Sentença de Julgado de Paz
Processo: 175/2023-JPCBR
Relator: CRISTINA EUSÉBIO
Descritores: REPARAÇÃO DOS DANOS DE GARAGEM CAUSADOS POR QUEDA DE PEDRAS E TERRA DE ESCARPA ADJACENTE AO PRÉDIO
Data da sentença: 06/07/2024
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Proc. N.º 175/2023-JPBCR

RELATÓRIO:
[PES-1], identificado a fls. 1 propôs contra [ORG-1] S.A. melhor identificada na presente ação declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a proceder à reparação dos danos de garagem causados por queda de pedras e terra de escarpa adjacente ao prédio e ainda a pagar-lhe a quantia de 5000,00€ relativos aos danos não patrimoniais sofridos em consequência de tal sinistro.
Para tanto, alegou os factos constantes do seu Requerimento Inicial de fls. 1 e 2, que se dá por integralmente reproduzido e do esclarecimento de fls. 36.
Juntou 2 documentos (fls. 3 a 27) que igualmente se dão por reproduzidos.
Regularmente citada, veio a demandada apresentar contestação de fls. 43 a 45, pugnando pela improcedência do pedido, na medida que que considera o sinistro excluído das coberturas do contrato de seguro, nomeadamente por ter existido falta de manutenção da escarpa pelo Município de Coimbra e por não ter derivado de fenómeno geológico ou tromba de água. Juntou 3 documentos que se dão por reproduzidos, de fls. 46 a 50.
Tendo a Demandada afastado o recurso à Mediação, procedeu-se à marcação da Audiência de Discussão e Julgamento, para o dia 9 de maio de 2024.
Procedeu-se à realização da Audiência de Julgamento, com observância do formalismo legal, conforme da respetiva ata melhor se alcança.
O demandante juntou aos autos 2 documentos.
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Ao tribunal cabe decidir da obrigação da Seguradora indemnizar a Demandante pelos danos patrimoniais e não patrimoniais peticionados, nos termos contratuais.
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O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.
Não existem exceções de que cumpra conhecer ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito da causa.
Fixa-se o valor da causa em 9797,00€, resultante da soma dos pedidos - danos patrimoniais invocados de 4.797,00€ (cfr. Doc. Fls. 62 e 63) e danos não patrimoniais peticionados no valor de 5.000,00€ (cfr. fls. 36).
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, ficaram provados os seguintes factos:
1. Em 31 de dezembro de 2019, demandante e demandada celebraram contrato de seguros Multirriscos Habitação com a apólice MR 64354613, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido cfr. documentos de fls. 3 a 25.
2. No dia 30 de dezembro de 2022 ocorreu um aluimento/deslizamento de terras provenientes de uma encosta escarpada situada por detrás e por cima da garagem do demandante;
3. Por força da queda de terra e pedras sobre a garagem do demandante, parte do teto ficou com fissuras, caiu o reboco e as respetivas tijoleiras desprenderam-se e caíram.
4. Antes do acontecimento referido em 3, a garagem encontrava-se em condições de utilização, quer para recolha do veículo quer para guardar objetos e bens.
5. O demandante participou o sinistro à demandada que realizou peritagem aos danos verificados, tendo concluído que, para sua reparação seria necessária a quantia de 1.067,97€.
6. O demandante deixou de poder fazer pleno uso da garagem desde a data referida em 2, apenas colocando o carro à entrada por receio de queda da estrutura do teto.
7. Choveu, abundantemente, nos meses que antecederam o acontecimento descrito em 2.
8. Em 10 de fevereiro de 2023, a demandada declinou a sua responsabilidade considerando que o sinistro participado não tem enquadramento na apólice referindo:” o talude escarpado em causa, pertence ao jardim do [...], municipal” “não haverá pagamento de qualquer indemnização”. (cfr. doc. Fls 26)
Não provados:
- Que o terreno de onde provieram as terras e pedras seja pertencente ao [...], sendo responsabilidade da Câmara Municipal de Coimbra prover pela sua manutenção e limpeza.
- A administração do Condomínio do prédio em causa tenha reclamado o pagamento dos danos provocados aos condóminos à [ORG-2].
- Que o valor da reparação dos danos da garagem seja de 4797,00€.
Não resultaram provados quaisquer outros factos alegados pelas partes ou com interesse para a decisão da causa.

MOTIVAÇÃO
A matéria selecionada como provada resulta das declarações do demandante conjugadas com os depoimentos das testemunhas apresentadas pelas partes, nomeadamente no que diz respeito à ocorrência do deslizamento de terra e pedras que soterraram algumas garagens do prédio e causaram danos na garagem pertencente ao demandante. Aliás, a demandada não põe em causa a ocorrência da situação descrita nem os danos verificados no teto da garagem, que, aliás, verificou através de perito que fez deslocar ao local.
As testemunhas apresentadas pelo demandante, confirmaram que, desde a data da ocorrência, o demandante deixou de guardar a sua viatura na garagem por receio que o teto viesse a cair em cima desta e que a coloca na garagem apenas parcialmente, com o portão aberto.
Por serem moradores no mesmo prédio, relataram que é difícil estacionar naquela rua, em certa horas do dia.
A testemunha apresentada pela demandada [PES-2], perito que se deslocou ao local referiu a existência da escarpa sem proteção no local, descrevendo-o como perigoso. Mais referiu que o desprendimento das terras resultará de um processo acumulado ao longo do tempo, supondo já terem ocorrido outros incidentes iguais no local, por lhe ter sido dito pela administração do condomínio.
Foram tomados em consideração os documentos juntos pelas partes.
Quanto à matéria não provada, resulta da total ausência de prova que a infirmasse no que diz respeito a eventual responsabilidade do município de Coimbra no acontecimento. Relativamente ao orçamento apresentado pelo demandante - impugnado pela demandada - não foi apresentada qualquer prova complementar que conduzisse o tribunal a considerar como provado o ínsito em tal documento, que não se encontra assinado, desconhecendo-se a sua autoria por falta de elementos identificativos da empresa.

FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
A relação material controvertida circunscreve-se à subsunção dos factos ao contrato de seguro celebrado entre as partes, sendo o tribunal chamado a decidir se o sinistro ocorrido se enquadra, ou não, nas clausulas contratuais estabelecidas.
O contrato de seguro, regulado no Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de abril (RJCS), encontra definição no seu art. 1º que determina. “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.”
Nas condições gerais do contrato de seguros multirriscos em apreço, consta, na clausula 1ª, a definição de sinistro, como “a verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia ou aciona as coberturas do risco previstas no contrato”.

Do conteúdo do contrato, vertido na apólice de seguro, tem de resultar definida a natureza do seguro e têm de estar concretamente delimitados os riscos cobertos [art.º 37.º, n.º 1, al.ªs c) e d), do RJCS], sendo conhecido, como relevante nesta matéria, o princípio da individualização do risco.
Por outro lado, o contrato em análise foi celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, a que é aplicável, por isso, o respetivo regime legal - DL n.º 446/85, de 25 de outubro.
No presente caso, resulta provado que, terra e pedra provindas da escarpa existente na parte traseira do prédio, sobre o qual incide o contrato, caíram no teto da garagem, causando-lhe danos.
Do ponto de vista do cidadão médio, tais factos subsumem-se à cobertura designada “Aluimento de terras” que se encontra discriminada nas condições particulares e descrita nas condições gerais nos seguintes termos:“ Pagamento até ao limite do valor fixado nas condições particulares de indemnizações por danos diretamente causados aos bens seguros em consequência dos seguintes fenómenos geológicos: A) Aluimentos B) Deslizamentos c) Derrocadas e afundimentos de terrenos”.
Não há qualquer dúvida que, no caso em apreço, estamos perante um aluimento, tal como se prevê no referido contrato de seguro, pois que um aluimento se traduz na ação ou efeito de aluir e “aluir” mais não é do que desmoronar, desabar, cair, abater.
Se recorremos ao Dicionário da Língua Portuguesa encontramos a definição de aluimento da seguinte forma: “1. ato ou efeito de aluir; 2. desmoronamento; derrocada; 3. Desmoronamento decorrente de erosão subterrânea causada por águas infiltradas no solo.” – in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa Porto Editora. [consult. 2024-06-06 14:19:54]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/aluimento.
Estamos perante uma cláusula ambígua, porquanto aparentemente define os aluimentos, deslizamentos e derrocadas como fenómenos geológicos para depois na clausula de exclusão parecer significar que, para fazer apelo da cobertura, se deverá verificar “fenómeno geológico” como causa ou motivo do aluimento, derrocada ou deslizamento.
Assim, a referida cláusula deverá ser interpretada com o sentido que lhe daria o contratante indeterminado que se limitasse a subscrevê-la ou aceitá-la, quando colocado na posição do aderente real, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente – cfr. art.º 11º do DL n.º 446/85.
Assim, fazendo apelo ao disposto no art. 236º n.º 1 do CC, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratório, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
Em caso de dúvida deve o contrato se interpretado no sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações. (art. 237º C.C.) e no sentido de abarcar situações de dúvida quanto à causalidade do sinistro.
Assim, recorrendo à interpretação da declaração negocial considera-se que os factos se subsumem à cobertura do contrato de seguro.
Caberá, pois, determinar os danos decorrentes do sinistro e o valor da sua reparação.
Para tanto, havemos de nos socorrer do relatório pericial na falta de outros elementos probatórios.
Os danos verificados traduzem-se em fissuras na placa do teto e respetivas tijoleiras. Para reparação dos danos afigurava-se suficiente a quantia de 1.067,97€, à data do sinistro – dezembro de 2022.
De qualquer modo, o pedido do demandante é no sentido da reconstituição da situação verificada antes do sinistro, resultando provado que a garagem estava em boas condições de utilização, antes do aluimento de terras.
O tribunal não obteve melhor prova do valor necessário, nesta data, para a reparação dos danos, afigurando-se necessário que se proceda à atualização daquele que se encontra apurado.
Como bem refere o Ac. Relação de Coimbra de 11/10/2017 publicado em www.dgsi.pt: “O disposto no artigo 609º, nº 2, do CPC é aplicável a todos os casos em que o Tribunal, no momento em que profere a decisão, carece de elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação, seja porque ainda não ocorreram os factos constitutivos da liquidação da obrigação, seja porque, apesar de esses factos já terem ocorrido e terem sido alegados, não foi feita a sua prova.
Em qualquer desses casos e desde que esteja demonstrada a existência da obrigação – uma vez que aquilo que pode ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo da citada disposição legal, não é a existência da obrigação, mas sim e apenas o objeto ou a quantidade dessa obrigação –, o Tribunal, carecendo de elementos para fixar o seu objeto ou o seu exato valor, deverá condenar naquilo que venha a ser liquidado posteriormente.”
Aflora também o demandante que ficou privado do uso da garagem (bem seguro) sendo certo que nos termos do disposto no art. 130º n.º 2 e 3 da LCS, tal dano apenas será ressarcível caso esteja expressamente previsto no contrato, o que não é o caso dos autos.
Quanto aos danos não patrimoniais peticionados diga-se que, pese embora as testemunhas do demandante tenham descrito os incómodos e dificuldades de estacionamento na zona do prédio, certo é que o demandante não alegou qualquer facto constitutivo do seu direito.
Podemos afirmar que os Julgados de Paz são tribunais, cuja tramitação se reveste de maior simplicidade. (art. 209º da CRP e art. 2º LJP). AA esta tramitação aplicam-se as normas legais ínsitas na Lei dos Julgados de Paz e subsidiariamente pelo Código de Processo Civil por força do art. 62º daquela lei.

Nos termos do art. 26º da LJP “compete ao juiz de paz proferir, de acordo com a lei ou equidade as decisões relativas a questões que lhe sejam submetidas” (n.º1) estabelecendo o n.º 2 do mesmo artigo que a decisão, segundo os juízos de equidade, só pode ser proferida caso as partes o acordarem e o valor da ação não exceda metade do valor da alçada dos julgados de paz, o que não é o caso dos autos.
Aos processos que correm termos nos Julgado de Paz, aplica-se o disposto no art. 5º do CPC quanto ao ónus de alegação e poderes de cognição do tribunal. Não é despiciendo lembrar que foi dada a oportunidade ao demandante para aperfeiçoar o seu requerimento inicial, o que não fez.
O princípio do dispositivo veda que o juiz se substitua às partes, colmatando, por qualquer meio a ausência de alegação dos factos essenciais.
Do requerimento inicial consta uma alegação genérica a “outros prejuízos” derivados da situação sub judice. Tal não se afigura suficiente para aquilatar da eventual responsabilidade civil da demandada, bem como a quantificação do dano e arbitramento de eventual indemnização a atribuir, mesmo por equidade.
Por outro lado, é dever o tribunal assegurar o processo equitativo para as partes em litígio, sendo certo que à parte demandada terá sempre de ter a faculdade de exercer o contraditório (art. 3º, 4º, 415º e 573ºdo CPC).
Assim, sem maiores considerações, o pedido indemnizatório a título de danos não patrimoniais haverá de improceder.

Decisão:
Nos termos e com os fundamentos invocados, decido declarar a presente ação parcialmente procedente, porque parcialmente provada e em consequência condena-se a demandada a reparar os danos da garagem do demandante, no prazo de 30 dias a contar do trânsito da presente decisão, custeando a obra necessária à reposição da situação anterior ao sinistro, tendo em conta o valor apurado dos danos de 1.067,97€ (mil e sessenta e sete euros e noventa e sete cêntimos) acrescido da atualização do valor dos materiais e mão de obra à presente data, a liquidar em execução de sentença.
No mais vai a demandada absolvida.

Custas: Na proporção do respetivo decaimento, sendo 90% (63,00€) a cargo do demandante e 10 % (7,00€) a cargo da demandada, nos termos do disposto no art.º. 527º do CPC aplicável ex vi art. 63º da LJP e ainda nos termos e para os efeitos do art.º. 3º da Portaria n.º 342/2019 de 1 de outubro devendo ser pagas no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da presente data – ainda que o prazo de validade do DUC seja mais alargado -, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efetivo cumprimento dessa obrigação. A falta de pagamento das custas processuais acarreta para o devedor a instauração de processo de execução fiscal.

Registe.

Coimbra, 7 de junho de 2024

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(Cristina Eusébio)
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 138.º/5 do C.P.C.)