessem por objecto prestação pecuniária, quer interpostas por pessoas singulares, quer por pessoas colectivas. Isso seria o mesmo que esvaziar de conteúdo grande parte do n.º 1 do art. 9º LJP, e, consequentemente acarretaria a sua inutilidade prática, bem como a dos próprios Julgados de Paz.

Não cremos, pois, que esta posição possa ter acolhimento.

Não podemos, ainda, deixar de reflectir sobre a conjugação da referida alínea a) do n.º 1 do art. 9º LJP com o art. 9º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi art. 63º LJP. De acordo com este preceito do CPC, a capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo, e tem por base e por medida a capacidade para o exercício de direitos. Ora, conjugando esta alínea a) com o art. 9º CPC, não podemos deixar de concluir que a dicotomia pessoas singulares/pessoas colectivas configura uma discriminação e uma diminuição da capacidade judiciária para as pessoas colectivas, agravada ainda mais se se estenderem os efeitos daquela exclusão às matérias das restantes alíneas. Além de que não podemos deixar de considerar a existência de um preceito na LJP (art. 37º), segundo o qual “nos processos instaurados nos julgados de paz, podem ser partes pessoas singulares, com capacidade judiciária, ou colectivas, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 9º”.

Esta discriminação entre pessoas singulares e colectivas é inaceitável, não só porque ofende o princípio do equilíbrio processual, na medida em que uma pessoa colectiva pode ser demandada mas não pode demandar em acções com o mesmo objecto, mas também porque ofende os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, de que também são titulares as pessoas colectivas, uma vez que tal exclusão se baseia num critério subjectivo para desvalorizar (excluir) certos sujeitos processuais, discriminando-os em função da sua personalidade singular ou colectiva.

Os princípios constitucionais da universalidade, da igualdade e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (arts. 12º, 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa) são compatíveis, como não poderiam deixar de o ser, com a personalidade colectiva, e as leis de organização e procedimentos dos julgados de paz devem conformar-se com o respeito por tais princípios, o que não sucede, de todo, com a segunda parte da alínea a) do n.º 1 do art. 9º LJP e a parte final do art. 37º LJP, se os mesmos forem interpretados, apenas, à luz do seu elemento literal.

Não podemos, igualmente, deixar de analisar a noção de “litigância de massa” e do contrato que lhe está subjacente. Só assim será possível interpretar a norma em causa e só assim também será possível harmonizá-la com o espírito do projecto legislativo dos Julgados de Paz.

A “litigância de massa” é um fenómeno da sociedade de consumo em que vivemos. Decorre da oferta em massa de bens e serviços através de contratos de adesão, mais concretamente do seu incumprimento.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, de uma forma consensual, identificam como intenção do projecto Julgados de Paz a retirada dos mesmos da “litigância de massa”. O objectivo é não os inundar com as acções das grandes empresas de serviços. Acresce que, sob o ponto de vista contratual, estas empresas pouco, para não dizer nenhum, contacto pessoal têm com os seus clientes, o que redunda num distanciamento e impessoalidade que não são apanágio dos julgados de paz, que visam promover uma justiça de proximidade, de acordo com os seus princípios estruturantes fundamentais (art. 2º LJP).

“A alínea a) (do art. 9.º n.º 1 LJP) não significa que as pessoas colectivas não possam ser partes nos Julgados de Paz. Não podem é entupi-los com questões pecuniárias, o que nada teria a ver com a razão humanista dos Julgados de Paz.” (J. O. Cardona Ferreira, “Julgados de Paz – Organização, Competência e Funcionamento”, 2001, pp. 29-30).

No mesmo sentido, Lúcia Dias Vargas, “a intenção desta excepção foi a de prevenir a “colonização” dos Julgados de Paz por parte das entidades que constituem os clientes mais assíduos dos tribunais judiciais, isto é, as empresas que propõem acções de cobrança.” (“Julgados de Paz e Mediação, uma nova face da justiça”, 2006, p. 125)

Ora, foi precisamente este tipo de litigiosidade que o legislador dos julgados de paz quis afastar. Caso contrário, estes ficariam ab initio entupidos, não podendo desempenhar cabalmente a função para a qual foram, de facto, (re)criados – a justiça de proximidade como forma de alcançar uma mais efectiva pacificação social.

A jurisprudência também tem sido consensual a este respeito. Num acórdão uniformizador de jurisprudência quanto à questão da exclusividade, dá expressamente como pacífica essa mens legislatoris“sabe-se que a referida proibição de accionamento nos julgados de paz por parte das pessoas colectiva lato sensu foi motivada pela ideia de não congestionar o funcionamento dos julgados de paz com os chamados procedimentos de massa”, o mesmo sucedendo com o voto de vencido nele consignado.

Também não se alcança como uma acção (que não das que se possam integrar na noção de “litigância de massa”) só pelo facto de ser proposta por pessoa colectiva (micro-empresas, sociedades unipessoais ou entidades sem fins lucrativos) tenha por efeito necessário a impossibilidade de se realizar uma justa composição desse litígio por acordo das partes.

“A litigância de massa, a litigância de pequenas dívidas é o produto directo da sociedade de consumo em que vivemos (…) de uma realidade sociológica de desenvolvimento económico – de bem estar.” (cfr. Mariana França Gouveia, “Regime Processual Experimental”, 2006, pp. 27-28, e “A Acção Especial de Litigância de Massas”, in “Novas Exigências do Processo Civil”, 2007, pp. 137-140, e 151-152). O fenómeno social específico da litigância em/de massa continua a acentuar-se, e já fez com que fosse apelidada de litigiosidade própria do século XXI. Esta caracteriza-se pela repetição em larga escala (milhares) de acções (do mesmo tipo) de baixo valor propostas por empresas de serviços (grandes litigantes/habituais) para cobrança de dívidas, como é o caso das seguradoras, operadoras de telecomunicações, financeiras de crédito ao consumo, etc.

Este é também o entendimento da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 05 de Maio, que considera que o grande número de acções decorrentes de incumprimento contratual é consequência de uma sociedade de consumo de massa, e que esses milhares de acções, que se enquadram na ideia de “litigância de massa”, têm por base a cobrança de dívidas por serviços resultantes de contratos de adesão.

Por isso, há muito que está identificada a fonte contratual desta litigiosidade de baixa intensidade, que desde há mais de uma década vem “entupindo” os tribunais judiciais – Contrato de adesão.

“Contrato de adesão – é aquele em que um dos contraentes – o cliente, o consumidor – não tendo a menor participação na preparação e redacção das respectivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado.” (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª ed., 2000, pp. 252-253)

É nosso entendimento que o legislador sabia o que queria quando redigiu a segunda parte da alínea a) do n.º 1 do art. 9º LJP. Queria prevenir que a litigância de massa entupisse os Julgados de Paz.

A expressão “litigância de massa” surge na doutrina e na jurisprudência com alguma frequência, sem no entanto ter uma definição precisa. Entendemos que são 4 os elementos que a compõem: 1) a repetição em grande escala (em massa) de acções do mesmo tipo; 2) propostas por empresas grandes litigantes/habituais de venda de bens e de prestação de serviços (seguradoras, operadoras de telecomunicações, financeiras, designadamente de crédito ao consumo, fornecedoras de água, gás e electricidade, etc.; 3) terem essas acções por objecto a cobrança de dívidas ( a maioria de baixo valor); e 4) serem essas dívidas resultantes de contratos de adesão.

Ora, atento o exposto, e atendendo a que a alínea a) do n.º 1 do art. 9º LJP é uma norma processual que na sua segunda parte apresenta desvios aos princípios gerais, deve a excepção contida nesta segunda parte ser interpretada restritivamente no sentido de que os julgados de paz não são competentes para apreciar e decidir acções que se integrem na noção de “litigância de massa”.

Assim, respeita-se a mens legislatoris consensualmente reconhecida e evita-se a discriminação processual fundada no tipo de personalidade do sujeito passivo.

Face a tudo o que antecede, e atendendo a que na presente acção não se verifica a existência de nenhum dos elementos que integram a noção de “litigância de massa”, aquela que o legislador verdadeiramente quis subtrair da competência dos julgados de paz na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do art. 9º da LJP, julga-se improcedente a deduzida excepção de incompetência material do julgado de paz e, em consequência, cumpre conhecer do mérito da causa.

O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objecto, do território e do valor.

O processo não enferma de nulidades que o invalidem na totalidade.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.

Não se verificam quaisquer outras excepções ou nulidades de que cumpra conhecer.

FUNDAMENTAÇÃO

Com base nos autos, nos documentos apresentados, que se tiveram em atenção e se dão por reproduzidos, e na prova testemunhal produzida, consideram-se provados e relevantes para o exame e decisão da causa os seguintes factos:

- A demandante dedica-se ao fabrico e comercialização de mobiliário;

- A demandante no exercício da sua actividade instalou na residência do demandado peças de mobiliário;

- Foram emitidas as Facturas n.ºs 4574, 4640 e 4703, datadas respectivamente de 02/05/2005, 08/06/2005 e 07/07/2005;

- As facturas tinham vencimento na data da sua emissão;

- A demandante reclamou a dívida no montante de € 465,41 (quatrocentos e sessenta e cinco euros e quarenta e um cêntimos);

- O demandado recebeu a carta junta aos autos sob o doc. 4;

- O demandado, apesar dessa carta, não contactou a demandante para saber do que se tratava;

- O C apresentou-se como colaborador da demandante;

- O demandado almoçou com o C e com o D, sócio e gerente da demandante;

- O D esteve em casa do demandado a tirar medidas para o mobiliário da cozinha;

- O demandado não teve dúvidas de que o D era o “patrão” do C;

- O C fez um desconto de 20% ao demandado no que respeita ao fornecimento da mobília de cozinha;

- Dos dois orçamentos apresentados foi aceite o 2º orçamento (doc. 3 junto com a contestação);

- Este desconto de 20% foi autorizado pela demandante;

- A factura n.º 4455, datada de 07.01.2005, no montante de € 3.187,30 (três mil centos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos) encontra-se paga e diz respeito ao fornecimento da cozinha (doc. 5 junto com a contestação);

- O demandado emitiu um cheque, no dia 02.03.2005, no valor de € 4.000,00 (quatro mil euros) a favor de C;

- Foi feito um depósito de € 3.187,30 (três mil centos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos) na conta bancária da demandante;

- As facturas ora reclamadas têm a data de 02.05.2005, 08.06.2005 e 07.07.2005;

- Não se sabe onde foi depositado o remanescente do cheque de € 4.000,00, subtraindo o valor de € 3.187,30 depositado na conta da demandante, ou seja a quantia de € 812,70 (oitocentos e doze euros e setenta cêntimos);

- A mobília de cozinha foi entregue no dia 10.01.2005, conforme guia de remessa n.º 5794, junta aos autos na primeira sessão da audiência de julgamento;

- Posteriormente foram pedidos os materiais constantes das facturas nºs 4574, 4640 e 4703;

- Esses mesmos materiais foram entregues na morada do cliente a 03.05.2005, 09.06.2005 e 07.07.2005, conforme guias de remessa nºs 5925, 5996 e 6064, juntas aos autos na primeira sessão da audiência de julgamento;

- Não foi a primeira vez que o Co recebeu dinheiro dos clientes;

- Foi o C que instalou a cozinha na residência do demandado;

- O demandado reconhece o fornecimento do material constante das facturas nºs 004574, 004640 e 004703;

- O demandado não pagou a quantia peticionada e constante das facturas supra referidas.

Não se provou:

- O pagamento das facturas nºs 004574, 004640 e 004703;

- Que o C tenha pedido ao demandado que lhe desse um cheque no valor de € 4.000,00 para pagamento do mobiliário e da colocação e que depois fariam contas e lhe devolveria o que teria sido pago em excesso;

- Que o C nunca tenha contactado o demandado para fazer os acertos;

- Que o fornecimento e a colocação do mobiliário de cozinha tenha sido feito duma só vez;

- Que o demandado tenha pago tudo à demandante;

- Que o cheque emitido pelo demandado no dia 02.03.2005 no valor de € 4.000,00 incluía as facturas nºs 004574, 004640 e 004703, datadas, respectivamente, de 02.05.2005, 08.06.2005 e 07.07.2005, todas no valor global de € 465,41.

Para fixação dos factos dados por provados concorreram os depoimentos testemunhais e os documentos juntos aos autos. Quanto aos depoimentos das testemunhas apresentadas é de referir que os mesmos mereceram a credibilidade do tribunal, por as mesmas terem deposto de modo imparcial e credível, demonstrando ter conhecimento directo e pessoal da factualidade sobre a qual depunham.

Tendo em consideração a excepção da prescrição presuntiva invocada pela demandada, cumpre apreciar e decidir.

Da excepção da prescrição presuntiva

O demandado invoca também na sua contestação a prescrição do crédito detido pela demandante, alegando, em suma, que tudo pagou à demandante e nada lhe deve.

O fundamento deste instituto jurídico radica na “negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular), indigno de protecção jurídica (dormientibus non sucurrit ius)” (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 7ª reimpressão, Almedina, 1987, p. 445).

Esta matéria encontra-se regulada no Código Civil Português nos arts. 298º e 300º a 327º, sendo evidente a dicotomia criada entre prescrições extintivas (arts. 309º a 311º CC) e presuntivas (arts. 312º a 317º CC). Estas últimas não produzem, ao contrário das anteriores, “a extinção do direito, dando lugar apenas a uma presunção de cumprimento, que pode ser ilidida, embora só pelo meio previsto no art. 313º CC”, tendo como ratio “a presunção de cumprimento de obrigações, nascidas de relações da vida quotidiana, cujo pagamento costuma ocorrer sem demora” – Rodrigues Bastos, ob. cit., pp. 76 e 77.

A ratio legis da prescrição presuntiva assenta no facto de se tratar de créditos normalmente exigidos a curto prazo e prontamente satisfeitos pelo devedor, que, muitas vezes, nem sequer exige recibo, ou não o guarda. É normal o consumidor comum, não comerciante, não ter um arquivo para este tipo de documentos quando relacionados com a aquisição de objectos de consumo quotidiano. Por outro lado, já não é razoável que o comerciante não faça contas a tudo o que se relacione com a sua actividade comercial e, nessa medida, não tenha as suas pastas onde arquiva tudo o que tem de entrar nas suas contas, para apurar o lucro, que é, no fim de contas, tudo o que daí retira. Já se compreenderá que o não faça em relação aos seus consumos pessoais. E é aqui que está a diferença. A prescrição presuntiva de curto prazo protege o consumidor comum. A sua inaplicabilidade entre comerciantes protege o seu comércio. Sendo esta a ideia base, então há-de ter-se em conta tudo o que se prende com a actividade comercial do comerciante; ou seja, não só a aquisição de produtos para revenda, ou transformação e venda, no âmbito da sua actividade, mas para tudo o que com ela esteja intimamente conexo. Não se vê porque razão se há-de fazer uma interpretação restritiva da lei de modo a só incluir o débito do comerciante pela aquisição de produtos que destina a revenda e não já os que destina ao suporte dessa mesma actividade e sem os quais ela não seria possível, designadamente as instalações, máquinas, material de escritório, viaturas, etc. Comprar um veículo comercial para o exercício do comércio não é o mesmo que comprar um automóvel para uso pessoal e familiar. Daí a diferença.

Acresce que, no caso em apreço, o demandado alegou que não é devedor das facturas juntas aos presentes autos sob os docs. 1, 2 e 3, alegando que as mesmas há muito foram pagas. Ou seja, usou de um meio de defesa (presunção de pagamento), que está em contraste com a presunção de cumprimento. Para poder beneficiar dessa presunção de cumprimento deveria, em sede de contestação, limitar-se a deduzir essa excepção. O demandado, na sua contestação, o que faz é impugnar a existência do crédito, alegando ter procedido à satisfação do mesmo, estando, dessa forma a alegar um facto que é manifestamente incompatível com a presunção de cumprimento invocada (Ac. RL de 29-06-2000, in www.dgsi.pt).

Por isso, nestas prescrições, o decurso do termo estabelecido por lei não produz, como nas outras prescrições (cfr. art. 304º CC), a extinção do direito, dando lugar apenas a uma presunção de cumprimento, que pode ser ilidida, embora só pelo meio previsto no art. 313º CC. Admite-se, portanto, para afastar a presunção de cumprimento, quer a confissão judicial, quer a extrajudicial (cit. art. 313º nºs 1 e 2 CC), podendo a confissão judicial ser expressa ou tácita. “A primeira consiste em o devedor declarar que não pagou; a segunda deduz-se de certos comportamentos que o devedor tome em juízo e que não se mostrem compatíveis com a prescrição” (art. 314º CC). Consagra-se expressamente, neste preceito, a orientação segundo a qual, desde que a prescrição presuntiva se baseia na presunção de pagamento, existe uma incompatibilidade lógica na posição do devedor que, negando, por ex., a existência do débito, invoca, no entanto, a prescrição presuntiva.

Além do mais, resultou provado, pelas declarações do demandado, que o mesmo não pagou as facturas ora em crise, o que desde logo afasta a presunção de cumprimento, nos termos do preceituado nos arts. 313º nºs 1 e 2 CC.

Por todo o exposto, improcede, pois, a invocada excepção peremptória da prescrição presuntiva de dois anos (presunção de cumprimento) invocada pelo demandado. Ou seja, não existe a favor do demandado qualquer presunção de cumprimento, não existindo a favor dele também qualquer inversão do ónus da prova (art. 344º n.º 1 CC). Antes cabe-lhe a ele o ónus da prova de que pagou à demandante as facturas vencidas (art. 342º n.º 2 CC).

Assim, e face ao exposto e porque não se verificam os pressupostos previstos naquele preceito legal, não se verifica a prescrição presuntiva tal como foi invocada, redundando por isso na improcedência da excepção, o que se declara.

Do pedido reconvencional formulado pelo Demandado

Vem o demandado, na sua contestação, deduzir contra a demandante pedido reconvencional no valor de € 812,70, alegando, para o efeito e em síntese, que pagou a quantia de € 4.000,00, quando o valor da factura foi de € 3.187,30, resultando a seu favor um crédito sobre a demandante no montante de € 812,70, valor que então reclama. Dúvidas houvesse quanto à qualificação deste pedido e sempre responderíamos que, tendo o demandado somado ao valor peticionado pela demandante este valor, à semelhança do disposto no art. 308º CPC., estas ficariam desde já esclarecidas.

Ora, diz o art. 48º LJP que “1 – Não se admite reconvenção, excepto quando o demandado se propõe obter compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida.”

No caso em apreço, temos um pedido da demandante no valor de € 520,85 e um pedido do demandado no valor de € 812,70.

Vejamos então se o pedido do demandado é legalmente possível e admissível.

Tendo em consideração que o mesmo deduziu pedido reconvencional, resta-nos saber se está preenchida uma das situações prescritas no art. 48º n.º 1 da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (LJP), ou seja, a obtenção de compensação de créditos, uma vez que não está em causa a efectivação do direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega é pedida.

Ora, diz o art. 847º CC, relativo à compensação, que “1 – Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos: a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.”

Resulta claro que foram considerados provados, entre outros, os seguintes factos:

a) O demandado emitiu um cheque de € 4.000,00 à ordem do C;

b) A demandante apenas viu depositada na sua conta bancária a quantia de € 3.187,30, para pagamento da factura n.º 004455, emitida em 07-01-2005;

c) Não se sabe onde sabe onde foi depositada a quantia de € 812,70, que corresponde ao remanescente dos € 4.000,00 – € 3.187,30;

d) As facturas cujo pagamento é reclamado pela demandante foram emitidas após a emissão do cheque à ordem do C.

De uma forma simplista e resumida podemos, pois, dizer que a demandante é credora do demandado (emitiu as facturas 004574, 004640 e 004703 que, alegadamente não se encontram pagas), e que este não é credor da demandante, uma vez que, contrariamente ao alegado por si, não conseguiu provar que o cheque dos € 4.000,00 foi emitido para proceder ao pagamento da factura n.º 004455 e das restantes 3 facturas agora reclamadas pela demandante (facturas nºs 004574, 004640 e 004703), pois que estas últimas foram emitidas cerca de 2 meses após a emissão do supra citado cheque.

“À cabeça dos requisitos figura então a reciprocidade dos créditos, logo destacada no começo do art. 847º CC. Assim, para que possa livrar-se da sua dívida por compensação, é essencial que o devedor seja, por outro lado, credor do seu credor. O crédito com o qual o declarante extingue a sua dívida é o chamado crédito activo. É com ele que o devedor opera a extinção da sua dívida. Chama-se crédito passivo àquele contra o qual a compensação opera.” – cfr. Das obrigações em geral, João de Matos Antunes Varela, Vol. II, 5ª Ed., Almedina, pág. 198.

O art. 851º CC trata de forma mais incisiva este requisito nos dois sentidos em que a reciprocidade interessa à compensação. Por um lado, o n.º 1 do art. 851º CC afirma que a compensação apenas pode abranger a dívida do declarante e não a de terceiro, afastando-se assim do âmbito da compensação as dívidas de terceiro ao declaratário. Por outro lado, o seu n.º 2 afirma que o devedor só pode livrar-se da obrigação utilizando créditos seus, e não de terceiro. Pretende-se deste modo afastar concretamente a possibilidade de o devedor se livrar da obrigação, mediante a invocação de um crédito seu, não contra o credor dessa obrigação, mas contra uma pessoa ligada por certa relação jurídica a este credor.

O demandado alega na sua contestação que nunca teve com a demandante qualquer contacto directo, embora tenha sido a demandante que fabricou os móveis da sua cozinha, afirmando também que apenas contactou com o colaborador e representante da demandante, C, sendo este que estabelecia os contactos necessários com a demandante. No entanto, da factualidade dada como provada, resultou claro que o demandado almoçou com o sócio e gerente da demandante, D, e com o C, e que foi também o D que foi a sua casa tirar as medidas para os móveis da cozinha. De igual forma, também foi dado como provado que o demandado não teve dúvidas da relação existente entre o sócio e gerente da demandante e o C, tendo considerado que este último era “trabalhador / colaborador / comissionista” e que o sócio e gerente da demandante era o “patrão”.

À luz desta situação concreta não podemos deixar de analisar o regime jurídico do mandato, constante dos arts. 1157º e segs. CC, para aferir da titularidade da alegada dívida da demandante para com o demandado.

Diz o supra referido preceito que “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.”

Normalmente os actos praticados pelo mandatário, em consequência do mandato, são negócios jurídicos. Ora, no caso em apreço, o mandatário (C) obrigou-se perante a (de)mandante a vender as cozinhas fabricadas por si, recebendo como contrapartida uma comissão por cada cozinha vendida. Tratava-se, por isso, de um mandato oneroso, nos termos do art. 1158º n.º 1 CC. Por sua vez o n.º 2 acrescenta que, no caso de o mandato ser oneroso, a medida da retribuição, não havendo ajuste entre as partes, é determinada pelas tarifas profissionais e, na falta destas, pelos usos, e na falta destes e daquelas, por juízos de equidade. No caso concreto, (de)mandante e mandatário ajustaram que este último receberia uma comissão por cada mobília que vendesse e que a mesma seria paga aquando do efectivo pagamento das facturas pelos clientes.

Por sua vez os arts. 1161º e 1167º CC estipulam, respectivamente, as obrigações do mandatário e do mandante. O primeiro preceito diz que o mandatário é obrigado a “d) a prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir; e) a entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato.”

A obrigação de prestar contas só tem interesse para o mandante quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos. Quanto à obrigação de entregar ao mandante tudo o que recebeu em execução do mandato, esta obrigação respeita não só ao que o mandatário recebeu do mandante para a sua execução e que não foi por ele utilizado, como também aquilo que na execução do mandato recebeu de terceiros, como dinheiro.

Quanto ao art. 1167º CC este refere, na sua alínea b), que o mandante é obrigado “a pagar-lhe (ao mandatário) a retribuição que ao caso competir, e fazer-lhe provisão por conta dela segundo os usos.”

No caso concreto, (de)mandante e mandatário acordaram que este último teria direito a uma comissão por cada mobília vendida, comissão essa que, segundo declarações da (de)mandante e prova testemunhal apresentada, seria paga apenas quando a demandante recebesse dos clientes.

Estamos, pois, perante a figura do mandado com representação, regulado no art. 1178º CC, que diz que “1. Se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é também aplicável ao mandato o disposto nos arts. 258º e seguintes. 2. O mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada.”

Na situação em apreço, não restam dúvidas que o mandatário agia em representação da (de)mandante, sendo apresentado e reconhecido como colaborador e comissionista da mesma. Tal como não restam dúvidas, de acordo com a factualidade dada como provada, que o mandatário extravasou o mandato que lhe havia sido conferido, nomeadamente não cumprindo com as obrigações a que estava adstrito nos termos do art. 1161º alíneas d) e e) CC, o que teria como consequência o pagamento de juros legais à (de)mandante, nos termos do art. 1164º CC.

Como já referimos, o art. 1178º CC estende ao regime do mandato o disposto nos arts. 258º e seguintes do CC. Assim, o negócio jurídico realizado pelo representante (mandatário) em nome do representado (mandante), nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último (mandante). No caso concreto, e embora não resulte da factualidade dada como provada, parece que o mandatário (segundo alega o demandado na sua contestação), por si só, e sem qualquer acordo com a (de)mandante, pediu ao demandado que este lhe desse um cheque no valor de € 4.000,00 para pagamento do mobiliário e da sua colocação, assegurando-o que depois fariam contas e que lhe deveria o que teria sido pago em excesso, nomeadamente no que tocava ao desconto.

Daqui resulta um claro abuso dos poderes conferidos pela (de)mandante ao mandatário, não podendo os mesmos produzir quaisquer efeitos na esfera jurídica daquela, no seguimento do estipulado no art. 258º CC.

Ou seja, no presente caso e, tendo o mandatário actuado como actuou, o mesmo praticou por conta da (de)mandante um acto não compreendido no seu mandato, não tendo cumprido também com as obrigações a que estava adstrito e que já expusemos acima.

O demandado não logrou provar que o cheque que emitiu à ordem do C (comissionista / mandatário) pagou as quatro facturas juntas aos autos. Da factualidade dada como assente, resulta provado que apenas foi paga a factura n.º 004455, o que não aconteceu relativamente às facturas nºs 004574, 004640 e 004703; e também resulta provado que apenas foi depositado na conta bancária da demandante a quantia de € 3.187,30 correspondente à factura n.º 004455, e não os € 4.000,00 constantes do cheque emitido pelo demandado.

Como consequência, não podemos considerar a demandante devedora de qualquer quantia ao demandado, requisito primordial para que opere a compensação de créditos (Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor).

Acresce que a reconvenção é uma acção distinta, e sendo admissível, só deve utilizar-se, quando o crédito invocado pelo demandado é superior ao do demandante, invocando a compensação até aquele limite; caso contrário, o demandado deve invocar a compensação mas defendendo-se através da excepção peremptória, esta é a posição maioritária da nossa jurisprudência, cfr. Ac. da RP, 26.04.93, proc.9220810, www.dgsi.pt – “A compensação pode ser deduzida em defesa como excepção peremptória, só importando reconvenção na parte em que exceda o crédito a compensar. Se o réu se propõe obter a compensação por um crédito que não exceda a compensar e, para tanto, deduzir reconvenção, o tribunal é livre para qualificar a defesa como excepção…”.

Neste caso concreto sempre o demandado deveria ter invocado a excepção peremptória da compensação até ao valor do pedido da demandante e deduzir, posteriormente, pedido reconvencional na parte em que o seu crédito exceda o pedido da demandante.

Ou seja, o demandado deveria ter invocando a excepção peremptória da compensação até ao valor de € 520,85, pedindo posteriormente o excedente (€ 291,85) em sede de reconvenção, o que não fez.

Cumpre ainda fazer uma breve referência ao art. 850º CC, cuja epígrafe é “créditos prescritos”, uma vez que o demandado, além de ter deduzido pedido reconvencional, veio também alegar a prescrição do crédito detido pela demandante. Ora, diz este preceito que “O crédito prescrito não impede a compensação, se a prescrição não podia ser invocada na data em que os dois créditos se tornaram compensáveis.”

Trata-se de uma consequência da retroactividade da compensação, prescrita no art. 854º CC. Ou seja, para que a prescrição possa impedir a extinção das dívidas, será necessário que o prazo ainda não tivesse decorrido quando se verificaram os demais requisitos da compensação.

Tendo em consideração que a compensação apenas se torna efectiva mediante declaração de uma das partes à outra, o que no caso concreto é o mesmo que dizer desde a data da notificação da contestação do demandado à demandante. Assim, e fazendo uma interpretação a contrario sensu do art. 850º CC, sempre diríamos que, podendo a prescrição ser invocada na data em que os dois créditos se tornaram compensáveis (o que o demandado fez), daqui resulta que estes créditos prescritos impediriam a compensação. Não podemos, pois, deixar de estranhar que o demandado alegue a prescrição dos créditos detidos pela demandante, e venha, posteriormente, fazer a compensação com esses mesmos créditos.

Assim por todo o exposto, julgo inadmissível o pedido reconvencional deduzido pelo demandado contra a demandante, nos termos formulados na presente acção.

O DIREITO

No caso em apreço, demandante e demandado celebraram um contrato de compra e venda, constando a sua noção legal no art. 876ºdo CC: “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”. Neste tipo de contrato, como é regra geral, vale o princípio da liberdade contratual (art. 405º CC), pelo que as partes são livres de celebrar o negócio jurídico, assim como estabelecer o conteúdo que entenderem.

São efeitos essenciais do contrato de compra e venda:

a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;

b) a obrigação de entregar a coisa e

c) a obrigação de pagar o preço (cfr. art. 879.º do Código Civil).

Este é um contrato oneroso, tendo em conta que a transmissão da coisa implica o pagamento de um preço, na medida em que dele advêm vantagens económicas para ambas as partes.

Ora, como contrato que é, esse negócio jurídico, livremente celebrado, deve ser pontualmente cumprido, ou seja, o cumprimento por parte do credor (demandante) deve coincidir ponto por ponto com a prestação a que o devedor (demandado) se encontra adstrito (art. 406.º n.º 1 CC).

No caso em apreço, a demandante logrou provar o fornecimento da mobília de cozinha. Pelo contrário, e sendo o pagamento uma excepção peremptória, não é à demandante que compete provar a falta de pagamento, mas sim ao demandado que compete provar o pagamento – cfr. art. 342º n.º 2 CC e arts. 493º n.º 3 e 496º CPC, o que não logrou fazer.

A demandante pede adicionalmente juros de mora, desde a efectiva data de emissão de cada uma das facturas, à taxa de 4%, e que computou até à data da entrada do requerimento inicial em € 131,21, e ainda os vincendos desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Ora, verificado o não cumprimento pelo demandado também este pedido tem de proceder, pois tem fundamento legal, nos termos dos arts. 804º nºs 1 e 2 e 805º nº 2 alínea a) do CC, pois havendo prazo certo, como sucede no caso em apreço, o devedor constitui-se em mora desde o vencimento da respectiva obrigação, aqui, a data da emissão das facturas.

Tem assim o demandante, direito a juros de mora vencidos, calculados pela demandante em € 131,21 à data da entrada do requerimento inicial, e vincendos até efectivo e integral pagamento, desde a data do vencimento das Facturas nºs 004574, 004640 e 004703.

Decisão

Face ao que antecede e às disposições legais aplicáveis, julgo a acção totalmente procedente por provada e, em consequência, condeno o demandado a pagar à demandante o valor de € 520,85 (quinhentos e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescido dos juros de mora vincendos, à taxa de juro publicada semestralmente para os juros comerciais, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado, nomeadamente do pedido reconvencional deduzido pelo demandado.

Custas:

Declaro parte vencida o Demandado, o qual vai condenado no pagamento das custas do processo, no valor de € 70,00.

O Demandado deverá efectuar o pagamento das custas em dívida, no valor de € 35,00 (trinta e cinco euros), num dos três dias úteis subsequentes ao conhecimento da presente decisão, incorrendo numa sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efectivo cumprimento dessa obrigação, conforme disposto nos números 8º e 10º da Portaria 1456/2001, de 28 de Dezembro. Decorridos dez dias sobre o termo do prazo supra referido sem que se mostre efectuado o pagamento, será entregue certidão da liquidação da conta de custas ao Ministério Púbico, para efeitos executivos, no valor então em dívida, que será de € 175,00 (cento e setenta e cinco euros).

Cumpra-se o disposto no n.º 9 da referida Portaria em relação à Demandante.

Registe e notifique.

Vila Nova de Poiares, 17 de Novembro de 2008

A Juíza de Paz,

(Marta Nogueira)
Processado por meios informáticos e revisto pela signatária. Verso em branco. (Art. 138.º, n.º 5 do CPC)