Sentença de Julgado de Paz | |||
Processo: | 70/2018 – JPAGB | ||
Relator: | CRISTINA POCEIRO | ||
Descritores: | USUCAPÃO. REBOQUE AGRÍCOLA. | ||
Data da sentença: | 10/08/2018 | ||
Julgado de Paz de : | AGUIAR DA BEIRA | ||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 70/2018 – JP Aguiar da Beira SENTENÇA I – RELATÓRIO:Identificação das partes: Demandante: A, portador do cartão de cidadão nº ---, válido até ---, emitido pela República Portuguesa e do número de identificação fiscal ---, casado com B , portadora do cartão de cidadão nº --- , válido até ---, emitido pela República Portuguesa e do número de identificação fiscal --- , residentes na --- Chosendo - Sernancelhe; Demandados: C , portador do cartão de cidadão nº --- , válido até --- , emitido pela República Portuguesa e do número de identificação fiscal --- e mulher D, portadora do cartão de cidadão nº --- , válido até --- , emitido pela República Portuguesa e do número de identificação fiscal ---, residentes na ---- Romãs - Sátão.--- Objeto do litígio: O demandante instaurou a presente ação declarativa de simples apreciação, pedindo, com base nos fundamentos constantes do respetivo requerimento inicial, que aqui se reproduzem, que a mesma seja julgada procedente e, em consequência, que seja declarado adquirido por usucapião, com efeitos previstos no artigo 1288º do Código Civil, a favor do demandante, o direito de propriedade sobre o reboque agrícola de marca --- , modelo --- – basculante, com matrícula C---- e, em consequência, ser determinado o cancelamento do registo de propriedade do mesmo em nome da sociedade comercial E, já extinta. Para tanto, o demandante alegou os factos constantes do respetivo requerimento inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, segundo os quais, resumidamente, no ano de 2005, por compra e venda verbal celebrada com o demandado, adquiriu o referido reboque, o qual, por sua vez, o tinha comprado, em 01 de agosto de 1994, à sociedade comercial E, a favor de quem permanece registado; que, desde 2005 até ao presente, usa o reboque como seu único e exclusivo dono, invocando diversos atos de uso e fruição do mesmo e alegando diversos factos caraterizadores da respetiva posse que invoca, bem como invoca a acessão da mesma com a anterior posse dos demandados, concluindo que o adquiriu por via da usucapião, motivo pelo qual deve ser cancelado o registo de propriedade a favor da extinta sociedade. Para o efeito, juntou quatro documentos ao respetivo requerimento inicial e dois documentos a convite do tribunal, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. Tramitação e Saneamento: Atenta a espécie e finalidade da presente ação, por não se vislumbrar adequada a resolução do litígio através do serviço de mediação existente neste julgado de paz, não foi marcada sessão de pré-mediação. Os demandados, pessoal e regularmente citados, não apresentaram contestação, faltaram à audiência de julgamento e não justificaram a respetiva falta no prazo legal. Na sequência do despacho proferido a fls. 34 e 35 dos autos, cujo teor aqui se reproduz integralmente, o demandante foi convidado a juntar aos mesmos, até ao início da audiência de julgamento, documento comprovativo da prestação de consentimento do respetivo cônjuge para a instauração da presente ação ou a fazer comparecer o mesmo na audiência de julgamento para tal efeito e, consequentemente, aperfeiçoar o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o reboque agrícola de matrícula C---- deduzido no requerimento inicial em conformidade, isto é, a favor do demandante e mulher (artigos 39º e 43º, nº 5 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho), sob pena dos demandados serem, oportunamente, absolvidos da instância, o que o demandante cumpriu na primeira sessão da audiência de julgamento, tendo sido considerada, devida e oportunamente, regularizada a presente ação no que respeita à legitimidade ativa, bem como fundamentado o aperfeiçoamento do pedido deduzido no requerimento inicial no sentido de ser reconhecido o direito de propriedade sobre o reboque agrícola de matrícula C---- a favor do demandante e da esposa B. Cumprido o princípio do contraditório quanto a tais questões e quanto à certidão permanente da sociedade comercial E, junta oficiosamente aos autos, os demandados nada disseram. A audiência de julgamento decorreu com observância dos legais formalismos. Factos não provados: Não há quaisquer factos não provados a especificar com relevância para a decisão dos autos. Motivação dos factos provados: Atendeu-se às regras de repartição do ónus da prova (artigo 342º), bem como às presunções legais aplicáveis ao caso concreto dos autos (artigo 350º) e ainda às presunções judiciais (artigo 351º) . Dos documentos juntos aos autos, o tribunal atendeu à informação do teor do assento de casamento dos demandantes de fls. 22 e 23 dos autos, que comprova os factos constantes do número 1; à certidão permanente da matrícula da sociedade comercial E, junta a fls. 31 a 33 dos autos, que comprova a factualidade dada como provada sob os números 2 a 5; ao Livrete de fls. 3 dos autos e à informação respeitante ao registo da propriedade do reboque de matrícula C----, emitida em 27-08-2018, de fls. 24 a 26 dos autos, que comprovam os factos vertidos no número 6; ao modelo nº 883 de requerimento de registo para transferência de propriedade de veículo não automóvel de fls. 5 dos autos, que comprova os factos vertidos nos números 7 e 8; ao ofício com a referência 02922, datado de 21-03-1996, da Direção Geral de Viação, Delegação Distrital de Viação do Porto de fls. 4 dos autos, que comprova a factualidade vertida no número 9. A factualidade indicada sob os números 7 e 10 a 12 foi considerada provada em virtude da cominação confessória plasmada no artigo 58º, nº 2 da Lei nº 78/2001, de 13 de julho. Ponderou-se também a conduta processual das partes, particularmente dos demandados, que não deduziram qualquer oposição aos factos alegados pelo demandante, aceitando-os tacitamente, o que no entender do tribunal reforça a convicção de que a posse do aludido reboque pelo aqui demandante tem sido exercida, desde o seu início e até ao presente, de forma contínua, pública e pacífica, nos exatos termos dados como provados, e não colide com direitos de terceiros, desde logo dos próprios demandados. III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: O demandante, por via da presente ação, pretende que seja reconhecido o direito de propriedade exclusivo, a seu favor e da sua esposa, sobre o reboque agrícola da marca ---, modelo --- - basculante, com a matrícula C----. Para tal efeito, alega a aquisição originária, por via do instituto da usucapião, do aludido reboque agrícola, na sequência da respetiva posse após a compra verbal aos demandados no ano de 2005. De acordo com o artigo 1316º, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei. O “contrato” referido nesta norma pode ser nomeadamente o contrato de compra e venda, já que, segundo o artigo 874º, através dele transmite-se a propriedade de uma coisa ou de um direito, mediante um preço. Tratando-se de um bem imóvel, a validade formal de tal acordo está dependente da sua celebração por escritura pública ou por documento particular autenticado (artigo 875º).- No caso dos autos, como se trata de um reboque agrícola, de um bem móvel, a compra e venda está sujeita ao princípio da liberdade de forma (artigos 219º e 875º a contrario), isto é, trata-se de um contrato consensual, sendo, por isso, válido e eficaz quando seja celebrado verbalmente. Logo, atenta a factualidade considerada provada, transferiu-se para o demandante o direito de propriedade sobre o reboque agrícola dos autos através da sua compra verbal aos demandados que, por sua vez, o haviam adquirido à extinta sociedade E em agosto de 1994 (como abundantemente resulta dos documentos juntos aos autos). A transferência do direito de propriedade deu-se por mero efeito do contrato (artigos 879º, alínea a) e 408º, nº 1). Contudo, como se trata de um bem móvel sujeito a registo (artigos 1º, 2º e 5º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código do Registo da Propriedade Automóvel, aprovado pelo Decreto – Lei nº 54/75, de 12 de fevereiro, artigo 110º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada e artigo 205º do Código Civil), para proceder ao registo posterior de propriedade adquirida por contrato verbal de compra e venda é necessário designadamente o respetivo requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo ou requerimento subscrito conjuntamente pelo vendedor e pelo comprador (artigo 25º, nº 1, alíneas a) e b) do Regulamento do Registo de Automóveis, aprovado pelo Decreto – Lei nº 55/75, de 12 de fevereiro). Sucede que, no caso concreto dos autos, o reboque agrícola aqui em causa ainda se encontra com o direito de propriedade inscrito a favor da extinta sociedade comercial E, pelo que, aquela beneficia da presunção da titularidade de tal direito, uma vez que o registo dos factos referentes ao bem móvel constitui presunção da existência da situação jurídica nos precisos termos nele definida (artigo 2º do Código do Registo de Bens Móveis, aprovado pelo Decreto – Lei nº 277/95, de 25 de outubro). Presunção legal que, contudo, pode ser ilidida, como ocorre no caso dos presentes autos, atenta a factualidade dada como provada e como adiante melhor se explicará. Por outro lado, também no registo de bens móveis vigora o princípio do trato sucessivo, o que significa que, efetuado o primeiro registo (em 24 de abril de 1992 no caso dos autos), para que possa ser definitivamente lavrado qualquer outro, é necessária a intervenção do respetivo titular ou decisão contra ele proferida, salvo se o facto for consequência de outro anteriormente registado (artigo 7º do Código do Registo de Bens Móveis). Sucede que, no caso dos autos, conforme decorre da factualidade considerada provada, a sociedade comercial E encontra-se extinta desde 16 de novembro de 2011 (artigo 160º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais), pelo que, ao demandante está impossibilitada a obtenção da intervenção do respetivo titular ou decisão contra ele, pois, como já se encontra extinta não tem personalidade jurídica e, consequentemente, não tem personalidade judiciária (artigo 11º do Código de Processo Civil), não podendo a presente ação ser instaurada também contra a aludida sociedade, à qual a lei já não reconhece a suscetibilidade de ser parte. Daí que, como o contrato de compra e venda verbal outorgado entre o demandante e os demandados apenas transmitiu a propriedade do reboque agrícola aqui em causa, pois que não opera o efeito jurídico de constituir tal direito na sua esfera jurídica, bem andou o demandante quando invocou a respetiva aquisição originária por via do instituto jurídico da usucapião, atentos os efeitos jurídicos visados com a presente ação. A aquisição por usucapião funda-se, diretamente, na posse, cuja extensão e conteúdo definem a extensão e o conteúdo do direito prescricionalmente adquirido, com absoluta independência em relação aos direitos que antes daquela aquisição tenham incidido sobre a coisa. No caso dos autos, apesar de ter sido invocada a acessão da posse de demandante e demandados (artigo 1256º), apenas se considerará a duração da posse do demandante para apreciação do mérito da ação, uma vez que não foram alegados (logo, nem provados) concretos atos de posse por parte dos demandados (apesar de ter ficado demonstrada a sua aquisição por compra e venda à extinta sociedade em agosto de 1994), que permitissem ao tribunal aferir das concretas e efetivas caraterísticas da respetiva alegada posse. A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (artigo 1258º). Sendo que, a posse atual não faz presumir a posse anterior, salvo quando seja titulada, presumindo-se que há posse desde a data do título (artigo 1254º). E, para os efeitos aqui visados – aquisição do direito de propriedade- impõe-se que seja uma posse pública e pacífica, como decorre do artigo 1267º, nº 2. A posse do demandante, sobre o reboque agrícola, considera-se titulada, uma vez que tendo sido adquirida por via de um acordo de compra e venda celebrado com os demandados, ainda que meramente verbal ou consensual, encontra-se fundada num modo legítimo de adquirir o direito de propriedade, conforme acima se referiu (artigo 1259º, conjugado com as disposições dos artigos 220º, 408º, nº 1, 874º, 875º a contrario e 879º), e que, por isso, se presume de boa fé (artigo 1260º, nº 2). Por outro lado, trata-se de uma posse pacífica porque foi adquirida sem violência e sem a oposição de quem quer que seja (artigo 1261º, nº 1) e pública porque exercida de modo a poder ser conhecida por quaisquer interessados, desde logo os aqui demandados (artigo 1262º). Sendo que, o demandante está na posse do mesmo desde o ano de 2005 até ao presente, portanto, há mais de dez anos. A própria lei presume que se o possuidor atual possuiu em tempo mais remoto, presume-se que possuiu igualmente no tempo intermédio [artigo 1254º, alínea a)], concluindo-se pela existência de uma posse contínua (não tendo sido alegado ou demonstrado nos autos pelos demandados a existência de qualquer interrupção da mesma, atenta a sua conduta processual). Conforme já referido, a propriedade do reboque agrícola dos autos está registada a favor da sociedade comercial E desde 24 de abril de 1992 (conforme resulta do livrete e da informação do registo de, respetivamente, fls 3 e de fls. 24 a 26 dos autos). O demandante não tem, portanto, registo da aquisição da propriedade do reboque agrícola dos autos a seu favor. Assim, o demandante, apesar de possuidor desde 2005, porque é aquele que exerce o poder de facto sobre o reboque agrícola dos autos, não goza da presunção da titularidade do direito de propriedade que invoca sobre o mesmo, uma vez que existe a favor da referida sociedade comercial presunção fundada em registo anterior ao início da posse (artigo 1268º, nº 1). Contudo, conforme decorre da factualidade dada como provada, no caso dos autos, ficaram provados atos materiais e exclusivos de posse do demandante sobre o reboque agrícola desde o ano de 2005 até ao presente e sem qualquer interrupção. Portanto, não há dúvidas de que o atual possuidor do reboque agrícola dos autos é o demandante. Sendo que, a própria lei presume a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa (artigo 1252º, nº 2). Assim sendo, presume-se que quem pratica atos materiais de posse (o corpus), atua, igualmente, por forma correspondente ao exercício, no caso, do direito de propriedade (o animus possidendi), presunção que não foi ilidida nos autos (neste sentido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-05-1996, publicado no Diário da República, II Série, de 24-06-1996). De acordo com o disposto no artigo 1298º, alínea b), não havendo registo do título de aquisição, como ocorre no caso dos autos, o direito real sobre a coisa móvel sujeita a registo adquire-se por usucapião “quando a posse tiver durado dez anos, independentemente da boa fé do possuidor e da existência de título”. Ora, atenta a factualidade dada como provada, o demandante conseguiu demonstrar que adquiriu aos demandados o reboque agrícola dos autos, que usa e frui, com exclusividade, desde 2005, na convicçao de exercer direito próprio sobre o mesmo, pelo que, mostram-se preenchidos todos os requisitos legais para verificação da aquisição do direito de propriedade por via da usucapião, já que, para tal efeito, aqui foi invocada pelo demandante. Ademais, considerando a factualidade provada, fica demonstrado que apenas por vicissitudes imputáveis aos demandados e à referida sociedade comercial não foi efetuado o registo da transferência da propriedade do reboque agrícola dos autos desta para aqueles, uma vez que a assinatura do respetivo sócio gerente não foi reconhecida enquanto tal e com poderes para o ato, como resulta manifestamente dos documentos de fls. 4 e 5 dos autos acima identificados. No entanto, em face dos documentos juntos aos autos, ficou demonstrado que, efetivamente, os demandados compraram à aludida sociedade o reboque agrícola dos autos e que estes, por sua vez, transmitiram a sua propriedade ao demandante também por contrato de compra e venda, já no estado de casado. Motivo pelo qual, se entende que a situação jurídica refletida pelo registo da propriedade do reboque agrícola dos autos, a favor da sociedade comercial E, não corresponde à realidade material e atual do mesmo, considerando-se que tal presunção da titularidade do direito de propriedade foi ilidida pelo demandante, atenta a factualidade alegada e provada nos autos (cumprindo o ónus da prova que a respeito lhe competia – artigo 350º, nº 2). Portanto, o direito de propriedade apesar de transmitido pela compra e venda para a esfera jurídica do demandante e esposa, apenas se constituiu na mesma por efeito da invocada usucapião, o que permite considerar ilidida a presunção de propriedade que decorre do registo. Por sua vez, considerando a conduta processual dos demandados, que não deduziram qualquer oposição aos factos alegados, não impugnaram os documentos juntos pelos demandantes (artigos 371º e 372º), nem produziram qualquer contraprova nos autos (artigo 346º), entende-se que o demandante alegou e provou os factos constitutivos do direito invocado, e cujo reconhecimento pede a seu favor e da esposa (artigo 342º, nº 1). Sendo que, também atentas as regras de experiência de vida comum, se conclui da conduta dos demandados que não se acham prejudicados pelo reconhecimento de tal direito a favor daqueles. Em face do exposto, julgo a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência:
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