Sentença de Julgado de Paz | |
Processo: | 294/2021–JPFNC |
Relator: | CELINA ALVENO |
Descritores: | RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULO USADO |
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Data da sentença: | 08/20/2024 |
Julgado de Paz de : | FUNCHAL |
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Decisão Texto Integral: | SENTENÇA Processo n.º 294/2021 – JPFNC I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES Demandante: [PES-1], NIF [NIF-1], com domicílio na [...], Bloco D, 1º C, [...], [Cód. Postal-1] Funchal. Demandados: [PES-2], NIF [NIF-2], [PES-3], NIF [NIF-3], ambos residentes no caminho da Igreja, n.º 17, [...], [Cód. Postal-2] Funchal e [ORG-1], Unipessoal, Lda., NIPC [NIPC-1], com sede no [...], 22-24, [...], [Cód. Postal-3] Funchal. II - RELATÓRIO A Demandante propôs contra os Demandados a presente ação declarativa de incumprimento contratual, enquadrada na alínea i) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001 de 13 de julho, na sua atual redação, pedindo a resolução do contrato de compra e venda de veículo, celebrado com os Demandados e a respetiva condenação na restituição do preço que pagou no valor de € 7.000,00, para além de uma indemnização por danos patrimoniais e juros. Juntou: 5 documentos, de fls. 9 a fls. 43 e procuração forense. * Os Demandados foram citados (fls. 31, fls. 34, e fls. 35). Não chegaram a acordo na sessão de mediação. * O Demandado [PES-3] apresentou contestação de fls. 38 a fls. 39. Os Demandados [PES-2] e [PES-3] juntaram documentos, procuração forense, requereram declarações de parte e depoimento de parte (cfr. fls. 106 a fls. 113). A Demandada [ORG-1] apresentou um requerimento que foi desentranhado por despacho fundamentado de 03/07/2024 (cfr. fls. 120). * Efetuada várias tentativas de conciliação, com o esforço necessário e na medida adequada, para explorar todas as possibilidades de acordo, nos termos do n.º 1 do art.º 26º da LJP, a mesma não se revelou possível. Foram ouvidas as partes, nos termos do disposto no artigo 57.º da LJP, e realizada a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, como resulta das atas de fls. 119 e de fls. 131 a fls. 134, tendo sido ouvido cada um dos Demandantes [PES-2] e [PES-3] em declarações de parte e o gerente da Demandada em depoimento de parte, as testemunhas apresentadas pelas partes e alegações finais pelos Mandatários das partes. * O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor. O processo é próprio e não enferma de nulidades que o invalidem. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não há mais exceções, nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer. * III- VALOR DA AÇÃO Fixa-se em € 7.000,00 (sete mil euros), o valor da presente causa (artigos 296.º, 297.º n.º 2, 299.º, 300.º e 306.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001 de 13 de julho, com a redação da Lei n.º 54/2013 de 31 de julho). * IV- OBJETO DO LITÍGIO Resolução de contrato de compra e venda de veículo usado * V- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Assim e com relevância para a decisão da causa, e de acordo com a prova documental e testemunhal carreada para os autos, resultaram os seguintes: FACTOS PROVADOS: 1. A Demandante adquiriu um veículo Volkswagen Golf, de 2007, com a matrícula [- - 1] a 22/01/2021. 2. O veículo encontrava-se registado em nome da [ORG-1], Unipessoal, Lda. 3. Os termos do negócio foram acordados entre a Demandante e os Demandados [PES-2] e [PES-3], designadamente o preço da viatura que foi transferido para a conta do Demandado [PES-3] (€ 2.100,00 por retoma do Toyota Yaris e € 4.900,00 por transferência bancária em duas tranches a 22/01/2022: a primeira no valor de € 2.500,00 e a segunda no valor de € 2.400,00). 4. A Demandante adquiriu o veículo com 129.130 Km. 5. A Demandante adquiriu o veículo com a inspeção periódica aprovada, válida até 25/01/2022, tendo tomado conhecimento de que o veículo tinha deficiências que deveriam ser corrigidas (rodas diretrizes com desvio superior a 5 até 10m/Km, eixo 1 e com uma luz da chapa de matrícula que não funcionava). 6. As supra referenciadas deficiências não impediam o veículo de circular. 7. A Demandante tomou conhecimento das supra referenciadas deficiências e aceitou o negócio, nesses termos. 8. Antes de da aquisição da supra referenciada viatura pela Demandante, esta foi reparada porque tinha uma avaria num cilindro. 9. Após a aquisição da viatura pela Demandante surgiu uma avaria na válvula elétrica de pressão, que foi substituída pelos Demandados [PES-2] e [PES-3], sem quaisquer custos para a Demandante. 10. Em setembro de 2021, quando o veículo estava com 131.853 Km, a Demandante entrou em contacto com o Demandado Tomás comunicando que o veículo não circulava. 11. O veículo foi levado num reboque para a oficina do Demandado [PES-2]. 12. Após análise do veículo concluiu-se que houve uma troca no combustível aquando do abastecimento do veículo – em vez de gasolina o veículo tinha sido abastecido com gasóleo. 13. O Demandado [PES-2] comunicou a situação à Demandante. 14. A Demandante por telefone e por carta registada com aviso de receção enviada para o Demandado [PES-2] requereu a resolução do contrato. 15. Os Demandados [PES-2] e [PES-3] não aceitaram a resolução. 16. A Demandada [ORG-1] só teve conhecimento da situação aquando da sua citação no presente processo. Consideram-se reproduzidos os documentos de fls. 9 a fls. 22 e de fls. 107 a fls. 113. * Motivação da matéria fática: O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência, tendo considerado os elementos documentais juntos pelas partes, que aqui se dão por reproduzidos e integrados, conjugados com as declarações de parte (para prova dos factos constantes nos números 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15), depoimento de parte (para prova dos factos constantes nos números 2, 3 e 16) e com o depoimento sério e credível das testemunhas das partes inquiridas em sede de audiência de julgamento. Nos termos do n.º 2, do art.º 574.º, do CPC, aplicável ex vi, art.º 63.º, da LJP, consideram-se admitidos por acordo os factos constantes nos números 1, 2, 3, 10, 11, 14, 15 e 16. A restante matéria resulta provada pela análise crítica de todas as provas que foram dadas a conhecer em sede de audiência, o que foi ponderado de acordo com as regras da experiência e no âmbito da prova global produzida de modo a não existir contradições entre os documentos e a prova testemunhal. Considerou o Tribunal o teor dos documentos juntos pela Demandante de fls. 10, 15 a 17, 19 a 21 e 108 a 111, para prova dos factos constantes no número 1; de fls. 15 a fls. 17, para prova dos factos constantes no número 2; de fls. 19 a fls. 21, para prova dos factos constantes no número 3; de fls. 107, para prova dos factos constantes nos números 4, 5 e 6; de fls. 109 a fls. 111, para prova dos factos constantes no número 5; de fls. 109 a fls. 110, para prova dos factos constantes no número 7; e, de fls. 111, para prova dos factos constantes no número 10. * O depoimento da testemunha apresentada pela Demandante, [PES-7], na qualidade de ex-namorado da filha da Demandante, foi efetuado de forma credível e isenta, explicando em suma que a Demandante adquiriu o Volkswagen ao senhor Tomás; que a viatura apresentou avarias logo no início e que foram reparadas. Esta testemunha é de opinião que é muito difícil uma pessoa enganar-se no combustível quando está a abastecer o seu veículo. No entanto, esta testemunha também é de opinião que seria muito fácil esclarecer se tinha ou não acontecido essa situação, com um simples confronto de faturas de abastecimento do veículo. A verdade é que a Demandante sabia do diagnóstico dos Demandados e não teve a “ideia” desta testemunha. Quanto à dificuldade em enganar-se ou não no combustível, isso é extremamente subjetivo. Esperamos que isso nunca aconteça, mas garantias de que não vai acontecer não se podem dar. O dia-a-dia, o stress diário, existe uma panóplia de situações que nos podem levar a um engano deste género. O depoimento da testemunha apresentada pelos Demandados [PES-2] [PES-3], [PES-9], na qualidade de engenheiro e perito de seguros, foi efetuado de forma credível e isenta, explicando em suma que conhece o Demandado [PES-3] dos ralis; que se deslocou à oficina do Demandado [PES-3] e viu um Volkswagen e que ficou curioso porque não há muitos carros deste género a gasolina; que o Demandado [PES-3] comentou que achava que estava perante uma situação de troca de combustível; que então desligaram as linhas de combustível e depararam-se que o que estava a verter era gasóleo; era nítido pelo odor e pela cor; que quando se troca o combustível e circula-se as bombas injetoras “vão à vida” e que isso pode causar danos irreversíveis no motor; que quando isso acontece o carro começa a falhar, pára e depois já não anda mais; depois só de reboque; que não é certo que exista fumo quando há troca de combustível e se houver o fumo vai sair pelo escape. Confrontado com as fls. 111 verso e fls. 112 dos autos, confirmou tratar-se do veículo que verificou. O depoimento da testemunha [PES-7] foi determinante para formar convicção sobre os factos respeitantes ao número 9 da matéria provada. O depoimento da testemunha [PES-9] foi determinante para formar convicção sobre os factos respeitantes ao número 12 da matéria provada. * FACTOS NÃO PROVADOS: Não se provaram quaisquer outros factos, com interesse para a decisão da causa, dada a inexistência ou a insuficiência de prova nesse sentido. Os factos não provados resultam, portanto da ausência de elementos que permitam formar convicção positiva sobre os mesmos. Consigna-se que, para apuramento da matéria de facto não foi considerado o teor dos articulados com matéria tida por irrelevante, conclusiva ou de direito. * VI- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Da factualidade assente resulta que, na presente ação, estamos perante um contrato de compra e venda, que poderá ser apenas disciplinado no Código Civil, ou também pelas normas que visam a tutela específica dos direitos do consumidor. Com efeito, o adquirente de coisa defeituosa beneficia de uma tutela acrescida decorrente da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (em vigor aquando dos factos). A discussão sobre se estamos ou não perante uma situação enquadrável na Lei de Defesa do Consumidor seria essencial para a aplicação do Direito no presente caso, não fosse a questão dos factos que se consideram provados, o que faz com que a discussão sobre a aplicação da Lei de Defesa do Consumidor se torne meramente uma questão doutrinária que em nada altera o desfecho da presente ação. Posto isto, Resulta da matéria de facto provada que a Demandante adquiriu um veículo Volkswagen Golf, a 22/01/2021, de 2007, com 129.130 Km, com a inspeção periódica aprovada, válida até 25/01/2022, tendo tomado conhecimento de que o veículo tinha deficiências que deveriam ser corrigidas (rodas diretrizes com desvio superior a 5 até 10m/Km, eixo 1 e com uma luz da chapa de matrícula que não funcionava). A Demandante tomou conhecimento das referenciadas deficiências e aceitou o negócio, nesses termos. Resultou também provado que antes da venda da viatura à Demandante, esta foi reparada porque tinha uma avaria num cilindro. Resulta ainda provado que após a aquisição da viatura pela Demandante surgiu uma avaria na válvula elétrica de pressão, que foi substituída pelos Demandados [PES-2] e [PES-3], sem quaisquer custos para a Demandante; que em setembro de 2021, quando o veículo estava com 131.853 Km, a Demandante entrou em contacto com o Demandado [PES-2] comunicando que o veículo não circulava; que o veículo foi levado num reboque para a oficina do Demandado [PES-2]; que após análise do veículo concluiu-se que houve uma troca no combustível aquando do abastecimento do veículo – em vez de gasolina o veículo tinha sido abastecido com gasóleo; que o Demandado [PES-2] comunicou a situação à Demandante; que a Demandante por telefone e por carta registada com aviso de receção enviada para o Demandado [PES-2] requereu a resolução do contrato; que os Demandados [PES-2] [PES-3] não aceitaram a resolução e que a Demandada [ORG-1] só teve conhecimento da situação em questão aquando da sua citação no presente processo. O contrato de compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço. Um dos efeitos do contrato de compra e venda consiste na obrigação da entrega da coisa, devendo os contratos ser pontualmente cumpridos, sendo que o cumprimento daquela obrigação só será perfeito se, por um lado, a coisa for entregue e, por outro lado, sem defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais. Ou seja, verifica-se a venda de coisa defeituosa quando a mesma: sofra de vício que a desvalorize; não possua as qualidades asseguradas pelo vendedor; não possua as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada ou sofra de vício que a impeça da realização desse fim. Se a coisa vendida padecer daqueles defeitos estamos perante uma venda de coisa defeituosa. O “regime regra” é que provada a entrega da coisa com defeito e não tendo sido ilidida a presunção de culpa do vendedor, podem ocorrer as seguintes consequências: reparação do defeito; substituição da coisa; redução do preço; resolução do contrato e indemnização. No entanto, o regime previsto no Código Civil não é o único que rege a venda de coisas defeituosas. A venda de bens de consumo conhece variadas especificidades, estabelecendo-se a regra de que o consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor. E tem direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que o produtor desses bens é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado. Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor poderá ter direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. Reportando-nos ao caso em apreço, caso se considerasse que a Demandante tinha a qualidade de consumidor (regime mais benéfico para a Demandante), isso significaria que beneficiava de uma garantia de bom estado e bom funcionamento do veículo no período da garantia, sendo que esta garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida. Por isso, dessa garantia resulta uma presunção ilidível de que o vício ou defeito que a coisa venha a revelar após a entrega já existia nessa data, com os consequentes reflexos a nível do ónus da prova. Assim, para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, a Demandante apenas teria de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Aos vendedores, aqui Demandados, para se ilibar da responsabilidade, incumbiria alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador, aqui Demandante, a terceiro ou devida a caso fortuito. No caso concreto, apurou-se que houve uma troca no combustível aquando do seu abastecimento – em vez de gasolina o veículo foi abastecido com gasóleo. O que é dizer que a causa da avaria foi o erro no seu abastecimento com o combustível. Assim, tendo os Demandados logrado provar que a causa da anomalia foi a troca no combustível aquando do seu abastecimento – em vez de gasolina o veículo foi abastecido com gasóleo, que só poderá ser imputável à Demandante ou a terceiro a quem esta permitiu a sua utilização, não poderão os Demandados ser responsabilizados pelos danos verificados, pelo que a pretensão da Demandante não poderá proceder. Consequentemente fica prejudicada a análise do remanescente pedido formulado pela Demandante, porquanto a análise do mesmo dependia da procedência do pedido acima analisado (cfr. artigo 608.º do Código de Processo Civil). VII - DECISÃO Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente, e, consequentemente, absolvo os Demandados. VIII – RESPONSABILIDADE POR CUSTAS As custas serão suportadas pela Demandante (Artigos 527.º, 607.º, n.º 6 do Código de Processo Civil - aplicáveis ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001, de 13 de julho, na sua atual redação - e artigo 2.º da Portaria n.º 342/2019, de 1 de outubro), devendo a Demandante efetuar o pagamento de € 70,00 (setenta euros) num dos três dias úteis subsequentes ao conhecimento da presente decisão, incorrendo numa sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação, até um máximo de € 140,00 (cfr. Portaria 342/2019 de 1 de outubro). O prazo legal para proceder ao pagamento das custas é o mencionado na presente decisão, isto é, três dias úteis, pelo que, o prazo que vai indicado no Documento Único de Cobrança (DUC) é um prazo de validade desse documento, que permite o pagamento das custas fora do prazo legal. Assim, o facto de o pagamento ser efetuado com atraso não isenta o responsável do pagamento da sobretaxa, nos termos aplicáveis. Transitada em julgado a presente decisão sem que se mostre efetuado o pagamento das custas, emita-se a respetiva certidão para efeitos de execução por falta de pagamento de custas, e remeta-se aos Serviços da Autoridade Tributária, pelo valor das custas em dívida, acrescidas da respetiva sobretaxa, com o limite máximo previsto no art.º 3.º da citada Portaria. * Registe e notifique e após trânsito em julgado, arquive. * Funchal, 20 de agosto de 2024. A Juíza de Paz __________________________ Celina Alveno |