Sentença de Julgado de Paz
Processo: 109/2014-JP
Relator: FILOMENA MATOS
Descritores: ESCOAMENTO DE ÁGUAS
Data da sentença: 07/06/2015
Julgado de Paz de : CANTANHEDE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Identificação das partes
Demandantes:
A, divorciada, contribuinte fiscal nº XXX, residente na Rua B.
C, residente na Rua D.
E, residente na Rua F.
Demandados:
G, contribuinte fiscal nº XXX, e mulher, H, contribuinte fiscal nº XXX, residentes na Rua I.

OBJECTO DO LITÍGIO
As Demandantes propuseram contra os Demandados a presente ação declarativa pedindo que fossem os mesmos condenados a:
a)Retirar, no prazo de um mês, todas as caleiras que encaminham e agravam o escoamento de águas das chuvas e insalubres, para o prédio da demandante, encaminhando-as para a via pública;
b)Proceder à cobertura parcial do telheiro, no local identificado nas fotos 7 e 8 juntas, de forma a não provocar de novo infiltrações das águas das chuvas, na parede norte da Demandante;
c)Indemnizar a Demandante pelos danos patrimoniais e morais sofridos na quantia de € 2.730,00 acrescidos de juros legais até efetivo e integral pagamento;
Para tanto, alegou os factos constantes do requerimento inicial de fls. 1 a 5, cujo teor se dá por reproduzido, e juntou 23 documentos.

Os Demandados foram regularmente citados e apresentaram a contestação constante de fls. 49 a 56, impugnando a factualidade alegada pelas Demandantes, excecionando que, o local para onde são encaminhadas as águas pluviais do seu prédio é domínio publico e não das demandantes, concluindo pela improcedência da ação.

Tramitação e Saneamento
O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do território e do valor - que se fixa em € 2.730,00 – art.º 297º nº1, e nº 2, e 306º nº2, ambos do Código de Processo Civil.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
A Audiência de Julgamento realizou-se com observância das formalidades legais, na qual foi admitida a ampliação do pedido e a intervenção provocada das demandantes identificadas em segundo e terceiro lugar, após exercido o contraditório, conforme resulta das respetivas atas.

FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
Com base e fundamento nos autos, julgam-se provados os seguintes factos, com interesse para o exame e decisão da causa:
1-A primeira Demandante, e segunda e terceira são respetivamente, usufrutuária e proprietárias do prédio urbano composto de rés-do-chão e 1.º andar, sito em Rua B, com área de 64,00 m2, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo XX e descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Cantanhede sob o n.º XXX – Cfr. Doc. de fls. 6 a 9.
2-A primeira Demandante adquiriu o prédio em 1976, e desde então, habita-o, zela-o, e efetua obras de conservação e beneficiação, paga os impostos a ele inerente, nomeadamente o IMI, dele retirando todas as vantagens e proveitos, cfr doc de fls 10 a 15.
3-Os Demandados são donos de um prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, 1.º andar e logradouro, sito na rua I, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º XXX, Cfr. Doc.de fls 16.
4-O prédio das Demandantes e dos Demandados confinam entre si a nascente e poente respetivamente – Cfr. Doc. de fls 17.
5-O acesso à parte traseira da casa dos Demandados é feito através de uma servidão de passagem que atravessa o prédio urbano das Demandantes e constituída sobre o mesmo.
6-Há alguns anos os Demandados reconstruiram a sua casa de habitação, levantando uns telheiros, na parte de trás da sua habitação, que confina com a casa das Demandantes, encaminhando a água dos mesmos por caleiras fazendo-as desaguar na propriedade destas - servidão de passagem - aumentando a escorrência de aguas no local e provocando a infiltração das mesmas cozinha.
7-Em 2012/2013 os Demandados recolocaram as caleiras do seu telhado, fazendo escoar e redirecionando todas as águas dos telheiros, diretamente para o prédio das Demandantes.
8-O que provocou a infiltração de águas na cozinha das demandantes, devido à inclinação da parede poente do prédio dos Demandados, falta de junção das caleiras, com escoamento das águas diretamente a cair na parede norte do prédio das Demandante, cfr. docs. de fls. 20 e 21.
9-A primeira Demandante utilizou alguns materiais de plástico para tentar impedir as infiltrações e consequentes prejuízos, cfr. foto de fls. 21.
10-Tal situação originou uma “queixa” da primeira Demandante junto da Câmara Municipal de Cantanhede, alegando que, existia uma caleira/tubo partida que a estaria a prejudicar tendo a fiscalização de obras deslocado se ao local, o que fez com que os demandados tivessem reparado a junção das caleiras – Cfr. Doc. de fls. 22 a 27.
11-Com esta reparação os Demandados, redirecionaram as caleiras, para dentro da sua casa de habitação, reconduzindo as águas da chuva com saída para cada um dos lados do seu portão escoando diretamente para o prédio das demandantes.
12-Este escoamento das águas do prédio dos Demandados, nos invernos de 2012 e 2013, provocou e provoca infiltrações, na cozinha das demandantes.
13-O rés-do-chão da casa das demandantes situa-se a cerca de 0,50 cm abaixo do leito da servidão.
14-No chão da cozinha acumula-se água, que escoa pelas paredes e chão, provocando manchas de bolor nas paredes e cheiro a mofo.
15-A primeira Demandante tem de proceder à retirada das águas que se acumulam no chão, vendo-se impedida do uso normal da sua cozinha.
16-As infiltrações de água danificaram a parte debaixo do armário da cozinha em madeira de pinho.
17-A demandante tem andado angustiada e deprimida, por não poder usufruir da sua cozinha de forma normal.
18-A demandante teve de lavar paredes em consequência dos bolores acumulados.
19-A intervenção por parte da fiscalização da Câmara Municipal de Cantanhede, não fez com que os demandados deixassem de escoar as águas da chuva e insalubres para o prédio da demandante.
20-A demandada é pessoa com alguma idade e vive sozinha.
21-Há mais de 20 anos os demandados procederam reparação dos telheiros que se localizam na parte Norte da sua habitação.
22-Nessa data, colocaram caleiras novas substituindo as velhas existentes para evitar a infiltração de águas nas paredes da sua casa.
23-O demandado marido procedeu à reparação da caleira o que foi constatado pela fiscalização da Câmara quando se deslocou ao local.

FACTOS NÃO PROVADOS
1-O escoamento das águas do prédio dos Demandados, nos invernos de 2012 e 2013, provocou e provoca infiltrações, no teto da sala das demandantes.
2-Cuja reparação ascende a 680,00 Euros acrescidos do respetivo IVA.
3-No chão da cozinha acumula-se água, que escoa pelas paredes e chão provocando manchas de bolor nas roupas e cheiro a mofo em todas as divisões.
4-Para reparar os danos no armário de cozinha de madeira de pinho, importa o valor de € 1.050,00.
5-A demandante passou muitos dias em choro incontrolável e muitas noites sem dormir motivados pela conduta dos demandados.
6-Há já alguns anos correu um outro processo neste julgado de paz entre a demandante e demandados.
7-O acesso à parte traseira da casa dos demandados e às casas de vários outros habitantes e proprietários é feito através de uma via pública denominada J.
8-Nenhuma das águas provenientes dos referidos telheiros ou da habitação escoam, direta ou indiretamente, para o prédio das demandantes.
9-A caleira/tubo foi partida pela demandante mediante a utilização de um pau com cerca de 6/7 centímetros de diâmetro e mais de quatro metros de comprimento.
10-Os demandados mantiveram sempre a mesma localização das caleiras existentes que se encontram há mais de 20 anos e que esgotam a água proveniente da mesma superfície e dos mesmos telhados.
11-As caleiras conduzem apenas, águas da chuva e não são direcionadas para o prédio ou espaço propriedade das demandantes.
12-Na parte em que a casa dos Demandados confina com a casa das demandantes não há qualquer escorrência e infiltração de águas, nem danificação no teto ou parede de qualquer divisão da mesma casa.
13-Não houve realização de obras a direcionar ou a agravar o escoamento de águas para o prédio da Demandante nem esta sofreu quaisquer danos materiais ou morais.
14-A demandante para efetuar o arrendamento do piso superior da sua casa transformou a parte de baixo da mesma que era constituída por uma “loja” numa casa de habitação mediante a feitura de divisões.
15-Transformação esta feita com paredes sem isolamento, sem cálculos de robustez ou de salubridade, que causaram humidade.
16-Transversalmente, à Rua B existe outra rua pública (sem saída) denominada “J” à Rua B”.
17-Nesta Rua tem sido efetuado vários melhoramentos pelas entidades públicas, mormente, Câmara Municipal de Cantanhede, XXXX e Junta de Freguesia de Ançã.
18-Há mais de 40 anos que aquela Rua, em parte, foi calcetada com pedra de Ançã, pela Junta de Freguesia respetiva.
19-Pela Junta de Freguesia, foram também colocados há mais de 20 anos, “números de polícia” em todas as casas que se situam na parte Norte daquele Beco público.
20-Há mais de 70 ou 80 anos, foram ali colocados os fios condutores da corrente elétrica, iluminação pública, depois, os canos que transportam a água canalizada e, mais recentemente, a tubagem e tampas de saneamento para todas e cada uma das casas que se localizam no referido Beco, ou que por ele tem acesso.
21-Todas estas obras foram efetuadas no leito do caminho e terreno público denominado “J” com o qual confinam e por onde tem acesso os prédios das partes e muitos outros.
22-Desde tempos imemoriais aquele caminho sempre esteve afecto ao trânsito de pessoas, animais e veículos sem qualquer discriminação, entrava, passava, saía toda e qualquer pessoa que o desejasse sem oposição de quem quer que fosse.
23-Existiu, em tempos, paralela às casas do Beco J, mormente, em frente à parede da demandante uma valeta pública para escoamento de águas pluviais.
24-Há cerca de três anos, esta valeta foi tapada pela demandante ou por operários à sua ordem.
25-Os canos galvanizados que conduzem a água da rede dentro da habitação da demandante têm cerca de 40 anos, e foram substituídos por originarem infiltrações na casa dos demandados.
26-Pelo interior da casa B, da Rua B, onde habita a primeira demandante, existe um cano de escoamento que atravessa a casa daquela e vem “desaguar” numa caleira que, por sua vez, corre para a Rua B, podendo trazer humidades.
27-No caminho público denominado “J”, foi recentemente construída, uma obra em cimento que permite a passagem da casa da demandante para uns outros arrumos igualmente ocupados por esta.
28-A obra foi construída sobre o caminho público não obedecendo a quaisquer cálculos de engenharia.
29-O acesso existente entre prédios distintos e sobre caminho público não oferece qualquer segurança encontrando-se em perigo de desabar.

FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Para a convicção formada, conducente aos factos julgados provados concorreu as declarações das partes, acordo das partes, prova documental junta aos autos, teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas, inspeções realizadas ao local e o teor do relatório elaborado por um técnico nomeado pelo tribunal.
Assim, o facto assente em 1, considera-se admitido por acordo nos termos do nº 2, do art. 574º, do C.P.C.
Os factos enumerados em 1 a 4, 8 a 10, resultaram do teor dos documentos juntos, conforme elencado nos factos provados.
As inspeções efetuadas aos prédios em apreço, contribuíram para a factualidade assente sob o ponto 5 a 7, 11, 14,16 e 19.
O relatório junto a fls. 212 a 215 e 246, contribuiu para ou também para os factos provados em, 6, 14 e 16.
Os restantes factos, resultaram dos depoimentos das testemunhas, cujos depoimentos se revelaram isentos, credíveis e imparciais à exceção de L e M, N, cujos depoimentos se revelaram contraditórios face à inspeção efetuada pelo tribunal e ao depoimento dos dois primeiros. A filha dos demandados, e quanto à propriedade da servidão, diz mais que a sua mãe, tecendo considerações acerca da origem das infiltrações e outros, sem qualquer sustentação ou razão de ciência, razão pelo qual o seu depoimento não foi tido em consideração.
A primeira Demandante em declarações disse que, “Vivo ali há mais de 40 anos, a casa deles tinha um pátio (com animais), eles cimentaram o pátio, fizeram um anexo, um telheiro, um terraço e uma casa de banho, há 18 anos atrás. Ele colocou as caleiras a escoar para o meu prédio, as águas entram para dentro de minha casa. Avisei-o, empurrava as caleiras para o prédio dele e ele para o meu, foi lá a GNR e os fiscais da câmara. A cozinha está mais baixa cerca de meio metro, e as águas entram pela parede abaixo quando as caleiras estavam em cima, depois, quando as puseram para baixo a cozinha fica inundada com água, e estragou os eletrodomésticos, as paredes (desde 2013). Antes das obras isto não acontecia, as alterações provocaram inundações na cozinha. As infiltrações só começaram a aparecer depois que o pátio foi cimentado, eram um pátio aberto, com terra, ele tapou com chapas de zinco e fez anexos.”
E, “ O pátio dos demandados foi coberto por partes e foram arranjando soluções para escoar as águas, não sei da legalidade das obras, a água deveria ter sido escoada para a via pública, quer as águas das chuvas, quer as das lavagens dos pátios são escoadas para a servidão que é nossa. Passam pela serventia os demandados e os S. Não é Beco, existiu um portão durante várias décadas, era um espaço fechado, antes de se entrar na servidão percorre-se uma parte que é estrada pública, mas depois é privado, da esquina para dentro não existe nenhum elemento publico, nomeadamente iluminação. Antigamente, as águas eram absorvidas pela terra existente no pátio.”
C nas suas declarações, disse que, “As chapas, tem várias inclinações as águas foram canalizadas para o nosso prédio. Até há poucos anos existia um portão que estava fechado, nunca a Junta ou a Câmara realizaram quaisquer obras de beneficência na servidão. O pátio do prédio dos demandados, era aberto, com terra e existam animais, o chão foi elevado e tem rasgos que vem de dentro e que fazem com que a água saia para a rua e passe junto à nossa casa. Da Rua B, também Rua O, há um Beco que se estende até à esquina da nossa casa e vê-se até pelo tipo de chão, o Beco está calcetado e contínua em frente, a nossa servidão está cimentado, a servidão dá passagem a duas famílias, a do G e uma outra. Há prejuízos resultantes das águas, das humidades, há infiltrações na parede da cozinha, a cozinha está num nível mais abaixo que o nível da serventia, não sei precisar o valor dos danos, mas foram-se agravando. Vivi lá enquanto era solteira e depois de casada, na parte de cima. A mãe anda muito nervosa e deixou de lá viver por causa desta situação. A escadaria aérea está sob a serventia que se discute, pertence ao nosso imóvel. A casa já existia antes da compra, há cerca de 40 anos. Na propriedade dos demandados o portão era mais pequeno, nunca de parede a parede, as chapas não existiam, eles começaram estas obras há muitos anos, de forma paulatina. Nunca entrou no dito pátio, mas, de fora não se via telheiro, era a céu aberto, eram levadas as agulhas para as galinhas. Falaram com os demandados, chamaram a GNR e fizeram queixa na Câmara, daí resultou que o Sr. G retirou os materiais postos na servidão, que é nossa, e retirou as caleiras, obrigado pela Câmara. Algumas das placas tinham caleiras, que desaguavam para o nosso prédio e agora já foram retiradas. As obras no telheiro não foram realizadas todas de uma vez. O saneamento está no Beco e não na nossa servidão, nunca ali existiu nenhum candeeiro publico. Passam ali pessoas que vão visitar quem ali reside, fomos nós que a cimentamos, nunca existiu ali uma valeta. A última alteração efetuada no prédio dos demandados, foi há menos de seis anos, depois ele pôs lá alcatrão; também o terraço de cima levou alcatrão. A situação das infiltrações tem cerca de 4 anos, foi desde o inverno de 2012/2013, as únicas águas dirigidas/orientadas são as dos demandados”.
O demandado G o, explicou que, “Já ali vivo há 29 anos, todas as águas caíam no pátio e saiam para a rua. Há 3/4 anos fiz obras, tirei as caleiras velhas e pus as novas a escoar para dentro do meu prédio. Cobri o pátio todo, coloquei as águas a escoar para onde sempre saíam. Fui fazer queixa à GNR para mandarem arranjar a caleira e ela não arranjou, arranjei a caleira, mas, foi ela que a partiu. Ela fez queixa na Câmara. Quando coloquei os telheiros a tapar a parte restante do pátio pôs as águas a escoar para o meu prédio e todas a escoar para o Beco J, as águas saem junto ao portão. Isolei o terraço com tinta de borracha para não cair água para aquilo que é meu; Quando ela partiu a caleira pôs a tela na parede. Quando ela comprou a casa havia uma capoeira das pombas onde agora está a cozinha. Pôs o telheirão, há 9 anos e pôs os parafusos a segurá-lo na minha parede. Nunca existiram caleiras, só depois de fazer os telheirões. Primeiro tinha estrume, depois o pátio foi cimentado e não existiam águas nem valetas, as águas corriam por baixo do portão. A servidão é pública, existe eletricidade pública. Para mim o Beco J, vai até ao meu portão, existem lá três casas, a XXX pós o saneamento e a água. No pátio havia um curral e um alambique, punham-se as agulhas, a largura do portão era a mesma, mas, substituí-o porque estava podre; as águas sempre por ali passaram por debaixo do portão. Parti a parede e pus as águas a cair no meu prédio; a obra mais recente foi a mudança do telhado, há seis anos. A Demandante quando comprou o prédio tinha um pátio ao nível do beco, havia uma porta para ir ao galinheiro, fechou a porta, fez uma cozinha e rebaixou-a cerca de um metro, a parede foi isolada com madeira para não se ver o salitre. Ela trabalha em Coimbra e por isso só vai a casa de 15 em 15 dias e também ela, fez várias obras de alteração na sua casa.
A demandada, explicou que, “Fui nascida e criada, naquela casa e tenho 67 anos. O meu pai tinha lá um pátio e até havia estrume, não era cimentado. Que tem direito a passar na serventia. Há vinte e tal anos que lá estavam as placas, agora substituídas. Existia ali uma valeta encostada à sua parede, tapada pelo marido dela há mais de 15 anos. Existem ali mais três casas e que água também vai para o mesmo sítio. O cimento na serventia foi colocado pelas demandantes, e era mais larga e em terra, havia um lamaçal. A serventia está mais alta que a cozinha. Considera que o leito da servidão é das demandantes. Os meus pais tinham um burro e porcos que estavam na parte de trás do telheiro, eram um pátio a céu aberto. Está tudo coberto como hoje, há mais de 25 anos. A minha casa tem uma entrada principal, mas, para ir à parte de trás vai pelo Beco e depois pela servidão. Esse Beco primeiro é calcetado, e se for em frente vai ter às casas, não tem saída. Parte da cozinha das demandantes está feita numa parte que correspondia à serventia, logo parece ser delas. A casa das Demandantes, antigamente era uma mercearia, cuja porta era pela Rua B e havia uma porta lateral para a servidão (onde o sr. armazenava as coisas da mercearia).”
As testemunhas apresentadas pelas demandantes,
P, referiu que, “Fui ver as anomalias à casa das Demandantes, em Ançã, o teto da sala da entrada principal danificado e a cozinha, tudo, com muita humidade, havia água no chão e bolor. Foi quem fez os orçamentos de fls. 33 e 120. O chão da cozinha está mais baixo do que a parte de trás (servidão) o que ajuda às infiltrações. As humidades dever-se-ão à falta de drenagem, de telas, e do escoamento das águas.”
Q, disse que, “Mora na mesma rua, vive na casa encostada à do Sr. G, vive lá há 24 anos. A chamou-me para ver a cozinha, foi a primeira vez que lá fui, havia água a escorrer pela parede e debaixo dos móveis. A água vinha da parede encostada ao prédio do sr. G. Não se recorda de nenhuma divisão com madeira. Tenho uma vaga ideia que um portão de chapa estaria no início da serventia.”
R, explicou que, “ reside em Ançã, casou há 51 anos. A casa da A era do seu sogro que lha vendeu, a casa era velha, de rés-do-chão, em madeira, ela pôs abaixo e construiu, no rés-do-chão existia uma mercearia/loja e uma adega, ela deitou-a abaixo e fez uma nova, mas, no sítio da velha, terá avançado mais para o lado do pátio, porque tinha de dar serventia aos pais da demandada, hoje outra família e os S. Era serventia de pé e de carro de bois. Havia um portão no início, era feito de madeira, forrado a zinco e pintado de verde e ao lado fez uma capoeira para por pombas. Quem cimentou a serventia foi a A. Havia muita água no chão e nas paredes da cozinha da A. O que está estragado é tudo do lado do vizinho. O pátio dos Demandados era aberto, no tempo do seu sogro havia galinhas, burro e porcos; a parte dele está mais alta e a água escorre para a casa dela. Na cozinha da A os móveis estão podres, a água vem do lado do vizinho, pela parede da chaminé. A srª é uma amargurada dentro daquela casa. Muitas vezes a chamou dizendo-lhe “ olha onde estou a viver”, anda muito enervada.” Confrontada com as fotos juntas aos autos, identifica o curral/capoeira, localiza o portão existente no início da servidão que tinha uma tremela e estava sempre fechado. Identifica o portão dos demandados e confirma a existência da porta lateral que a Demandada referiu atualmente fechada.
T, referiu que, “Vive ali há 43 anos, a casa das demandantes antigamente era uma mercearia. Há um vestígio de uma coisa em ferro que segurava o portão que existia à entrada da servidão que é delas. Há cerca de dois anos (mas, depois fui outras vezes) ela chamou-me, entrei e vi água na cozinha, e duas ou três caleiras a escoar, encostadas à parede da A e depois a água infiltrava-se. Os armários da cozinha estão empenados e a água anda lá pelo chão; a água escorria por cima da minha mão, pela parede e no chão, outras vezes a água corria quando chovia. Ela anda sempre nervosa.”
As testemunhas trazidas pelos demandados,
U, disse ser “Sócio gerente de uma empresa de construção civil. A demandante mostrou-lhe há três anos humidades e salitre dos dois lados, era inverno, foi ao local ver, por volta das 18h30 /19h. O telhado do G estava um serviço magnífico, vi com a lanterna do telemóvel.
A construção da A ficou um cancro porque aproveitaram algumas paredes. O pátio dos demandados tinha estrume e tinha lá uns telheirecos, mas, era todo coberto antigamente, os S é que deitavam águas sujas por ali abaixo, era uma lixeira o nível da cozinha está mais baixo que o nível freático, tem uma diferença de 20cm mais para baixo. Os nºs de porta foram colocados pela junta há cerca de 16 anos. O rasgo para correr a água era na serventia. Passava lá para ir a casa dos S, nunca ninguém o impediu. De um lado é a casa da A e do outro havia uma capoeira, há cerca de 40 anos, o chão era estrume e terra batida, a serventia agora é mais larga e está cimentada, não me lembro do portão. Até à estrada da rua B está tudo em cimento. Se a parede não estiver impermeabilizada então entra água, as paredes ainda são as antigas, da casa dos Demandados não sabe nada, não sabe nada do telheiro.”
M, explicou que, “Estive na Junta de freguesia 20 anos e saí há 16 anos, no meu mandato fez-se a requalificação das ruas e becos, fez-se obras no Beco (27 anos) e o calcetamento de todos os Becos. A classificação do Beco foi no meu tempo, a Junta calcetou só uma parte do Beco, e a parte que não se via não foi calcetada. A iluminação pública, suponho que existe na parte calcetada, o saneamento não sei.”
L, disse, “Conhecer os prédios de ambos, viveu na casa da família dos S, vinte e quatro anos. A serventia estava em terra, pensa que foi a Junta que cimentou o canto. Ela não queria que lavasse a serventia, queixava-se com a água. A cozinha é mais baixa, recordo-me de um sarrufo/valeta para as águas não encostarem à parede. Na parte calcetada há saneamento. Por fora conhece o telheiro do G, mas, obras não sabe nada. Já ali não reside há 14 anos. Tem ideia que foi a junta que cimentou a serventia.”
N, referiu ser “ filha dos Demandantes, o prédio dos pais era dos avós. É um Beco que começa na rua Jaime Cortesão, depois há uma bifurcação, tudo é Beco. Existem ali cerca de 6 casas, nas duas bifurcações, identificadas com nºs de polícia, os nºs de porta estão inseridos num azulejo, a Junta fê-los todos iguais, existe água, luz e saneamento. Parte do terraço, estava tapado e, foram substituídas as caleiras. O pai acrescentou a parte do telheiro há mais de 20 anos, a quantidade de água é a mesma, são só águas pluviais. A partiu o tubo da caleira e a água poderia saltar, o pai reparou a caleira. A partiu o tubo da caleira e a água poderia saltar; o pai reparou a caleira. Não houve aumento do caudal da água. A casa da A sofreu obras há muitos anos, até ao processo, ela nunca se tinha queixado. Os meus pais mudaram o telhado, mas, a inclinação é igual. As infiltrações são dos canos dela, que estão rotos, nunca fui lá ver. Junto da janela da cozinha existia uma valeta, há vinte e tal anos.”
V, referiu, “Conhecer o prédio desde pequeno. Conheceu os pais dos Demandados. Conhecia a casa das Demandantes, era uma mercearia. Fez a restauração há cerca de 6 anos, reconstruiu o telhado da habitação, dos demandados trocou madeiras e telhas por materiais novos iguais, respeitaram-se as cotas, ficou tudo igual, o telhado com duas águas. Conhece o Beco desde pequeno, em tempos era em terra. A casa da Demandante era só rés-do-chão, era uma casa muito antiga, foi reconstruída e aproveitaram os anexos e currais que existiam nas traseiras para construção. O piso era em terra, foi cimentado. Das valetas não sabe. A casa da A está mais baixa do que o Beco.
Estive na cozinha da A, ela quis mostrar-me umas humidades, eram na parte de baixo, a zona não estava devidamente isolada; as humidades infiltram-se porque as paredes são simples, sem isolamento; as paredes antigas foram aproveitadas e tinham salitre.”
Os factos não provados resultam da ausência de prova quanto aos mesmos, porquanto não foi produzida prova que permitisse concluir de forma diferente.
A questão a decidir prende-se com o facto de saber se, as obras efetuadas pelos demandados no seu prédio, causam infiltrações no prédio das demandantes, causando por isso danos.

O DIREITO
A factualidade emergente dos presentes autos, remete-nos para um conflito emergente das relações de vizinhança, na sequência das partes serem proprietários de prédios confinantes, conflito esse, relacionado com o escoamento de águas provindas do prédio dos demandados e que se infiltram no prédio das demandantes nele provocado danos.
Conforme decorre do art. 1305 do CC, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das respectivas coisas, mas, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Fixando expressamente a lei limitações ao exercício do direito de propriedade, tais restrições tanto podem derivar do direito privado, como do direito público.
Entre estas últimas - limitações de interesse público - encontram-se as respeitantes à fixação de regras mínimas a observar na construção de edifícios, por razões de segurança, salubridade e higiene e, ainda, de ordem estética, ligadas à boa ordenação urbanística das povoações, envolvendo, em geral, a necessidade de o titular do direito se abster de certas condutas no seu exercício, neste âmbito se situam, designadamente, as que decorrem das normas do RGEU, sobre as quais não nos pronunciamos, porquanto tal factualidade, não foi alegada ou posta em causa pelas demandantes.

As restrições de direito privadas resultam, essencialmente, das relações de vizinhança, tendo em vista a regulação dos conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, estando previstas nos arts. 1344 e seguintes do C.C.
Efectivamente, as limitações resultantes da contemplação de interesses particulares podem estar relacionadas com a proximidade ou contiguidade existente entre prédios, fazendo com que frequentemente o exercício de direitos reais sobre um deles se projecte sobre os prédios vizinhos – daí as limitações impostas pelas relações de vizinhança.
A lei estabelece limitações que:
-impõem um dever de abstenção (como é o caso das emissões, das instalações prejudiciais, das construções e plantações e do escoamento natural de águas),
-supõem a necessidade de suportar uma actuação alheia (como na utilização de terreno alheio e nas obras defensivas de águas),
-impõem deveres especiais de diligência (com nas escavações, tapagem de prédios ou ruína de construção)
-impõem um dever de colaboração (como na demarcação e reparação de parede ou muro comum).
Nos autos em apreço a limitação que terá sido violada é a imposta no art. 1351.º do C. Civil, que prescreve:
“1-Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente.
2-Nem o dono do prédio pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida”.Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotad., págs. 190 e 191, “o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os utentes delas ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial (por meio de obras do homem) desse fluxo normal, provém já do direito romano.”
Afirma Guilherme Moreira, in “As Águas, II, nº 50”, que “as águas que os prédios inferiores têm de receber são: as águas pluviais que caiam directamente no prédio superior ou que para este decorram de outros prédios superiores a ele; as águas provenientes da liquefacção das neves e gelos; as que se infiltrem no terreno, e as das nascentes que brotam naturalmente num prédio”.
Do artigo 1351º depreende-se que o proprietário do prédio inferior terá direito a ser indemnizado dos danos que lhe advenham do escoamento das águas em termos diferentes dos prescritos, tal como o proprietário do prédio superior tem direito a ver reparado o dano que lhe cause o estorvo causado ao exercício normal do seu direito.
Do referido normativo legal resulta que, independentemente de quaisquer danos que já se tenham verificado, cumpre a destruição das obras tendentes a alterar o curso normal das águas ou a estorvar ilicitamente o seu escoamento como prevenção de danos futuros.

Regressados aos autos, e pese embora este dispositivo legal especifique expressamente a limitação ao direito de propriedade do prédio inferior, o que não ocorre no caso em litígio porquanto, a implantação dos prédios das partes situam-se topograficamente ao mesmo nível, (à exceção da cozinha das demandantes) certo é que, se tal limitação só ocorre nas circunstâncias referidas no normativo legal, e, não se enquadrando o prédio das demandantes naquelas, não terá obviamente que, sofrer qualquer limitação.
Limitação essa que, por um lado, não pode ser imposta ao prédio das demandantes por:
-não ser inferior ao dos demandados,

-e não serem águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente.
E por outro, face à prova produzida o leito da servidão por onde escorrem as águas provenientes do prédio dos demandados, pertencer às demandantes e não ser um espaço publico conforme alegaram aqueles.
Vejamos do escoamento das águas
Provou-se que, que os demandados realizaram ao longo dos anos obras no seu prédio nomeadamente, com a tapagem de um pátio, tendo nele colocado um intrincado sistema de tubos e caleiras em PVC, que conduzem todas as águas pluviais que nele caem. Aguas essas, que escorrem do telhado da sua habitação e das placas de zinco com que cobrem o dito pátio, e que são todas encaminhadas para o mesmo local, umas, através de caleiras colocados na parede, junto do portão existente no prédio dos demandados, outras, nos beirais das placas de zinco e ainda, por um cano colocado debaixo do dito portão localizado junto ao prédio das demandantes.
Ora, as obras efetuadas pelos Demandados no seu prédio para efectivação do escoamento das águas pluviais não são legalmente admissíveis.
Isto porque, e até no caso prescrito para o escoamento natural das aguas, relativamente aos prédios inferiores, de acordo com o previsto no nº 2, do transcrito artigo 1351º, do Código Civil, o dono do prédio superior não pode fazer obras capazes de agravar o escoamento das águas pelo prédio inferior.
A lei não proíbe, os proprietários quer dos prédios superiores, quer dos prédios inferiores, que efectuem obras relativas à condução das águas.
O que a lei proíbe é que, essas obras, ou estorvem ou agravem o escoamento dessas águas.
Mário Tavarela Lobo, in Manual do Direito de Águas, vol. II, Coimbra Editora, 1990, a pág.s 403 e 405, refere que “A própria natureza impõe que as águas se escoem dos prédios superiores para os inferiores “e que o artigo 1351.º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, seja qual for o objectivo em vista ao proceder-se a tais obras.”.
Sendo vedadas, por não se poderem considerar escoamento natural, nomeadamente (cf. pág. 407) “as práticas de juntar num só volume as águas que naturalmente se escoavam em direcção diferente segundo um curso mais suave e menos impetuoso, nem as alterações do terreno que desviem o curso natural da água e aumentem o seu volume.”.
Por seu turno, cf. Henrique Mesquita, in Direitos Reais, Sumários das Lições ao curso de 1966-1967, edição policopiada, Coimbra 1967, a pág. 157 e P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista e Atualizada (Reimpressão) Coimbra Editora, 1987, a pág. 228, “a obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só existe quando elas caiam gota a gota nos prédios superiores. Se aqui forem reunidas por ação do homem (através, por ex., de caleiras e tubos de descarga), o seu escoamento para os prédios inferiores depende do consentimento dos respetivos proprietários.”.
Ora, aplicando estes ensinamentos ao caso sub judice, e pese embora não se tratarem de prédios entre si desnivelados, (à exceção da cozinha) por maioria de razão, neste caso tem de se concluir que a actuação dos demandados viola o disposto no citado artigo 1351.º
Em conformidade e os factos acima enunciados, entendemos que as obras efetuadas pelos Demandados visaram desviar o curso natural das águas pluviais que caem quer, de parte do telhado da sua casa quer, do pátio e da forma acima identificada, sendo escoadas diretamente no prédio das Demandantes.
Tal sistema de drenagem (feito de forma artesanal e sem qualquer projeto de especialidade) evita que, grande parte das águas escoem para o seu prédio como outrora sucedia, pois o pátio era em terra e que naturalmente nele se estagnariam. Acresce que, se tais águas escoassem em todos os lados do pátio, não fosse a existência daquele sistema intrincado de tubos e caleiros aéreos e junto ao solo, a sua intensidade era mais diminuta.
Resultou ainda provado que, este intenso volume de água que cai junto do prédio das demandantes e escorre pelo leito da servidão que dá acesso ao pátio dos demandados provoca inundações no prédio das demandantes.
Ora, não se pode exigir às demandantes que recebam no seu prédio tais águas, que só para ali escoam por ação do homem, devendo por isso, os demandados encaminhar as águas de forma a não prejudicar o prédio das demandantes.
Quanto à titularidade do acesso à parte traseira da casa dos demandados
Excecionam os demandados na sua contestação, (contrariando a factualidade alegada pelas demandantes que referem que o dito acesso se faz através de uma servidão de passagem que atravessa o seu prédio urbano, e por isso, constituída à custa do prédio a elas pertencente) que tal acesso, bem como o de outras casas é feito através de uma via pública denominada “J”.
Vejamos
O comum do cidadão empresta à expressão ‘‘caminho público’’, o sentido da possibilidade da sua imediata de utilização.
Esse é também o seu sentido jurídico, o certo é que, não raras vezes, se confunde “caminho público” com as servidões de cariz particular, estas assentes sobre terrenos de propriedade privada e que não se encontram abertas ao público em geral, mas tão só aos proprietários que necessitam do acesso para chegar aos seus prédios.
O assento do STJ de 19.04.1989, com valor de jurisprudência uniformizada, caracterizando o modelo interpretativo que possibilitaria construir a dominialidade de um caminho sem acto de afectação expresso à utilidade pública, afirmou serem “públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.
A controvérsia gerada em torno da decisão viria a originar um posterior pronunciamento “contextualizador” pelo próprio STJ, através do seu acórdão de 10.11.1993, Proc. n.º 084192 in: «www.dgsi.pt/jstj. em cujo sumário se pode ler que “I-O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. (…) II-Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383.º do Código Civil”.
Esta interpretação restritiva foi sendo, sucessivamente reiterada pelo STJ como o revela o acórdão daquele Supremo de 14.02.2012, Proc. n.º 295/04.OTBOFR.C1.S1 in: «www.dgsi.pt/jstj.
São, dois os requisitos caracterizadores da dominialidade de um caminho:
a)-o uso directo e imediato pelo público;
b)-e a imemorialidade daquele uso, imemorialidade essa reportada à afectação.
Assim, a classificação do caminho como “público” ou “particular” constitui uma questão de direito a decidir de acordo com a factualidade demonstrada.
Regressando ao caso em apreço, diremos que os Demandados quanto a esta matéria não lograram provar, uma vez que a eles incumbia, artº 342º nº2 do Cód. Civil, a factualidade por si alegada, ou seja, que as aguas que escoam do seu prédio não são vertidas para o prédio das demandantes, mas, para via pública.
Da instrução do processo resultou que, a Junta de Freguesia de Ançã e o Município de Cantanhede apesar das diligências por ambas efetuadas, as duas foram unanimes, em informar que não dispõem de elementos suficientes para proceder à qualificação da via em apreço como publica, cfr. doc. junto a fls. 83 e 84 e 149, 164.
Das inspeções do tribunal ao local foi possível apurar, após entrar no Beco J:
-no início da entrada que dá acesso a parte do prédio das demandantes e traseira dos demandados, a existência de um muro no qual estão implantadas na parte superior e inferior os chumbadouros das dobradiças de um portão que outrora ali existiu.
-que o leito dessa passagem está cimentado.
-que uma parte do prédio das demandantes está separado pela passagem e a seguir à mesma está construído um anexo e uma escada/travessia aérea que liga essa construção à outra.
Tais obras, foram objeto de processo de licenciamento de obras nº XX de XXX, conforme informação e elementos juntos pelo Município de Cantanhede junto a fls. 220 a 226.
Por outro lado, o facto de designarem o Beco J, cuja entrada se faz pela rua B, não faz dele um caminho público.
Assim e face ao exposto, a passagem que se situa imediatamente a seguir a entrar no Beco J, (cujo inicio é calcetado) que permite aceder à parte de traz dos prédios das partes, não é um caminho público, mas, faz parte integrante do prédio das demandantes, onerado é certo, como referem as mesmas por uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos demandados.
Assim e face a todo o exposto o pedido elencado em primeiro lugar pelas demandantes tem de proceder, ou seja, no prazo de um mês os demandados tem de retirar as caleiras que encaminham e agravam o escoamento das águas pluviais e insalubres para o prédio daquelas encaminhando-as para a via pública.
Dos danos verificados no prédio das demandantes
A responsabilidade civil extracontratual resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de actos ou omissões que, causam prejuízo a outrem. Na responsabilidade extracontratual, a obrigação de indemnizar nasce, em regra, da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto que é inteiramente distinto dela.
São pressupostos deste tipo de responsabilidade a ocorrência de um facto voluntário do agente, a sua ilicitude, a culpa - ou seja o juízo de censura ou reprovação que o direito faz recair sobre o lesante porquanto agiu ilicitamente, quando podia e devia ter agido de outra forma -, a produção de dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano provocado, de acordo com a teoria da causalidade adequada.
Da prova produzida resultou que, os danos existentes no teto da sala das demandantes, não tem como causa o escoamento das águas supra referido, como aliás resulta do relatório junto a fls. 213 e sgts., razão pelo qual, o valor peticionado a esse titulo tem de improceder.
Relativamente aos danos ocorridos na cozinha, nomeadamente, decorrentes da escorrência de águas na parede que confina com o prédio dos demandados, e no armário da cozinha, das inspecções efetuadas ao prédio das demandantes e do teor do relatório efetuado pelo Engenheiro Civil, junto a fls. 212 a 213, e fotos que o acompanham, resulta que :
-as águas recolhidas pelo sistema de drenagem dos demandados são todas encaminhadas para o mesmo ponto de descarga, e a semi-impermeabilização da servidão, provoca um aumento da velocidade de escoamento.
-a rede pluvial apresenta várias deficiências técnicas, que comprometem uma normal eficiência podendo provocar transbordos de água e infiltrações nas paredes, conforme ocorreu em 2012.
-o aumento de áreas impermeabilizadas no prédio dos demandados e vizinhos, causam e agravam os danos constatados na cozinha das demandantes.
Nada resultou, quantos aos danos verificados da necessidade de proceder à cobertura parcial do telheiro dos demandados de forma a não provocar infiltrações das águas das chuvas, na parede norte das Demandantes.
Da indemnização requerida
No tocante aos danos indemnizáveis, o artigo 562º do Código Civil estabelece que a obrigação de indemnizar visa, desde logo, a reconstituição da situação que existiria na esfera jurídica do lesado, no caso de não se ter verificado o evento que obriga à reparação.
Está assente que, as Demandantes sofreram danos emergentes da factualidade ocorrida, tendo-se verificado um prejuízo na sua esfera jurídica.
Danos esses, constatados nos armários da cozinha implantados junto ao solo, cuja reparação ou substituição se impõe.
Contudo, do orçamento por si junto a fls. 23, de forma genérica atribui um valor para reparar os danos, faz parte “ um lava-louças, um tampo em granito e uma prateleira a meio”, e não existindo nexo de causalidade com os danos observados, (e que podem ser aproveitadas e recolocados) resultando assim que, o tribunal face à escassez de elementos, e não tendo, por outro lado, sido produzida qualquer prova testemunhal, nesse sentido, não é possível quantificar o valor do prejuízo, nem mesmo, com o recurso à equidade, nos termos do artigo 566º do Código Civil.
Efectivamente, ficou por demonstrar qual o valor necessário, para reparar a parte debaixo do armário da cozinha.
Quanto à reparação da parede da cozinha onde se localiza a chaminé e que confina com o prédio dos demandados, por onde escorria água, também os orçamentos juntos a fls. 33 e 120 e 121 são de igual forma genéricos e incluem trabalhos a realizar no teto da sala e exterior do prédio das demandantes, que não são consequência da factualidade apurada.
Ora, dispõe o nº 2 do artigo 609º, do C.P.C. que, não havendo elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que seja líquida.
Assim, é a própria lei processual a impor a condenação no que vier a ser liquidado, quando não há elementos para determinar o montante do prejuízo, o que sucede nos presentes autos.
Quanto aos danos morais peticionados.
O dever de indemnizar contemplado no artº 483º CC compreende tanto os danos patrimoniais como os não patrimoniais, também apelidados de danos morais.
Face ao vertido no nº 1 do artº 496º CC, apenas se deve atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Significa isto que, o dano (moral) sofrido pelas Demandantes deverá ser considerado suficientemente gravoso ao ponto de justificar a atribuição de indemnização pecuniária, não podendo integrar-se neste contexto quaisquer simples contrariedades, transtornos, ou arrelias.
A este propósito referem Pires de Lima e A. Varela que « a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não há luz de factores subjectivos, de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada, concluindo, pois, que cabe ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é merecedor da tutela jurídica».
Ora da factualidade provada, só quanto à primeira demandante foram alegados factos nesse sentido e que entendemos juridicamente tuteláveis, pois, já alguns anos (desde 2012, data da queixa apresentada no Município) que, a situação provocada pelos demandados, causa não, um mero transtorno ou arrelia aquela.
Efetivamente, tal factualidade não permite que, a demandante possa em condições normais usufruir da sua cozinha, onde se acumula água no chão e escorre da parede, tornando esta divisão da sua casa inoperante e constituindo perigo, o que lhe causa angústia e nervos, e que no quadro descrito merecem a tutela do direito pois, existe nexo causal entre a atitude dos demandados e a angústia por aquela sentida, pelo que, os danos não patrimoniais, aludidos, são susceptíveis de indemnização.
Nos termos do artigo 566º do Código Civil com o recurso à equidade, fixamos o valor de 250,00 €, condenando-se os demandados no seu pagamento.
Pedem ainda, as demandantes a condenação dos demandados ao pagamento de juros até efetivo pagamento.
O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (art.º 798.º do Código Civil).
A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, considerando-se o devedor constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda que possível, não tenha sido efetuada no tempo devido (art.º 804.º do Código Civil).
O devedor só fica, em regra, constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, correspondendo a indemnização na obrigação pecuniária em princípio, aos juros legais a contar do dia da constituição em mora (artigos 805.º e 806.º do Código Civil).
Sobre as quantias a que as demandantes têm direito, incidem juros de mora desde a citação, quanto aos danos patrimoniais a apurar em liquidação de sentença, e desde a presente data quanto aos danos não patrimoniais.
Os juros são devidos até ao seu integral pagamento, à taxa legal, a qual é atualmente de 4% - arts. 805º, n.º1, e 806º do C.C. e Portaria n.º291/2003, de 8/04.

5-DECISÃO
Face a tudo o que quanto antecede, julgo parcialmente procedente a presente acção e, por consequência, e condeno os Demandados a:
a)Retirar, no prazo de um mês, todas as caleiras que encaminham e agravam o escoamento de águas das chuvas e insalubres, para o prédio das demandantes, encaminhando-as para a via pública;
b)Indemnizar as Demandantes pelos danos patrimoniais sofridos cujo valor será apurado em liquidação de sentença.
c)Indemnizar a primeira Demandante pelos danos morais sofridos na quantia de € 250,00, acrescidos de juros legais até efetivo e integral pagamento, conforme supra decidido.
d)Mais se absolvem os demandados do restante pedido quanto a si deduzido.

Custas provisórias que se fixam em 91% para as Demandantes e 9% para os Demandados, devendo ser pagas, neste Julgado de Paz, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efetivo cumprimento dessa obrigação (n.º 10 da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12, com a redação dada pelo art. único da Portaria n.º 209/2005, de 24-02).

Notifique e registe.

Cantanhede, em 24 de fevereiro de 2017

A Juíza de Paz

Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária. Verso em branco.
(Artigo 131º, nº 5 do CPC e artigo 18º da LJP)

(Filomena Matos)