Sentença de Julgado de Paz | ||
Processo: | 80/2010-JP | |
Relator: | DIONÍSIO CAMPOS | |
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL | |
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Data da sentença: | 05/06/2010 | |
Julgado de Paz de : | COIMBRA | |
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Decisão Texto Integral: | SENTENÇA 1. - Identificação das partes Demandante: A. Demandada: B. 2. - OBJECTO DO lITIGIO A presente acção foi intentada com base em ‘responsabilidade civil’ resultante de um acidente de viação em auto-estrada provocado por um canídeo, tendo o Demandante pedido a condenação da Demandada no pagamento da quantia de € 558,10 a título de danos patrimoniais, sendo: a) € 458,10 pela despesa suportada a título de franquia com o seu seguro automóvel; e b) € 100,00 pela despesa suportada a título de agravamento do prémio de seguro. Para tanto, alegou o Demandante, em síntese, que em 19/12/2008 seguia pela A14, sentido Figueira da Foz – Coimbra a km não determinado, tendo embatido com o seu veículo DO, num canídeo ou raposa de médio porte que invadiu e atravessou-se na faixa de rodagem, não tendo o Demandante conseguido evitar o embate frontal no animal, que atropelou, o que causou danos no DO; era noite, cerca das 00,15 horas, não parou nem participou à entidade policial nem na portagem quando saiu da A14; chegado a casa apurou os danos no DO; participou o acidente à sua seguradora e, após a peritagem aos danos, o DO foi reparado a coberto do seguro por danos próprios; pagou € 458,10 de franquia e viu o seu prémio de seguro agravado pelo período de 2 anos que lhe acarreta uma despesa € 100,00; a Demandada recusa assumir o ressarcimento dos danos causados. A Demandada, regularmente citada, apresentou contestação, impugnando, em síntese, que à data do eventual sinistro o Demandante não deu conhecimento quer às autoridades policiais quer à Demandada; a A14 é patrulhada pela BAR e pela GNR/BT durante as 24 horas do dia e nos patrulhamentos efectuados no dia do eventual sinistro não foi detectado nem avistado qualquer anomalia na área; a A14 encontra-se vedada em toda a sua extensão com duas fiadas de arame farpado, uma em cima e outra rente ao chão; no aparecimento de um “obstáculo” na AE não se vislumbra um facto ilícito cometido pela B; cabe ao Demandante fazer prova dos elementos constitutivos da responsabilidade extracontratual subjectiva da Demandada, mesmo considerando a Lei nº 24/2007, de 18 de Julho; no caso, inexiste qualquer presunção de culpa e de incumprimento da concessionária, ficando o ónus da prova da culpa a cargo do lesado. Valor da acção: € 558,10 (quinhentos e cinquenta e oito euros e dez cêntimos). 3. – FUNDAMENTAÇÃO 3.1 – Os Factos 3.1.1 – Os Factos Provados Consideram-se provados e relevantes para o exame e decisão da causa os seguintes factos: 1) O Demandante é proprietário do veículo ligeiro de mercadorias de marca Citroen, com a matrícula DO. 2) Em 19/12/2008, cerca das 00,15 horas, o veículo do Demandante circulava pela A14, pela via da direita no sentido Figueira da Foz – Coimbra, conduzido pelo próprio. 3) Logo em 19/12/2008, o Demandante participou o sinistro à sua seguradora, a X Companhia de Seguros, S.A. 4) Após peritagem aos danos, o veículo DO foi reparado na oficina “V, Lda.”, concessionário da marca, a coberto do seguro por danos próprios contratado entre Demandante e a sua seguradora X. 5) Na data do sinistro, o Demandante não o participou nem às autoridades policiais, nem à Demandada. 6) A Demandada B, S.A. é concessionária da Auto-Estrada A14. 7) Na mesma noite, após o acidente mas em intervalo de tempo não determinado, dois colegas do Demandante que percorriam também o mesmo trajecto da A14 e no mesmo sentido noutro veículo, aperceberam-se, já na zona após a saída para Arazede, que o seu veículo passara por cima de um animal morto. 8) A A14 é patrulhada pela BAR e pela GNR/BT, com o fim de detectar a ocorrência de situações anómalas, 9) Durante as 00,00 horas às 08,00 horas do dia 19/12/2008, os patrulhamentos da área não detectaram qualquer incidente na A14. 10) Em 19/12/2008, pelas 9,55 horas, os patrulhamentos da área detectaram “animais mortos na faixa de rodagem” ao km 20 da A14. 11) A A14 encontra-se vedada em toda a sua extensão, com modelo aprovado pela EP, S.A. (extinta JAE/EP-EPE), com vedações de duas fiadas de arame farpado, uma em cima e outra rente ao chão, sendo as mesmas metálicas de rede progressiva. 12) A vistoria regular e a reparação das vedações das Auto-Estradas concessionadas à Demandada são realizadas pela BCI. 13) Em 19/12/2008, a BCI não vistoriou a vedação da A14 junto ao km 20. 14) Em 19/12/2008, a BCI não detectou nenhuma anomalia na vedação da A14 no percurso vistoriado. 15) Em 23/12/2008, o Demandante pagou a quantia de € 458,10 a título de franquia. 16) Apesar de instada, a Demandada recusa assumir o ressarcimento dos danos alegados pelo Demandante. 3.1.2 – Factos Não Provados Não se consideraram provados os factos não consignados, designadamente que: 17) Aproximadamente a meio do trajecto, cujo km o Demandante não conseguiu identificar, surgiu, de forma inopinada, sem que nada o fizesse prever, um canídeo ou uma raposa de médio porte, que se atravessou na faixa de rodagem, vindo da esquerda para a direita, atendendo ao sentido de marcha. 18) Dado o súbito e imprevisto aparecimento do animal, foi impossível evitar o embate frontal, ocorrendo o seu atropelamento. 19) Como era de noite, o local ser uma zona erma, e o veículo DO aparentar circular de forma normal, o Demandante continuou viagem, saindo pouco depois em Coimbra Sul. 20) Já em casa constatou que do embate resultaram danos materiais na frente direita do veículo, nomeadamente no pára-choques, chapa de matrícula, cave da roda e farol de nevoeiro do lado direito e forra interior frontal. 21) Os danos decorrentes do embate impediam a circulação do veículo em conformidade com as exigências legais. 22) Ao prejuízo alegado pelo Demandante, acresce a despesa € 100,00 que terá de suportar com o consequente agravamento do prémio de seguro, pelo período de 2 anos. 3.1.3 – Motivação A convicção do tribunal formou-se com base nos autos, nas declarações das partes, que se tiveram em consideração, na prova documental de fls. 4 a 12 e de 47 a 53, e no depoimento das sete testemunhas apresentadas. Teve-se em consideração que as testemunhas apresentadas pelo Demandante são seus colegas de empresa, e que as testemunhas apresentadas pela Demandada Brisa dependem desta hierárquica e economicamente. Não obstante, todas as testemunhas depuseram de forma clara e precisa sobre os factos de que tinham conhecimento directo e que importam para a apreciação da causa, pelo que mereceram credibilidade na medida do adequado. 3.2 – O Direito Na presente acção vem o Demandante pedir que a Demandada seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 558,10, a título de danos patrimoniais resultantes de um acidente de viação ocorrido na A14, provocado por um canídeo que invadiu e se atravessou na faixa de rodagem e no qual embateu o veículo DO do Demandante, causando danos no mesmo. A peticionada quantia de € 558,10 compreende: a) € 458,10 pela despesa suportada a título de franquia com o seu seguro automóvel, e b) € 100,00 pela despesa suportada a título de agravamento do prémio de seguro por dois anos. A Demandada B é concessionária da Auto-Estrada A14, por contrato de concessão outorgado pelo Estado português através do Dec.-Lei n.° 467/72, de 22-11, cujas bases de concessão, posteriormente reformuladas pelos Dec.-Lei 315/91, de 20-08 e Dec.-Lei 294/97, de 24-10, estabelecem para a concessionária diversas obrigações, com eficácia externa às partes contratantes, designadamente quanto aos utentes das auto-estradas, conforme resulta da parte final do preâmbulo e art. 1.º do DL 294/97, de 24-10. Assim, as auto-estradas deverão ser dotadas de vedação em toda a sua extensão (Base XXII, n.º 5, a); a concessionária deverá manter as auto-estradas, que constituem objecto da concessão, em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente (Base XXXIII, n.º 1); a concessionária será obrigada salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração (Base XXXVI, n.º 2); serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão (Base XLIX, n.º 1). Em suma, com a concessão, a Brisa assumiu contratualmente deveres em benefício dos utentes das auto-estradas, cuja violação lhe impõe o dever de indemnizar esses terceiros. Em resultado desta normatividade, em matéria de acidentes de viação ocorridos em auto-estrada, designadamente os causados pela introdução e atravessamento de cães nas faixas de rodagem, quanto à natureza da responsabilidade civil imputável à empresa concessionária e para fundamento da determinação sobre a quem compete o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança da circulação automóvel, a jurisprudência pronunciou-se ao longo dos anos em inúmeros arestos, mas dividida quanto à questão, não pacífica, da natureza da responsabilidade civil, se contratual ou se extracontratual. A doutrina debruçou-se também sobre a questão, com construções igualmente não uniformes (cfr. por todos, Sinde Monteiro, RLJ, 131.º-41, ss., 132.º-29, ss. e 133.º-27, ss.; Cardona Ferreira, ‘Acidentes em Auto-Estradas, Casos de Responsabilidade Civil Contratual?’, 2004; Menezes Cordeiro, ‘Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas’, 2004; e Américo Marcelino, ‘Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil’, 9.º ed., 2008, pp.127-144; cfr. nas obras referidas o repositório crítico, à data, das decisões jurisprudenciais mais importantes). Não sendo este o local apropriado para desenvolver criticamente com detalhe as razões que fundamentam as teses em confronto, afinal dois caminhos paralelos, o certo é que não deixa de se impor a fundamentação exigida para a decisão da presente causa. Assim, da tese contratual (contrato inominado de prestação de serviço entre concessionária e utente, ou contrato com eficácia de protecção para terceiros proveniente do contrato de concessão) resulta para a concessionária a presunção de culpa (art. 799.º, n.º 1 do CC), e o ónus de a ilidir provando que cumpriu eficazmente as suas obrigações constantes das Bases do contrato de concessão, que visam a protecção dos utentes e que se traduzem em assegurar, permanentemente, boas condições para que, para além da comodidade, a circulação rodoviária na auto-estrada se faça em segurança e que, no caso concreto, não decorreu da omissão desses seus deveres a introdução do canídeo na A14 mas que tal foi comprovadamente obra de outrem ou de caso de força maior. Para a tese extracontratual, a ilicitude e a culpa da concessionária devem ser aferidas pela prova por parte do lesado da violação pela concessionária daquelas mesmas Bases. A diferença, de relevante significado, reside na presunção ou não da culpa e do consequente ónus da prova. Ponderando os ensinamentos de Sinde Monteiro, de Cardona Ferreira e do Ac. STJ de 22-06-2004, proc. 04A1299 (Afonso Correia): www.dgsi.pt, propendemos para a tese contratualista. Na fundamentação da tese contrária vemos, curiosamente, alguma dificuldade no manuseamento e adequado enquadramento de alguns conceitos de raiz administrativa/fiscal, como o de taxa (da portagem), tal como não conseguimos apreender como o momento do pagamento da taxa /preço de portagem seja civilisticamente invocável para afastar a tese contratualista. Entendemos, assim, que no âmbito da circulação rodoviária na auto-estrada, para a utilizar, o utente celebra com a concessionária um contrato inominado de prestação de serviço que, mediante um preço, constituído pelo valor da taxa/portagem adquire o direito a circular num determinado troço dessa via em condições de segurança e comodidade que a concessionária lhe garante. O contrato é tacitamente aceite e fica perfeito com a entrada do utente pelas ‘cabines das portagens’ da auto-estrada e o valor do preço (sujeito à incidência de IVA), dependente do troço percorrido conforme vontade do utente, será proporcionalmente determinado e pago a final. O conteúdo da contraprestação cometida à concessionária é determinado, na sua quase totalidade pelas Bases do contrato de concessão, com eficácia externa, que visam a protecção do utente, designadamente as que impõem à concessionária a adopção de medidas de segurança e comodidade. A liberdade contratual não está, por outro lado, daqui arredada, porquanto o automobilista é livre de celebrar ou não o contrato (pode optar por estradas alternativas, embora sem as mesmas qualidades de segurança e comodidade, que assim não paga) e, quanto ao conteúdo contratual, é certo que não pode negociar nem alterar as cláusulas que tacitamente acorda no momento em que contrata, mas o mesmo acontece com qualquer contrato de adesão. Não obstante o labor da jurisprudência e da doutrina, sentia-se que a solução da questão sobre a quem compete o ónus da prova carecia de uma clarificação normativa, o que veio a ser feito pela Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho no sentido da presunção do ónus da prova, logo, dos efeitos da construção contratualista. De acordo com o art. 12.º dessa lei, em caso de acidente rodoviário em auto-estradas (com ou sem obras em curso), causados pelo atravessamento de animais, e com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, salvo caso de força maior devidamente verificado. Face àquela presunção de incumprimento que impende sobre a concessionária, esta só afastará tal presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo antes comprovadamente atribuível a outrem. E resulta dessa presunção que ela abrange não só a culpa mas também a ilicitude, tal como no art. 799.º, n.º 1 do CC quanto ao devedor (Ac. STJ de 16-09-2008, proc. 08A2094 (Garcia Calejo): www.dgsi.pt). Todavia, e não obstante as considerações tecidas, reportando-nos em concreto ao presente caso, para se concluir pela responsabilização da Demandada teriam de resultar provadas as concretas circunstâncias em que ocorreu o sinistro relatado pelo Demandante. Contudo, não resultam provados nem o local exacto do alegado embate, nem o local em que o canídeo invadiu, atravessou ou estacionou na A14, protegida em toda a sua extensão por vedação, nem que os danos verificados no veículo DO tenham sido causados directa e necessariamente pela invasão e atravessamento ou estacionamento de um canídeo na faixa de rodagem da A14. E, encontrando-nos no domínio da responsabilidade (contratual) da Demandada, caberia ao Demandante provar as circunstâncias da ocorrência do facto danoso por si alegado, ou seja, que um canídeo entrou na faixa de rodagem da A14, que o veículo DO nele embateu, e que desse embate resultaram os danos neste. Ora, o Demandante não logrou provar esses factos. Sendo os pressupostos da responsabilidade civil contratual de verificação cumulativa (facto ilícito imputável à Demandada, culpa, dano, e nexo de causalidade entre o facto e o dano) faltando desde logo a verificação do facto (ilícito) alegado pelo Demandante (isto é, que um canídeo se tenha atravessado na via, e no qual o DO embateu), não se poderá concluir pela obrigação de indemnizar a cargo da Demandada (art. 798.º do CC). Em resultado, não pode deixar de improceder o pedido formulado pelo Demandante e, com ele, a presente acção na sua totalidade. 4. – Decisão Face ao que antecede e às disposições legais aplicáveis, julgo a presente acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a Demandada do pedido contra si formulado. Custas: pelo Demandante que declaro parte vencida, nos termos do n.º 8 da Portaria n.º 1456 /2001, de 28-12, que já se encontram asseguradas. Em conformidade com o disposto n.º 9 da referida Portaria, foi efectuada a devolução da entrega inicial à Demandada. A presente sentença foi presencialmente proferida quer quanto à decisão quer quantos aos seus fundamentos de facto e de direito. Registe. Envie cópia às partes. Coimbra, 6 de Maio de 2010. O Juiz de Paz, (Dionísio Campos)
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