Sentença de Julgado de Paz
Processo: 8/2024-JPCV
Relator: ISABEL ALVES DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO; CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
Data da sentença: 05/09/2024
Julgado de Paz de : CASTRO VERDE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Processo n.º 8/2024-JPCV

Matéria: Responsabilidade civil contratual e extracontratual - Artigo 9.º, nº 1, alínea h), da Lei de organização, competência e funcionamento dos julgados de paz, aprovada pela Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, alterada e republicada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho

Objecto do litígio: Cláusulas de exclusão de contrato de seguro

Demandante: [PES-1], NIF [NIF-1], residente na [...], n.º 80 – 1.º, em [Cód. Postal-1] [...]

Mandatário da demandante: Dr. [PES-2], advogado, com domicílio profissional na [...] Semedo, n.º 5, em [...]

Demandada: [ORG-1], SA, NIPC [NIPC-1], com sede na [...], 32, em [Cód. Postal-2] [...]

Mandatário da Demandada: Dr. [PES-3], advogado, com domicílio profissional na [...], n.º 22 – 1.º Esqº, em [Cód. Postal-3] [...]

Valor da acção: €10.000


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I – Relatório

A demandante [PES-1] intentou a presente acção contra a [ORG-1] [ORG-1], SA ao abrigo das als. h) e i) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei de organização, competência e funcionamento dos julgados de paz, aprovada pela Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, alterada e republicada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante LJP). Fê-lo pedindo a condenação da mesma no pagamento dos danos decorrentes do sinistro ocorrido em 19-11-2023, melhor descrito no r.i. que se dá por reproduzido, deduzido de 10% a título de franquia. Sustentou o seu pedido no contrato de seguro que celebrou com a demandada, relativo à responsabilidade civil da sua exploração de gado. Alegou, em suma, que no mencionado dia, o veículo de matrícula [ - - 1] embateu numa das vacas da demandante que se encontrava no IC1 e sofreu danos, e que, reportado o acidente à demandada, a mesma declinou a sua responsabilidade.

A demandada foi citada e contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação. Deduziu a excepção de ilegitimidade activa da demandante, a qual foi declarada improcedente pelo despacho de fls. 145-149; deduziu ainda as excepções de falta de enquadramento do sinistro dos autos no âmbito das coberturas da apólice e de limitação da sua responsabilidade por efeito da franquia contratada, tudo conforme melhor consta da contestação de fls. 46-58 que se dá por reproduzida. Defendeu, em resumo, que das diligências que levou a cabo para apuramento das causas prováveis do sinistro resultou que as portadas por onde as vacas fugiram eram frágeis e de abertura fácil, circunstância que não se enquadra nas garantias da apólice.

A demandada prescindiu a fase da mediação e realizou-se a audiência de julgamento, conforme consta da acta respectiva.


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Do pressuposto processual relativo ao tribunal - (In)competência em razão do valor da acção

A demandada defendeu na audiência de julgamento que o critério a atender para a determinação do valor da presente acção deverá ser o do artigo 303.º do Código de Processo Civil, com a consequente incompetência do Julgado de Paz.

Não é de acolher tal posição. O critério a atender é o geral, indicado no n.º 1 do artigo 297.º do Código de Processo Civil (de ora em diante CPC, diploma que é aplicável por remissão do artigo 63.º da LJP), no segmento que dispõe que quando a parte pretende obter um benefício diverso de uma quantia certa em dinheiro, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.

Para definir a utilidade económica que a parte pode obter com a procedência do pedido que formula há que verificar o que está em litígio. No caso, a demandante propugna que a demandada deve assumir a responsabilidade pelo sinistro, pagando ao lesado os danos que advieram do acidente e deduzindo o valor da franquia a ser paga por si; o benefício por si contabilizado pela procedência da acção é de €10.000, valor que não pagará ao lesado. Este valor que não pagará ao lesado com a procedência da acção não se traduz num interesse imaterial no sentido que está indicado no n.º 1 do artigo 303.º do CPC, porquanto as acções aqui compreendidas são aquelas cujo objecto não tem expressão pecuniária, ou, dito de outro modo, cujo benefício não pode traduzir-se em dinheiro, o que claramente aqui não ocorre.

O valor indicado no r.i. de €10.000 não foi impugnado pela demandada em sede própria e é nesse valor que é fixado o valor da acção (artigos 305.º, n.ºs 1 e 4, e 308.º a contrário, ambos do CPC).

Por isso, nos termos do disposto nos artigos 297.º, n.º 1, 299.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC, fixo à presente acção o valor de €10.000 (dez mil euros).


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A instância é válida e regular e nada obsta ao conhecimento do mérito.

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II. Fundamentação

Dispõe a al. c) do n.º 1 do artigo 60.º da LJP que da sentença proferida nos Julgados de Paz consta uma sucinta fundamentação, o que se cumpre como segue:

II-A. Fundamentação da matéria de facto
Factos provados
Da prova produzida, resultam provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:

1 – A demandante celebrou com a demandada o seguro “[ORG-1]”, titulado pela apólice [Id. Civil-1], cfr. docs. 1 e 2 juntos com o r.i. e doc. 1 junto com a contestação, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

2 – O contrato referido tem como objecto a actividade de exploração de animais da demandante, traduzida em 295 cabeças de gado bovino e 5 cavalos, sitos na [ORG-2] e [.ORG-2], Fontainhas e anexas, [...], sendo incluídas mais 40 cabeças de gado por alteração contratual de 2018, que entrou em vigor em 12-06-2018.

3 – O limite indemnizatório foi fixado em €500.000,00 (quinhentos mil euros) e foi estabelecida uma franquia de 10% por sinistro com um valor mínimo de €250,00 (duzentos e cinquenta euros).

4 – O contrato garante a responsabilidade civil pelos danos “decorrentes da posse, guarda, cria e utilização de animais úteis à exploração de propriedade desde que os animais estejam em locais vedados, com cercas de arame farpado e/ou valas, ou quando em movimento, estiverem acompanhados de pelo menos uma pessoa” – cfr. al. d) do n.º 1 da cláusula 1.ª das condições especiais, que define o âmbito da cobertura.

5 - Na cláusula 2.ª das condições especiais, que versa sobre as exclusões, prevê-se que ficam excluídos das garantias do contrato os danos resultantes “da falta e/ou deficiente assistência técnica, revisão, reparação ou manutenção dos equipamentos utilizados pelo Segurado” – cfr. n.º 2, al. s), e “quando o segurado não tenha tomado as devidas precauções de segurança na guarda, solta ou condução dos animais” – cfr. n.º 2, al. ag).

6 – No dia 19-11-2023, cerca das 00h25m, circulava no IC1, no sentido sul-norte, o veículo automóvel de matrícula [ - - 1],

7 – Quando, ao km 639,500 embateu numa vaca da exploração da demandante que saiu da [ORG-2].

8 – O acidente provocou a morte da vaca e danos no veículo.

9 – A demandante, em 21-11-2023, participou o sinistro à demandada – cfr. doc. 1 anexo ao Relatório n.º ALL0839-23A-RC elaborado pela [ORG-5], Lda., junto pela demandada com a contestação.

10 – A demandada, por email datado de 19-12-2023, declinou a responsabilidade pelo sinistro referindo que “As portadas são frágeis e de abertura fácil, local por onde se admite que as vacas teriam saído. Perante esta fragilidade, o sinistro não tem enquadramento. Assim, concluímos que não vamos poder dar seguimento ao pedido remetido dada a ausência de enquadramento nas garantias da apólice contratada” – cfr. doc. 4 junto com o r.i., que se dá por integralmente reproduzido.

11 – Entre a [ORG-2] e o IC1 existem duas vedações em paralelo com cerca de 1,60 metros de altura, mediando entre elas cerca de 3 metros.

12 – São vedações em rede ovelheira, com o topo protegido por arame farpado, possuindo ainda a vedação interior fio elétrico a cerca de 1 metro de altura.

13 – Em ambas as vedações existem portadas construídas em estacas de madeira com rede ovelheira, fechadas por corda e aro de arame passado ao poste da vedação fixa.

14 – Em 08-12-2020, uma ovelha pulou a vedação da [ORG-2] e provocou um acidente ao Km 640,2 do IC1, tendo a demandada pago diretamente à lesada os prejuízos apurados.

15 – As vedações e portadas em 2020 e 2023 são idênticas.

Factos não provados
Não se provou que:
(i) as portadas existentes nas vedações são frágeis e de abertura fácil, podendo ser abertas mediante a acção do piton de uma vaca (corno) empurrando o arame;

(ii) este tipo de portadas é usado para divisórias internas e não garante a segurança da vedação externa e pode ser aberta com facilidade;

(iii) parte das estacas de uma portada estava partida;

(iv) entre as duas portadas existiam excrementos recentes de bovinos.

Motivação da matéria de facto
O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, tendo sopesado os depoimentos das testemunhas inquiridas bem como os documentos apresentados, todos não impugnados, análise essa feita à luz das regras da experiência comum e norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, nos termos dos artigos 376.º e 396.º do Código Civil.
Assim, atendeu-se aos documentos juntos aos autos, os quais por si só ou em conjugação com os demais documentos e elementos de prova fundaram ou contribuíram para dar como provados os factos que a seguir se indicam: apólice de seguro n.º [NIF-2] e respectiva alteração, acompanhada das condições particulares, especiais e gerais de fls. 4-29 e de fls. 59-86 (factos 1 a 5); participação de acidente de viação de fls. 30-33 (factos 6 a 8); email da demandada de 19-12-2023 de fls. 34-35 (facto 10); confirmação de vistoria elaborada pela [ORG-7] de fls. 36-38 (facto 14); email de [PES-4] fls. 39 (facto 14); certificado de vistoria elaborado pela [ORG-5] de fls. 87-124 (factos 9 e 11 a 13); email da demandada de 08-03-2021 de fls. 138 (facto 14); cartas da demandada de 19-01-2021 e 08-03-2021 de fls. 143 e 144 (facto 14).

Resulta de acordo das partes que a demandada regularizou o sinistro ocorrido em 2020, distanciando-se ambas, contudo, quanto à relevância do mesmo para o caso presente. Contestou a demandada que o circunstancialismo de um e outro sinistro é diferente porquanto o de 2020 reportou-se a um ovino que pulou a vedação. Não está, efetivamente, em causa o estado das portadas e vedações como acontece no caso presente. Não obstante, para a prova do facto 15 atendeu-se quer ao depoimento das testemunhas [PES-5], médico veterinário da exploração há 15 anos, e [PES-6], proprietário da exploração vizinha, ambos conhecedores das condições de guarda dos animais nos períodos considerados, que descrevam as vedações e portadas sem lhes apontar alterações, isto apesar da recusa da demandada em juntar o relatório pericial relativo ao sinistro de 2020. As aludidas testemunhas depuseram com clareza, isenção e objetividade e os seus depoimentos demonstraram conhecimento directo dos factos provados elencados em 11 a 13 e 15, também admitidos pela demandada. Foi ainda relevante o depoimento destas testemunhas para se darem como não provados os factos acima indicados, uma vez que foram unânimes em afirmar o bom estado das vedações e portadas (aqui também secundadas pelo testemunho de [PES-7], o qual, contudo, apenas revelou possuir conhecimento muito recente do local em causa nos autos), que as características desta vedação são as que são usadas neste tipo de explorações e que, no caso em concreto, até existe uma vedação dupla, uma delas com fio elétrico, o que não é habitual e constitui uma segurança acrescida; foram ainda peremptórios na afirmação da dificuldade de uma vaca abrir a portada com o seu corno, adiantando a testemunha [PES-5] que o mais normal que pode ter acontecido foi as vacas assustarem-se com cães ou outros animais selvagens. Não foi feita qualquer prova da existência de excrementos entre as duas portadas, antes tendo deposto as testemunhas no sentido de que a distância de 3,4 metros entre as duas vedações corresponde a um caminho de acesso a outra propriedade e as vacas não passam por aí.

II-B. Fundamentação de direito
Neste processo impõe-se decidir sobre a cobertura, ou não, pelo contrato de seguro celebrado entre as partes do acidente ocorrido em 19-11-2023.
O contrato de seguro é um contrato através do qual o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro, ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato (o sinistro); por seu lado, o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente. Tal é a configuração deste contrato estabelecida no artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, publicado em anexo ao D.L. n.º 72/2008, de 16 de abril, na sua actual redacção (de ora em diante RJCS).

Trata-se de um típico contrato de risco, garantia e conservação de património do segurado, em que a indemnização devida, pela verificação do sinistro, surge como uma forma de reparação do dano sofrido pelo segurado ou por um terceiro lesado. É um típico «seguro de danos», na classificação indicada no Título II do RJCS, o qual, no caso, tem por objeto a actividade de exploração de animais da demandante (artigo 123.º do RJCS), inserindo-se na subcategoria dos seguros de responsabilidade civil facultativa (especialmente regulada nos artigos 137.º a 145.º do RJCS).

Na concretização do princípio da liberdade contratual afirmado no artigo 11.º do RJCS, o contrato de seguro regula-se pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições daquele diploma e da lei comercial e civil (artigo 4.º do RJCS).

Porque não estamos perante uma situação de responsabilidade delitual, mas sim emergente de contrato, a demandante não pode reclamar da demandada mais do que contratou, na medida em que a relação jurídica estabelecida entre ambos é que define a responsabilidade emergente da obrigação de indemnizar. Impõe-se verificar, pois, o que foi convencionado entre as partes ao abrigo da sua liberdade contratual.

Assim, relevam para a decisão: (i) o contratado na al. d) do n.º 1 da cláusula 1.ª das condições especiais, que, definindo o âmbito da cobertura do contrato, dispõe que são garantidos os danos decorrentes da posse, guarda, cria e utilização de animais úteis à exploração da propriedade desde que os animais estejam em locais vedados, com cercas de arame farpado e/ou valas, ou quando em movimento, estiverem acompanhados de pelo menos uma pessoa, e (ii) o contratado nas als. s) e ag) do n.º 2 da cláusula 2.ª das condições especiais, em que se prevê que ficam excluídos das garantias do contrato os danos resultantes da falta e/ou deficiente reparação ou manutenção dos equipamentos utilizados (entendendo-se as portadas e vedações como um conjunto de instalações necessário para o exercício da actividade de exploração animal) e aqueles que ocorram quando o segurado não tenha tomado as devidas precauções de segurança na guarda, solta ou condução dos animais.

Ora, da matéria dada como provada e não provada, resulta que a demandante provou o confinamento do gado em local vedado com uma dupla protecção, de dimensões e características notoriamente apropriadas à actividade prosseguida, e, bem assim, provou a ocorrência de um acidente provocado por um animal da sua exploração, ou seja, provou os pressupostos do direito que se arroga (artigo 342.º, n.º 1 do CC); já a demandada não logrou provar os factos impeditivos que lhe cabiam, a saber, a desadequação das vedações e portadas à actividade prosseguida pela demandante, traduzida na sua fragilidade e fácil abertura pelos próprios animais (artigo 342.º, n.º 2 do CC).

Em conclusão, o não preenchimento do previsto nas exclusões contratuais faz soçobrar a pretensão da demandada de procedência da excepção peremptória por si deduzida de falta de enquadramento do sinistro no âmbito das coberturas da apólice, e, consequentemente, mostrando-se o sinistro coberto pela mesma, é a demandada quem tem de responder perante o lesado pelos danos sofridos no veículo automóvel e não a demandante. Nos termos contratados, à demandante cabe o pagamento da franquia de 10% desse valor com um mínimo de €250,00 (duzentos e cinquenta euros).


III. Dispositivo
Em face de todo o exposto e com fundamento nas normas jurídicas indicadas, julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência, condeno a demandada [ORG-1], SA na assunção do pagamento dos danos decorrentes do sinistro ocorrido no dia 19-11-2023, ao Km 639,500 do IC1, em que foi interveniente o veículo automóvel de matrícula [ - - 1], deduzido da franquia de 10% com um mínimo de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), esta a cargo da demandante [PES-1].

Custas:
As custas no montante de €70 (setenta euros) são da responsabilidade da demandada [ORG-1], S.A., que se declara parte vencida, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do CPC e na parte final da al. b) do n.º 1 do artigo 2.º da Portaria n.º 342/2019, de 1 de outubro.
Este pagamento deverá ser efetuado no prazo de 3 dias úteis mediante Documento Único de Cobrança a emitir e remeter/entregar à demandada conjuntamente com a cópia da presente sentença. O não pagamento determina a aplicação de uma sobretaxa de 10€ por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação, não podendo o montante global da mesma exceder, em qualquer caso, o valor de 140€ (n.º 4 do artigo 3.º da Portaria citada). Se, ainda assim, persistir o incumprimento é enviada certidão da dívida à Autoridade Tributária e Aduaneira para efeitos de execução fiscal (Lei n.º 27/2019, de 28 de março).


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Registe e notifique – artigo 60.º, n.º 2 da LJP.

Julgado de Paz de Castro Verde, em 09-05-2024

A Juíza de Paz